(continuação)
6. Psiquiatria Iluminista
O movimento do Iluminismo se estende entre 1740 e 1800. Em realidade, já se inicia em fins do século XVII nas artes, na filosofia e na religião. Mas para assinalar o início de suas manifestações no campo da Medicina, vale a tardia data de 1740. Por outro lado, a expressão científica desta nova sensibilidade irá configurar-se nos primeiros anos do século XIX. A representação mais genuína deste grande movimento cultural, da mesma forma como ocorre com o nascimento da psiquiatria como ciência, corresponde aos franceses (Diderot, Montesquieu, o naturalista Buffon, Condillac, d'Alembert, Voltaire, Rousseau e por aí vai).
A tradição e a fé são absorvidas no século XVIII pela confiança na razão e na ciência.
Deve admitir-se que a psiquiatria científica começa na França em 1800, com a obra de Pinel. Philippe Pinel (1745-1826) dizia que não queria construir novas hipóteses, mas limitar-se à observação e descrição de fatos, de dados fáticos.
Pinel havia recebido luzes iluministas dos escritores Condillac e De Cabanis, com os quais manteve vínculos de amizade. Influíram sobre ele especialmente Descartes e os enciclopedistas do século XVIII. As idéias de Descartes e dos enciclopedistas contribuem ao nascimento da psiquiatria por haver "naturalizado" o espírito do homem, com o que o seu pensamento se torna mais racional.
Pinel passou para a história da psiquiatria por duas razões: haver liberado o alienado de suas cadeias intelectuais e físicas e por haver iniciado o tratamento moral, que não significa uma ação moralizante, mas uma atividade psicoterapêutica.
Há uma terceira razão para perpetuar a memória de Pinel na história: haver introduzido em psiquiatria o método experimental, vale dizer, a observação repetida dos fatos e da análise racional dos mesmos.
Pinel, inicialmente, na introdução à primeira e à segunda edições de seu Nosographie philosophique e em Médecine clinique, publicada em 1804, descreve seu método como "a análise aplicada à medicina". "Homenagem eterna seja rendida ao espírito observador de Hipócrates, que perfilou histórias com tanta verdade com laconismo e profundidade, que abriu a verdadeira via da observação, assim como o método descritivo". "Os progressos sólidos que a medicina realizou em todos os tempos são devidos ao método analítico, e se deve esperar a aplicação de sua doutrina inteira, ao ensino público desta ciência". A medicina clínica se torna mais precisa e exata pela aplicação da análise".
O método analítico, a que Pinel se refere, deve-se a Condillac, reitor do pensamento filosófico da geração de Pinel. "A análise não consiste mais que em compor e decompor nossas idéias para fazer com elas diferentes composições e para descobrir, por este meio, as relações que há entre elas e as novas idéias que assim se podem produzir. Esta análise é o verdadeiro segredo dos descobrimentos porque nos faz remontar sempre à origem das coisas. Tem a vantagem de não oferecer mais que poucas idéias de cada vez e sempre com o grau mais simples", é o que diz Condillac em Ensayo sobre el origen de los conocimientos humanos.
Sobre a utilização comum da análise, Condillac e Pinel se expressam em termos semelhantes. "A análise é conhecida não somente pelos filósofos, mas por todo mundo, e eu não ensinei nada ao leitor, limitei-me a destacar o que ele faz continuamente", dizia Condillac em sua Lógica. "Eu, manifestava Pinel, não faço mais que propor ao homem, que está ávido de uma instrução geral, o movimento geral do espírito humano".
Em 1810, na quarta edição de sua Nosographie philosophique, Pinel define a medicina experimental, contrapondo-a ao que ele chama empirismo estrito, como uma ciência que "consiste em observar com atenção, não referir-se mais que a sinais sensíveis, repetir várias vezes as observações. Aí reside a medicina hipocrática!"
Com a obra de Pinel e de seu discípulo Esquirol, a psiquiatria se libera quase definitivamente das interpretações demonológicas e substitui as construções especulativas peIa coleção de material empírico, no qual se incluem, sobretudo, as investigações de causas somáticas, com o que se estreitam as relações entre a psiquiatria e a medicina.
Neste marco histórico aparecem El médico filósofo, de Weikard e a obra de Reil e Hoffbauer, ambas já citadas, assim como o primeiro tratado norte-americano de psiquiatria, que se deve a Benjamín Rush, e o primeiro tratado de psicoterapia com estrutura científica, publicado em 1803, pelo psiquiatra alemão Reil.
