RedePsi - Psicologia

Colunistas

Cuidado com seus desejos…

Há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando o são.

                                                                     George Bernard Shaw

Boa parte de nossos dramas existenciais e da conquista de bem-estar psicológico podem ser relacionados ao modo como lidamos com nossos desejos. Há quem pregue a completa renúncia ao desejo. Afirmam que nele estaria a fonte da infelicidade. Neste caso, em tese, só desejamos aquilo que não possuímos. Logo, ao obter o que desejávamos, já não o queremos mais. O que nos incluiria em um ciclo de perpétua geração da insatisfação. Esta só existe se há desejo. Se há insatisfação, infelicidade, elas geralmente existem porque algum desejo não foi satisfeito.

A felicidade, ou a alegria, seu representante elementar, são frutos da realização de desejo. Se alguém está alegre ou feliz é porque algum desejo foi ou está sendo satisfeito. Portanto, neste contexto de argumentação, a afirmação de que renúncia ao desejo seria um caminho para a felicidade é insustentável. Na verdade, o foco deve ser mantido no modo como desejamos. Não se trata, em termos absolutos, de haver desejo ou não. Pois o desejo é o motor. É ele, de certo modo, quem nos mantém vivos. Sem desejo não há ação.

Segundo Luc Ferry (2007), a sabedoria antiga, por meio da escola estóica, nos ensina muito acerca da temperança e da resignação: desejar somente aquilo que dependa diretamente de nós; jamais despender energia e esforços para com o que é improvável; e, no eixo do tempo, não lamentar passado nem esperar nada do futuro. Ao invés de esperar, agir, e no agora. Há um foco na ação e no presente. Os estóicos concebem a esperança e a nostalgia como verdadeiros atrasos de vida. Devem ser expurgados de nossa existência. “Não chorar o leite derramado"; não criar expectativas demais”; “não viver em função de passado nem de futuro”: é mais ou menos nestes termos que estas questões são expressas pelo senso-comum.

Da minha leitura de autores que escreveram sobre o desejo, fica uma formulação, um valor que procuro também adotar para minha própria vida. Tento sintetizar, da forma mais simples possível (ou até simplória – talvez seja o caso), um imperativo moral no seguinte enunciado:

“Desejar mais o que já se tem e menos o que ainda não tem”.

A primeira é a classe dos desejos imediatamente possíveis. E a segunda é a classe dos desejos prováveis. Colocados na balança de nossa vida, é mais prudente que existam, em maior peso e número, os imediatamente possíveis. Esta classe diz respeito a tudo aquilo que desejamos e que pode ser imediatamente realizado. É desejar o que já se tem. É desfrutar de tudo aquilo que já possuímos. É dar valor ao que temos. Eis a gratidão, como uma virtude, e sua importância.

Os jargões populares “só dá valor quando perde” e “não dá valor ao que tem” traduzem de certa forma o erro: desejar somente o que não possuímos, deixando de lado toda uma vida possível e palpável, a qual poderia ter sido desfrutada e não foi. Sinto da seguinte maneira: não é necessário abandonar nossos sonhos. Mas é muito pouco saudável viver somente em função deles, sacrificar nossas possibilidades de fruição e prazer imediatos em prol de castelos no ar.

E o que seria desejar o que já se possui? Muito simples. É desejar o que é imediatamente possível. Por exemplo: desejo chegar hoje em casa e tomar um bom e relaxante banho; desejo comer lasanha no almoço; desejo, após o almoço, tirar uma boa soneca; desejo agora estar aqui, escrevendo este artigo, e estou. Nada disso é simplesmente provável. São eventos que estão imediatamente ao meu alcance. E não dependem predominantemente de terceiros ou sorte. Lembro de Sartre dizendo coisa parecida: se depende dos outros ou da sorte, então desista e vá dedicar sua energia em algo mais útil.

É a tristeza do torcedor, do fã, dos idólatras como um todo. É remoer-se por algo que não depende de nossos próprios esforços. É colocar todas as fichas de nossas apostas vitais em algo que está fora de nós mesmos. É abrir mão de nossas responsabilidades e de tudo o que podemos fazer por nós próprios, na esperança inútil (sempre inútil, segundo alguns autores) de que algo decisivo aconteça, de que alguma graça caia do céu.

Há, porém, distinções e sutilezas existentes entre os conceitos de desejo, vontade, e esperança, por exemplo, que ser realizadas. Segundo Comte-Sponville, em seu belo ensaio “A felicidade, desesperadamente” (2005, p. 60), pode-se desejar o que depende de nós (vontade) e o que não, de nós (esperança). Diz que toda esperança é um desejo, mas que nem todo desejo é uma esperança. Pois é possível desejar o que já possuímos, o que é imediatamente possível. E isto seria o que ele chama de “felicidade em ato”. Mais bem-estar significa mais felicidade em ato e menos felicidade em potência no balanço de nossa vida.

Seria tirar a vida do condicional, do “como eu seria feliz se isso ou se aquilo”. É fazer o que se tem vontade, o que se gosta, aqui e agora. O que se pode fazer e não o que se poderia fazer. Tirar proveito, prazer, de tudo o que já temos, por mais simples que seja. Uma sabedoria da simplicidade, dos pequenos prazeres da vida, muitas vezes.