A psicoterapia toma um desenvolvimento importante, mas os psicóticos continuam sendo tributários de métodos pouco humanitários. Continua-se praticando a terapia por imersão e se introduz a "cadeira de Darwin", artefato projetado por Erasmo Darwin (avô de Charles). Com esta técnica, que consiste em fazer girar o enfermo até que ele expulsasse sangue peIa boca, nariz e ouvidos!
O termo "transtorno nervoso" tornara-se popular desde os trabalhos de Willis. De sua delimitação se ocupa, em 1764, o livro de Whytt, Trastornos nerviosos, hipocondríacos e histéricos, título que une o termo de Willis com os dois propostos por Sydenham para a histeria masculina e a feminina, respectivamente. Para Whytt, com o termo "transtorno nervoso" deve nomear-se somente a histeria e a hipocondria, e não, como vinham fazendo quase todos os médicos, a totalidade dos transtornos cuja natureza e causa, permaneciam ignoradas.
A histeria e a hipocondria, de acordo com a proposta de Sydenham, continuaram referindo-se à mesma doença na mulher e no homem, até que Boissier de Sauvages, em Nosologia methodica, em 1763, estabelece que ambas as enfermidades podem aparecer em ambos os sexos e que sua associação é pouco freqüente. Cullen, professor de medicina em Edimburg, introduz o termo "neurose", em 1777.
7. Psiquiatria Romântica
O Romantismo científico fica compreendido entre 1800 e 1848. Sua teoria mais representativa se acha plasmada no idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel. A doutrina do idealismo, na obra, sobretudo de Schelling, toma a forma da "filosofia natural", que preconiza "a radical superioridade da especulação filosófica sobre o experimento". A filosofia natural, modelo de ciência especulativa, deixaria depois a pista livre à ciência natural, modelo de ciência empírica. Desta forma, a especulação faz declinar a instância da observação e do experimento.
É na Alemanha onde aparece uma psiquiatria inteiramente "romântica". Na França, a psiquiatria continua desenvolvendo-se por um caminho estritamente técnico e científico. Algo parecido ocorre com o conjunto da medicina: medicina romântica na Alemanha e sensualista na França.
A psiquiatria entra nesta época sob a égide de Pinel (falece em 1826), que havia distribuído as enfermidades psíquicas nos quatro tipos seguintes:
1. A "mania" ou "delírio geral", onde se incluíam quadros esquizofrênicos, maníacos e hipomaníacos.
2. A "melancolia" ou "delírio exclusivo", que compreendia, sobretudo, as depressões ciclotímicas e as formas depressivas da esquizofrenia.
3. A "demência" ou destruição do pensamento, onde se incluíam os paralíticos gerais (neurossífilis), e os esquizofrênicos crônicos.
4. A "idiotia" ou ausência de todas as faculdades mentais.
Pinel teve muitos discípulos em medicina interna, mas em psiquiatria só teve dois: Ferrus (1764-1861) e Esquirol (1772-1840). O trabalho do primeiro se limita à luta peIa reforma dos asilos psiquiátricos e a impulsionar a ergoterapia. Pinel havia assinalado como lei fundamental dos estabelecimentos psiquiátricos a prática de exercícios físicos e trabalhos mecânicos, mencionando como exemplo neste sentido o Hospital Psiquiátrico de Zaragoza.
Esquirol se destaca como brilhante reformador da assistência psiquiátrica e fundador de uma grande EscoIa. Assistente de Pinel na Salpétrière (Paris). Em 1811 é nomeado Co-Diretor, com Pinel, desta clínica. A partir de 1817, em que ministra um curso sobre "o tratamento da insânia" e desenvolve uma excepcional atividade docente. Seus discípulos, alguns destacados como Moreau de Tours, Baillarger, Bayle, Falret e Georget, se contam às dezenas. Assim, se constitui a Escola Francesa de Psiquiatria que carrega em suas mãos a tocha desta ciência durante a primeira metade do século XIX.
Sob as diretrizes assinaladas por Esquirol se constroem numerosos estabelecimentos psiquiátricos (os de Rouen, Nantes, Charenton, Montpellier, Marsella, Le Mans e por aí vai). Em 1826 é nomeado médico-chefe do Estabelecimento Público de Charenton, em Paris. É o autor do projeto da célebre lei promulgada na França, em 1838, sobre o regime dos estabelecimentos psiquiátricos.
Esquirol superou o mestre Pinel, sobretudo, nos dotes clínicos de observação e em eficácia didática. Incorpora à psiquiatria a teoria cerebral de Gall. Estabelece os traços diferenciais entre as ilusões e as alucinações. Realiza, também, importantes descobertas nos campos da psicogênese e da psicoterapia. Orienta o tratamento dos enfermos psíquicos com um critério racional e humanitário, suprimindo a aplicação de procedimentos curativos brutais, como a cadeira giratória de E. Darwin. Sua obra principal, Des maladies mentales considérées sous les rapports médicaux, hygièniques et médico-Iegaux, Paris, 1838, foi traduzida ao espanhol, com o título Tratado completo de Ias enajenaciones mentales, Madri, 1847.
Entre seus discípulos com orientação psicológica (psicodinamicista) – orientação seguida também por Pinel e Esquirol com uma linha eclética geral -, sobressaiam: Baillarger, que isola "a loucura de dupla forma"; Falret, a quem se podem atribuir os dois grandes descobrimentos da psiquiatria francesa: a paralisia geral e a "loucura circular", e o belga Guislain.
E entre seus discípulos somaticistas ou organicistas se encontravam: Moreau de Tours, primeiro autor que formula a hipótese da degeneração e considerado em alguns círculos de seu próprio país como "o pai da psicofarmacologia" por haver se auto-administrado haschich com uma finalidade experimental; Bayle, que interpreta a paralisia geral progressiva como uma seqüela de uma meningoencefalite crônica; Georget, o discípulo predileto de Esquirol, que atribuía todas as enfermidades psíquicas, inclusive a histeria, a lesões cerebrais; Calmeil e Voisin.
Nesta época sobressaem na Grã-Bretanha o psiquiatra e antropólogo Prichard (1785-1848), iniciador do estudo científico das psicopatias com a designação de moral insanity (insânia ou loucura moral), e Conolly (1794-1866), que impõe nos estabelecimentos psiquiátricos o sistema no-restraint ("nenhuma contenção ou sujeição").
Na Alemanha, a psiquiatria de princípios do século XIX, como ocorria com os demais ramos da medicina, estava absorvida peIas especulações éticas e religiosas, e pelo pathós do romantismo.
A psiquiatria alemã desta época toma um tom plenamente romântico. É uma psiquiatria espiritualista e moral. O que eles chamavam "psicológico" era mais de ordem moral, enquanto que, ao contrário – coisa notável -, o que os franceses da época denominavam "moral" é psicológico em sua maior parte. Para os alemães do século XVIII a enfermidade era uma conseqüência do pecado.
O maior representante desta psiquiatria alemã foi Heinroth (1773-1843), que em 1811 ocupou a primeira cátedra universitária de psiquiatria alemã em Leipzig. Para Heinroth a enfermidade psíquica era uma enfermidade da alma, o castigo do pecado, e sua radical essência era a perda da liberdade. O pecador seria castigado por Deus com a perda do livre arbítrio. Nestas idéias parece haver-se inspirado, o meu (do autor) mestre na França, Henri Ey para definir a psiquiatria como a Patologia da Liberdade. Heinroth tem o mérito de haver criado o termo "Medicina Psicossomática".
Reaparece a concepção demonológica em alguns psiquiatras da época, especialmente em Kerner (1786-1862). A lânguida vida da psiquiatria alemã naquela conjuntura só tem um ponto brilhante: a organização de hospitais psiquiátricos, apesar do grave inconveniente de continuar aplicando técnicas desumanas como a cadeira giratória, a ducha e as terapias "pela dor" e "pela náusea".
8. Psiquiatria Positivista e Atual
É no período do Positivismo naturalista quando novamente se impõem a observação e o experimento sobre a especulação no desenvolvimento das ciências. Seus limites são os anos 1848 e 1914. Sua carta magna é o Discurso sobre el espíritu positivo, de Comte. Estabelece-se como princípio fundamental o de ater-se à observação direta ou instrumental (experimento) dos fatos e à formulação dos mesmos em leis. No homem não haveria nada inacessível à investigação realizada com a metodologia da ciência natural.
Aqui começa o declínio da psiquiatria francesa com a formulação da doutrina da degeneração, cujas idéias básicas se acham pré-formadas na obra de Moreau de Tours (1804-1848). Mas seu desenvolvimento completo se deve a Morel (1809-1873), discípulo de Falret. A degeneração se regeria pela "Iei da progressividade": na primeira geração aparece o temperamento nervoso; na segunda, a neurose; na terceira, a psicose; na quarta, a oligofrenia e com isso o fim da descendência.
Magnan (1835-1916) dá um novo giro a esta doutrina a partir de 1870, interpretando seu fato básico como uma regressão atávica, como uma volta atrás.
A redescoberta das leis de Mendel, por entre os séculos XIX e XX, põe um ponto final ao conceito de herança inespecífica e polimorfa, que servia de base à teoria da degeneração.
Em 1857 Esmarch e Jessen formulam, na Alemanha, a correlação causal entre a sífilis e a paralisia geral. A transcendência deste fato pode imaginar-se tendo presente que aproximadamente 30% da população psiquiátrica hospitalizada daquele tempo eram paralíticos gerais.
Nesta época aparece a obra do Pinel alemão, Griesinger (1817-1869). Foi o primeiro professor de medicina interna em Tübingen, Kiel e Zürich. Em 1864 é nomeado professor de psiquiatria e neurologia de Berlim (segunda cátedra universitária da Alemanha), com o que, de acordo com a expressão de Jaspers, a "psiquiatria de asilo" começa a transformar-se em "psiquiatria de universidade". A tocha psiquiátrica passa então de mãos francesas a mãos germânicas, sendo precisamente Griesinger o fundamental promotor desta permuta.
Griesinger, apesar de sua conhecida fórmula "as doenças psíquicas são doenças do cérebro", se ocupa com eficácia do estudo dos aspectos psicológicos do enfermo, se mostra algo influenciado peIas idéias da psiquiatria alemã romântica e adapta, sobretudo a linha da psiquiatria eclética. Ainda que aceite o postulado da psicose única, ditado por seu mestre Zeller, continua em linhas gerais a nosologia de Pinel. Também põe um nobre empenho, como Pinel, em organizar as técnicas da terapia psiquiátrica. A tocha internacional da psiquiatria passa para suas mãos e desde então não sai mais da Alemanha. Com a obra de Griesinger, se estabelece o império da concepção científico-natural na psiquiatria alemã.
Porém, há na obra de Griesinger outros dois aspectos que merecem rememorar-se. Em primeiro lugar o de não haver descuidado da análise da sintomatologia psíquica. Estes estudos analíticos lhe conduzem à obtenção de interessantes conclusões, entre as quais figuram:
(a) a porção mais importante e extensa do acontecer psíquico é de caráter inconsciente;
(b) a possessão de um estilo de vida definido leva implícitas vantagens psicohigiênicas;
(c) somente um "eu" de constituição forte é realmente livre;
(d) os conteúdos das idéias falsas (idéias delirantes) expressam os interesses vitais do enfermo, que pode achar-se em vias de satisfação ou de frustração.
Em segundo lugar, Griesinger mantém que a psiquiatria deve liberar-se das idéias poéticas, filosóficas e éticas, e transformar-se em uma disciplina médica autônoma.
A crítica alemã daquele tempo concedia aos autores franceses o mérito de haver descoberto perspectivas de excepcional importância para a inauguração e o desenvolvimento de uma psiquiatria científica, e reconhecia o valor de suas plásticas descrições, mas lhes reprovava sua falta de visão construtiva de conjunto e sua excessiva despreocupação pelo pensamento filosófico. Os livros franceses mais importantes haviam sido traduzidos ao alemão. A partir de 1879 começa a imperar progressivamente na Alemanha a indiferença mais absoluta aos trabalhos franceses.
A psiquiatria de universidade toma um desenvolvimento florescente nos países de língua alemã. Criam-se numerosas cátedras. Pode dar-se esta relação: Leipzig em 1811; Berlim em 1864; Götingen em 1866; Zürich em 1869; Heidelberg em 1871; Viena em 1877, e Bonn em 1882.
Os mais dignos representantes desta época são: Westphal (18331890), sucessor de Griesinger em Berlim, com contribuições importantes sobre a agorafobia e a neurose obsessiva; Meynert (1833-1893), com trabalhos de interesse sobre o cérebro (em Viena foi chefe de Freud); Wernicke (1848-1905), seguidor também da orientação encefálica da psiquiatria. Esta orientação localizatória cerebral cometeu alguns excessos, nomeados por Nissl como a "mitolologia cerebral" e por Kraepelin como "anatomia especulativa (filosófica)".
Em meados do século XIX se impõe a convicção de que a anatomia patológica não trazia os resultados em psiquiatria, exceto os dados positivos obtidos na demência senil e na paralisia geral, que se esperavam. Ocorre a Segunda Revolução Psiquiátrica com as concepções de Kraepelin (1856-1925) e Freud (1856-1939). Da nosografia de Kraepelin renegamos todos os dias, e todos os dias voltamos a refugiar-nos nela, era o que se dizia (e se diz) em sua época. Binswanger disse que sua obra não haveria sido possível sem a nosologia de Kraepelin.
A grande lição de Kraepelin: Há que se aproximar do Ieito do paciente e observá-lo com um olhar científico-natural.
A grande lição de Freud: Há que se escutar o paciente e compreendê-lo.
Estas são as duas belas lições clínicas que este autor (AT), aprendeu em seus seis anos de pós-graduação pela Europa.
Kraepelin é o "grande homem" da "psiquiatria pesada" (psicose e asilos); Freud, o "grande homem" da "psiquiatria leve", porém, não menos sofrida (neurose e consultórios).
Em 1900, com a obra de Kraepelin, a Alemanha se reafirma no timão (da embarcação), na função diretiva da psiquiatria científica. Kraepelin destacando o valor da investigação clínica frente à anatomia patológica e a especulação. E valorizando o estudo do curso total da enfermidade como dado clínico mais significativo.
A Kraepelin se deve outro fato histórico transcendental: a emancipação da psiquiatria em relação à medicina interna. Pinel e Griesinger haviam sido médicos internistas. Produz-se aqui a nota aparentemente paradoxal de que a psiquiatria toma a carta de independência precisamente no momento em que Kraepelin começa a aplicar aos enfermos psíquicos os mesmos métodos que privavam à época em medicina interna.
O fundador da psicanálise tem o grande acerto metodológico de substituir o modelo científico-natural da anamnese pelo registro da biografia do enfermo. A história clínica, desta maneira, deixa de ser a historia de uma enfermidade e se transforma na história de um enfermo.
Jaspers, exímio expositor, se encarrega de introduzir na psiquiatria o pensamento crítico-filosófico e baseando-se, ao mesmo tempo, neste pensamento e nas investigações clínicas obtém o resultado de elaborar uma metodologia sistemática. Sem dúvida, Jaspers é o fundador da metodologia psiquiátrica.
Jaspers, também define o objeto desta metodologia como sendo o psíquico que se deixa captar indiretamente em conceitos de significação constante. Esta definição mostra o limite onde conclui a possibilidade de uma tarefa plenamente científica em psiquiatria.
Na linha de Freud, e como seus precursores se encontram, sobretudo, Charcot (1825-1923), Babinski (1857-1932) e Pierre Janet (1859-1947). Para Charcot, a histeria era uma enfermidade hereditária da cápsula interna cerebral. O motivo deste erro já foi explicado muitas vezes. Para Babinski, seu discípulo, os fenômenos histéricos se caracterizavam por ser produzidos pela sugestão e curáveis pela persuasão; baseando-se nesta última característica, faz a proposta de substituir o termo "histeria" por "pitiatismo".
Janet, também discípulo de Charcot, escreveu trabalhos muito importantes sobre as neuroses e a psicoterapia. Seus dois conceitos originais mais difundidos são os da psicastenia e tensão psicológica.
A concepção psicológica de Janet consiste em "a psicologia dinâmica". Não se deve confundir este termo com psicodinâmico, que é uma noção central na psicanálise. Ambos têm em comum o referir-se a uma suposta energia psíquica, umas hipotéticas forças psicológicas.
A astenia psíquica ou hipotensão psicológica, conceito essencialmente energético, que se manifesta por um déficit na energia ou na atividade psíquica voluntária e consciente. Para Janet, sobre esta incapacidade se constrói o desenvolvimento dos tipos de neurose mais representativos: a neurose constitucional, a histeria e a psicastenia. Esta última se caracteriza peIa angústia, fobias e obsessões. A psicastenia, assinala Janet, depende de dois gêneros de influências: as pessoais ou vivenciais e as extra-pessoais ou biológicas. Acrescenta que na vida real a psicastenia se deve sempre à combinação de uma dificuldade psíquica, mais ou menos pronunciada com uma debilidade biológica, mais ou menos notória.
Para Janet, os conflitos psicológicos não são a causa principal das neuroses, mas que devem considerar-se quase sempre como uma expressão da hipotensão psicológica. Entre os fatores responsáveis da hipotensão, de onde se derivam a maior parte das neuroses, Janet distingue duas séries: os fatores persistentes, principalmente, a constituição hereditária e a educação nociva, e os fatores acidentais, em especial o esgotamento psicológico e social. Dizia: "A vida social existe para esgotar os homens". Janet lamenta de não poder formular com mais precisão as relações entre os fatores psicológicos e os fisiológicos. Concebe as neuroses, na linha de Cullen, como "um transtorno funcional do organismo que não se acompanha de uma deterioração da própria função". As neuroses se contrapõem, assim, às lesões orgânicas. Janet contribui em ligar as neuroses à psicoterapia: a psicoterapia é um remédio eficaz nas neuroses e uma medida estéril no tratamento das lesões orgânicas. Para Janet, a psicoterapia é essencialmente "uma educação do espírito".
Janet tem o acerto de considerar a hipnose como uma técnica de sugestão e o fenômeno hipnótico, como um fenômeno psicológico que não se acompanha de elementos físicos. A fisiologia não permitiria explicar o fenômeno hipnótico, nem sequer reconhecer se existe ou não.
Na tese de Janet sobre a etiologia das neuroses figura uma combinação de fisiogenia e psicogenia. Este é um de seus maiores méritos.
Os trabalhos preliminares de Freud sobre a histeria estariam inspirados na obra de Janet, particularmente, no conceito de dissociação da consciência. Freud coincide com Janet em dois pontos essenciais:
1º. Muitos fenômenos histéricos se acompanham de um campo de consciência estreito e dissociado, que Freud e Breuer chamam de estado hipnóide, por sua analogia com a hipnose.
2º. O mecanismo patogênico da histeria consiste na dissociação de grupos de representações. Esta dissociação se deveria, segundo Janet, à hipotensão psicológica, de gênese mais fisiológica que psicológica e, segundo Freud, aos traumas psíquicos ou à repressão de elementos psíquicos conflitivos.
A técnica de psicoterapia utilizada por Janet era demasiado rudimentar e se baseava na pedagogia e sugestão. A entidade psicastenia padece de excessiva amplitude ou imprecisão. Muitos enfermos incluídos na psicastenia por Janet eram realmente esquizofrênicos.
A ciência atuaI se inicia em 1914, sem que isso implique, naturalmente, a admissão de que todo o antes seja equivocado, e todo o depois, seja acertado. Há abundantes exceções em ambos os sentidos. Mas a ciência de hoje toma por base as construções cientificas produzidas desde 1914, considerando-as umas vezes como verdadeiras e outras, como pontos de referência necessários.
A psiquiatria oficial dessa época encarnada, em Eugen e seu filho Manfred Bleuler, Kretschmer, Bumke e tantos outros, seguem um caminho muito mais próximo a Kraepelin do que a Freud. A postura anti-psicanalítica, por exemplo, de Bumke, foi muitas vezes apaixonada e contribuiu à nociva cisão da psiquiatria européia em psiquiatria acadêmica ou oficial, e a dinâmica. Bumke reprovava Freud, sobretudo -neste caso não sem razão – o haver incorrido na mitologização racionalista do inconsciente e o haver desenvolvido a concepção tripla da personalidade quando esta é uma entidade radicalmente unitária.
Concluo este artigo historiográfico com a menção honrosa para Kurt Schneider, construtor em grande parte do suporte da psiquiatria e da psicopatologia, atuais. Sua sistemática nosográfica, montada sobre o dualismo empírico, tem uma clareza cartesiana. Talvez padeça do inconveniente de delimitar muito nitidamente os campos psiquiátricos englobados aos métodos científico-natural e histórico-cultural, isto é, à explicação e à compreensão. A neurose e as reações vivenciais, por exemplo, ficariam por conta do método compreensivo. As psicoses sintomáticas e orgânicas, ao método explicativo. Fica, assim, dissociada a psiquiatria em dois campos distintos: o campo médico e explicativo, e o psicológico e compreensivo.
De minha parte (o autor), venho advogando que a psiquiatria é tributária de uma metodologia mista, compreensiva e explicativa, em todos os seus distritos, se bem que uns têm mais afinidade com a via científico-natural, e outros, com a via histórico-cultural.
Notas:
1. A bibliografia encontra-se à disposição, com o autor.
2. A parte I deste artigo encontra-se na Seção Colunistas da RedePsi.