Comte-Sponville defende que a conquista da felicidade se dá por meio de um “alegre desespero”. E o sentido palavra desespero, neste caso, remete à ausência de esperança, a qual ele, e boa parte da história da filosofia, repudiam. Neste sentido, ter esperança, esperar, (ou seja, desejar o que não depende de nós mesmos) é desejar sem gozar, sem poder e sem saber. Sem gozar, pois não que desejamos. Sem poder, pois não que desejamos e nem somos capazes para tal. E sem saber, pois nosso desejo é somente uma aposta à derivar pelo oceano do acaso, na crença de uma fortuna remota.

A esperança – ao contrário da vontade, a qual está centrada na ação e em objetivos mais concretos e imediatamente possíveis – é um desejo miserável. Não consigo deixar de ver relação com o dito “sonhar alto”, o qual não vejo com bons olhos. Logo sinto o cheiro de megalomanias, adolescência ou o mercado da venda do sucesso no ar. Não que sonhar alto seja condição para realizar o que quer que seja. E em muitos casos, como nas manias, o preço do sonhar alto é a negação da realidade mais imediata e concreta. Há desprezo pelos passos mais próximos, pela humildade de saber se colocar na realidade, e um desespero sentido de aflição em pular etapas. Como se pudéssemos viajar sem percorrer qualquer caminho.

Tive um paciente acometido por megalomanias. O que mais fazia era sonhar alto. E quanto maior o sonho, maior o tombo, se este não for realizado. Maior a frustração. E quanto maior for esta, mais sólida terá de ser a estrutura do sujeito para o fracasso, para a perda, pois maior é o luto a ser justamente elaborado, o que não costuma ocorrer com quem sonha alto demais, com os megalômanos. Eles sonham alto para se esconder, para fugir do peso da realidade. E ficam presos a um ciclo vicioso. Seus castelos no ar se desmancham e caem no fundo do poço da frustração. E voltam a sonhar alto, porque é isso, no seu modo de funcionamento, o que lhes resta.

Desejando avidamente tudo o que não possuem, tudo o que está distante, tropeçam no passo mais próximo. Aliás, a avidez, o excesso de energia que concentramos em um único ponto de nossos desejos, é também geralmente nefasta. Jargão popular: “não ir com muita sede ao pote”. Em muitos casos uma atitude mais desprendida e desapegada do objeto de desejo é mais salutar.

Porque a avidez é irmã de uma ansiedade contraproducente, a qual atropela ou violenta o objeto de desejo, em vez de conquistá-lo. Bota o carro na frente dos bois. É mãe de uma impetuosidade viciosa. É a voracidade que não saboreia, o desejo intenso que é inimigo da espontaneidade, pois é mistificação excessiva, tornar fetiche o que não se possui. É desejar possuir antes de conhecer. O ter antes do saber. E talvez uma desesperada paixão pelo êxito.

Então, retomando o título do artigo: “Cuidado com seus desejos. Você pode realizá-los.” Este é o dito popular em sua forma completa. Porém, pode haver diferentes apropriações do mesmo. Pode-se compreendê-lo pelo viés da capacidade, do sucesso, ou mesmo da decepção. O primeiro sentido seria: você é capaz de realizá-los. Ou: a possibilidade de realização é maior do que você imagina. Acaba atuando como uma forma poética ”de estimular o desejo, o sonho, ou a aposta.“

E na verdade é isso o que o mercado do sucesso, da auto-ajuda, em boa medida, faz: cria legião de apostadores. Vive de vender apostas. De estimular o comportamento de jogo, de aposta. “É necessário desejar (pois assim o universo conspira a favor”), sonhar, acreditar, ter fé, esperança, pensar positivo”.

O segundo sentido refere-se à possibilidade de realização, mas levando-se em conta também a possibilidade da decepção. E este seria o segundo tipo de catástrofe que acomete a existência: quando nossos desejos são satisfeitos. E é para o que chama atenção a frase de Bernard Shaw.

Muitas vezes, devido a avidez ou ambição excessivas, criamos tantas expectativas em relação à realização de determinados desejos, que nos esquecemos de todo o restante da vida. Passamos a habitar as nuvens e assim deixamos de viver. E nos esquecemos também que frustrações e decepções não são somente frutos do fracasso. Elas podem surgir da simples percepção de que nossos objetos de desejos não são tão fabulosos quanto nossa sede os fazia parecer. Porque a idolatria quase sempre desemboca na decepção. O olhar faminto adultera e diviniza o objeto da fome. Assim, o desejo, o sonho, é traduzido em necessidade vital (com o perdão do pleonasmo).

É este mesmo o mecanismo: transformar o sonho em algo vital; e a probabilidade em certeza. O sonho realizado ou a morte. E assim muitos sonhadores deixam de viver, para viver sonhando.

Referências

Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.

__________________ (2005). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

Ferry, L. (2007). Aprender a viver. São Paulo: Objetiva.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter