RedePsi - Psicologia

Artigos

História Cultural da Psiquiatria – parte II

(continuação)

6. Psiquiatria Iluminista

O movimento do Iluminismo se estende entre 1740 e 1800. Em reali­dade, já se inicia em fins do século XVII nas artes, na filosofia e na religião. Mas para assinalar o início de suas manifestações no campo da Medi­cina, vale a tardia data de 1740. Por outro lado, a expressão científica desta nova sensibilidade irá confi­gurar-se nos primeiros anos do século XIX. A representação mais genuína deste grande movimento cultural, da mesma forma como ocorre com o nascimento da psiquiatria como ciên­cia, corresponde aos franceses (Diderot, Montesquieu, o naturalista Buffon, Condillac, d'Alembert, Voltaire, Rousseau e por aí vai).

A tradição e a fé são absorvidas no século XVIII pela confiança na razão e na ciência.

Deve admitir-se que a psiquiatria científica começa na França em 1800, com a obra de Pinel. Philippe Pinel (1745-1826) dizia que não queria construir novas hipóteses, mas limi­tar-se à observação e descrição de fatos, de dados fáticos.

Pinel havia recebido luzes iluministas dos escritores Condillac e De Cabanis, com  os quais manteve vínculos de amizade. Influíram sobre ele especialmente Descartes e os enciclopedistas do século XVIII. As idéias de Descartes e dos enciclopedistas  contri­buem ao nascimento da psiquiatria por haver "naturalizado" o espírito do homem, com o que o seu pensamento se torna mais ra­cional.

Pinel passou para a história da psiquiatria por duas razões: haver liberado o alienado de suas cadeias intelectuais e físicas e por haver iniciado o tratamento moral, que não significa uma ação moralizante, mas uma atividade psicoterapêutica.

Há uma terceira razão para perpetuar a memória de Pinel na história: haver introduzido em psiquiatria o método experimental, vale dizer, a observação repetida dos fatos e da análise racional dos mesmos.

Pinel, inicialmente, na introdução à primeira e à segunda edições de seu Nosographie philosophique e em Médecine clinique, publica­da em 1804, descreve seu método como "a análise aplicada à medicina". "Homenagem eterna seja rendida ao espírito observador de Hipócrates, que perfilou histórias com tanta verdade com laconismo e profundidade, que abriu a verdadeira via da observação, assim como o método descritivo". "Os progressos sólidos que a medicina realizou em todos os tempos são devidos ao método analítico, e se deve esperar a aplicação de sua doutrina inteira, ao ensino público desta ciência". A me­dicina clínica se torna mais precisa e exata pela aplicação da análise".

O método analítico, a que Pinel se refere, deve-se a Condillac, reitor do pensamento filosófico da geração de Pinel. "A análise não consiste mais que em compor e decompor nossas idéias para fazer com elas di­ferentes composições e para descobrir, por este meio, as relações que há entre elas e as novas idéias que assim se podem produzir. Esta análise é o verdadeiro segredo dos descobrimentos porque nos faz remontar sem­pre à origem das coisas. Tem a vantagem de não oferecer mais que poucas idéias de cada vez e sempre com o grau mais simples", é o que diz Condillac em Ensayo sobre el origen de los conocimientos humanos.

Sobre a utilização comum da análise, Condillac e Pinel se expressam em termos semelhantes. "A análise é conhecida não somente pelos filósofos, mas por todo  mundo, e eu não ensinei nada ao leitor, limitei-me a destacar o que ele faz continuamente", dizia Condillac em sua Lógica. "Eu, manifestava Pinel, não faço mais que propor ao homem, que está ávido de uma instrução geral, o movimento geral do espí­rito humano".

Em 1810, na quarta edição de sua Nosographie philosophique, Pinel define a medicina experimental, contrapondo-a ao que ele chama empi­rismo estrito, como uma ciência que "consiste em observar com atenção, não referir-se mais que a sinais sensíveis, repetir várias vezes as observações. Aí reside a medicina hipocrática!"

Com a obra de Pinel e de seu discípulo Esquirol, a psiquiatria se libera quase definitivamente das interpretações demonológicas e substitui as construções especulativas peIa coleção de material empírico, no qual se incluem, sobretudo, as investigações de causas somáticas, com o que se estreitam as relações entre a psiquiatria e a medicina.

Neste marco histórico aparecem El médico filósofo, de Weikard e a obra de Reil e Hoffbauer, ambas já citadas, assim como o primeiro tratado norte-americano de psiquiatria, que se deve a Benjamín Rush, e o primeiro tratado de psicoterapia com estrutura científica, publicado em 1803, pelo psiquiatra alemão Reil.

A psicoterapia toma um desenvolvimento importante, mas os psicóticos con­tinuam sendo tributários de métodos pouco humanitários. Continua-se pratican­do a terapia por imersão e se introduz a "cadeira de Darwin", arte­fato projetado por Erasmo Darwin (avô de Charles). Com esta técnica, que consiste em fazer girar o enfermo até que ele expulsasse sangue peIa boca, nariz e ouvidos!

O termo "transtorno nervoso" tornara-se popular desde os trabalhos de Willis. De sua delimitação se ocupa, em 1764, o livro de Whytt, Trastornos nerviosos, hipocondríacos e histéricos, título que une o termo de Willis com os dois propostos por Sydenham para a histeria mas­culina e a feminina, respectivamente. Para Whytt, com o termo "trans­torno nervoso" deve nomear-se somente a histeria e a hipocondria, e não, como vinham fazendo quase todos os médicos, a totalidade dos transtornos cuja natureza e causa, permaneciam ignoradas.

A histeria e a hipocondria, de acordo com a proposta de Sydenham, continuaram referindo-se à mesma doença na mulher e no homem, até que Boissier de Sauvages, em Nosologia methodica, em 1763, estabele­ce que ambas as enfermidades podem aparecer em ambos os sexos e que sua associação é pouco freqüente. Cullen, professor de medicina em Edimburg, introduz o termo "neu­rose", em 1777. 


7. Psiquiatria Romântica

O Romantismo científico fica compreendido entre 1800 e 1848. Sua teoria mais representativa se acha plasmada no idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel. A doutrina do idealismo, na obra, sobretudo de Schelling, toma a forma da "filosofia natural", que preconiza "a radical superioridade da especulação filosófica sobre o experimen­to". A filosofia natural, modelo de ciência especulativa, deixaria depois a pista livre à ciência natural, modelo de ciência empírica. Desta forma, a especulação faz declinar a instância da observação e do experimento.

É na Alemanha onde aparece uma psiquiatria inteiramente "romântica". Na França, a psiquiatria continua desenvolvendo-se por um caminho estritamen­te técnico e científico. Algo parecido ocorre com o conjunto da medi­cina: medicina romântica na Alemanha e sensualista na França.

A psiquiatria entra nesta época sob a égide de Pinel (falece em 1826), que havia distribuído as enfermidades psíquicas nos quatro tipos seguintes:

1. A "mania" ou "delírio geral", onde se incluíam quadros esquizofrênicos, maníacos e hipomaníacos.

2. A "melancolia" ou "delírio ex­clusivo", que compreendia, sobretudo, as depressões ciclotímicas e as formas depressivas da esquizofrenia.

3. A "demência" ou destruição do pensamento, onde se incluíam os paralíticos gerais (neurossífilis), e os esquizofrêni­cos crônicos.

4. A "idiotia" ou ausência de todas as faculdades mentais.

Pinel teve muitos discípulos em medicina interna, mas em psiquiatria só teve dois: Ferrus (1764-1861) e Esquirol (1772-1840). O trabalho do primeiro se limita à luta peIa reforma dos asilos psiquiátricos e a impulsionar a ergoterapia. Pinel havia assinalado como lei fundamental dos estabelecimentos psiquiátricos a prática de exercícios físicos e tra­balhos mecânicos, mencionando como exemplo neste sentido o Hospital Psiquiátrico de Zaragoza.

Esquirol se destaca como brilhante reformador da assistência psi­quiátrica e fundador de uma grande EscoIa. Assistente de Pinel na Sal­pétrière (Paris). Em 1811 é nomeado Co-Diretor, com Pinel, desta clínica. A partir de 1817, em que ministra um curso sobre "o tratamento da insânia" e desenvolve uma excepcional atividade docente. Seus discípulos, algu­ns destacados como Moreau de Tours, Baillarger, Bayle, Falret e Georget, se contam às dezenas. Assim, se constitui a Escola Francesa de Psiquiatria que carrega em suas mãos a tocha desta ciência duran­te a primeira metade do século XIX.

Sob as diretrizes assinaladas por Esquirol se constroem numerosos estabelecimentos psiquiátricos (os de Rouen, Nantes, Charenton, Montpe­llier, Marsella, Le Mans e por aí vai). Em 1826 é nomeado médico-chefe do Esta­belecimento Público de Charenton, em Paris. É o autor do projeto da célebre lei promulgada na França, em 1838, sobre o regime dos estabele­cimentos psiquiátricos.

Esquirol superou o mestre Pinel, sobretudo, nos dotes clínicos de observação e em eficácia didática. Incorpora à psiquiatria a teoria cerebral de Gall. Estabelece os traços diferenciais entre as ilusões e as alucinações. Realiza, também, importantes descobertas nos campos da psicogênese e da psicoterapia. Orienta o tratamento dos enfermos psíquicos com um critério racional e humanitário, suprimindo a aplicação de procedimentos curativos brutais, como a cadeira giratória de E. Darwin. Sua obra principal, Des maladies mentales considérées sous les rapports médicaux, hygièniques et médico-Iegaux, Paris, 1838, foi traduzida ao es­panhol, com o título Tratado completo de Ias enajenaciones mentales, Madri, 1847.

Entre seus discípulos com orientação psicológica (psicodinamicista) – orientação seguida também por Pinel e Esquirol com uma linha eclética geral -, sobressaiam: Baillarger, que isola "a loucura de dupla forma"; Falret, a quem se podem atribuir os dois grandes descobri­mentos da psiquiatria francesa: a paralisia geral e a "loucura circu­lar", e o belga Guislain.

E entre seus discípulos somaticistas ou organicistas se encontravam: Moreau de Tours, primeiro autor que formula a hipótese da degeneração e con­siderado em alguns círculos de seu próprio país como "o pai da psico­farmacologia" por haver se auto-administrado haschich com uma fina­lidade experimental; Bayle, que interpreta a paralisia geral progressiva como uma seqüela de uma meningoencefalite crônica; Georget, o discípulo predileto de Esquirol, que atribuía todas as enfermidades psíquicas, in­clusive a histeria, a lesões cerebrais; Calmeil e Voisin.

Nesta época sobressaem na Grã-Bretanha o psiquiatra e antropólogo Prichard (1785-1848), iniciador do estudo científico das psicopatias com a designação de moral insanity (insânia ou loucura moral), e Conolly (1794-1866), que impõe nos estabelecimentos psiquiátricos o siste­ma no-restraint ("nenhuma contenção ou sujeição").

Na Alemanha, a psiquiatria de princípios do século XIX, como ocorria com os demais ramos da medicina, estava absorvida peIas especulações éticas e religiosas, e pelo pathós do romantismo.

A psiquiatria alemã desta época toma um tom plenamente român­tico. É uma psiquiatria espiritualista e moral. O que eles chamavam "psi­cológico" era mais de ordem moral, enquanto que, ao contrário – coisa notável -, o que os franceses da época denominavam "moral" é psico­lógico em sua maior parte. Para os alemães do século XVIII a enfermidade era uma conseqüência do pecado.

O maior representante desta psiquiatria alemã foi Heinroth (1773-1843), que em 1811 ocupou a primeira cátedra universitária de psiquiatria alemã em Leipzig. Para Heinroth a enfermidade psíquica era uma enfermidade da alma, o castigo do pecado, e sua radical essência era a perda da liberdade. O pecador seria castigado por Deus com a perda do livre arbítrio. Nestas idéias parece haver-se inspi­rado, o meu (do autor) mestre na França, Henri Ey para definir a psiquiatria como a Patologia da Liberdade. Heinroth tem o mérito de haver criado o termo "Medicina Psicossomática".

Reaparece a concepção demonológica em alguns psiquiatras da época, especialmente em Kerner (1786-1862). A lânguida vida da psi­quiatria alemã naquela conjuntura só tem um ponto brilhante: a organização de hospitais psiquiátricos, apesar do grave inconveniente de continuar aplicando técnicas desumanas como a cadeira giratória, a ducha e as terapias "pela dor" e "pela náusea".


8. Psiquiatria Positivista e Atual

É no período do Positivismo naturalista quando novamente se impõem a observação e o experimento sobre a especulação no desenvolvimento das ciências. Seus limites são os anos 1848 e 1914. Sua carta magna é o Discurso sobre el espíritu positivo, de Comte. Estabelece-se como princí­pio fundamental o de ater-se à observação direta ou instrumental (ex­perimento) dos fatos e à formulação dos mesmos em leis. No homem não haveria nada inacessível à investigação realizada com a metodologia da ciência natural. 

Aqui começa o declínio da psiquiatria francesa com a formulação da doutrina da degeneração, cujas idéias básicas se acham pré-­formadas na obra de Moreau de Tours (1804-1848). Mas seu desenvolvimento completo se deve a Morel (1809-1873), discípulo de Falret. A degeneração se regeria pela "Iei da progressividade": na primeira geração apa­rece o temperamento nervoso; na segunda, a neurose; na terceira, a psicose; na quarta, a oligofrenia e com isso o fim da descen­dência.

Magnan (1835-1916) dá um novo giro a esta doutrina a partir de 1870, interpretando seu fato básico como uma regressão atávica, como uma vol­ta atrás.

A redescoberta das leis de Mendel, por entre os séculos XIX e XX, põe um ponto final ao conceito de herança inespecífica e polimorfa, que servia de base à teoria da degeneração.

Em 1857 Esmarch e Jessen formulam, na Alemanha, a correlação causal entre a sífilis e a paralisia geral. A transcendência deste fato pode imaginar-se tendo presente que aproximadamente 30% da população psiquiátrica hospitalizada daquele tempo eram pa­ralíticos gerais.

Nesta época aparece a obra do Pinel alemão, Griesinger (1817-1869). Foi o primeiro professor de medicina interna em Tübingen, Kiel e Zürich. Em 1864 é nomeado professor de psiquiatria e neurologia de Berlim (segunda cátedra universitária da Alemanha), com o que, de acordo com a ex­pressão de Jaspers, a "psiquiatria de asilo" começa a transformar-se em "psiquiatria de universidade". A tocha psiquiátrica passa então de mãos francesas a mãos germânicas, sendo precisamente Griesinger o fundamental promotor desta permuta.

Griesinger, apesar de sua conhecida fórmula "as doenças psí­quicas são doenças do cérebro", se ocupa com eficácia do estudo dos aspectos psicológicos do enfermo, se mostra algo influenciado peIas idéias da psiquiatria alemã romântica e adapta, sobretudo a linha da psi­quiatria eclética. Ainda que aceite o postulado da psicose única, ditado por seu mestre Zeller, continua em linhas gerais a nosologia de Pinel. Também põe um nobre empenho, como Pinel, em organizar as técnicas da terapia psiquiátrica. A tocha internacional da psiquiatria passa para suas mãos e desde então não sai mais da Alemanha. Com a obra de Griesinger, se estabelece o império da concepção cien­tífico-natural na psiquiatria alemã.

Porém, há na obra de Griesinger outros dois aspectos que merecem rememorar-se. Em primeiro lugar o de não haver descuidado da análise da sintomatologia psíquica. Estes estudos analíticos lhe conduzem à ob­tenção de interessantes conclusões, entre as quais figuram:

(a) a porção mais importante e extensa do acontecer psíquico é de cará­ter inconsciente;

(b) a possessão de um estilo de vida definido leva im­plícitas vantagens psicohigiênicas;

(c) somente um "eu" de constituição forte é realmente livre;

(d) os conteúdos das idéias falsas (idéias delirantes) expressam os interesses vitais do enfermo, que pode achar-se em vias de satisfação ou de frustração.

Em segundo lugar, Griesinger mantém que a psiquiatria deve liberar-se das idéias poéticas, filosóficas e éticas, e transformar-se em uma disciplina médica autônoma.

A crítica alemã daquele tempo concedia aos autores franceses o mérito de haver descoberto perspectivas de excepcional importância para a inauguração e o desenvolvimento de uma psiquiatria científica, e reconhecia o valor de suas plásticas descrições, mas lhes reprovava sua falta de vi­são construtiva de conjunto e sua excessiva despreocupação pelo pensa­mento filosófico. Os livros franceses mais importantes haviam sido traduzidos ao alemão. A partir de 1879 começa a imperar progressivamente na Alemanha a indiferença mais absoluta aos trabalhos franceses.

A psiquiatria de universidade toma um desenvolvimento florescente nos paí­ses de língua alemã. Criam-se numerosas cátedras. Pode dar-se esta relação: Leipzig em 1811; Berlim em 1864; Götingen em 1866; Zürich em 1869; Heidelberg em 1871; Viena em 1877, e Bonn em 1882.

Os mais dignos representantes desta época são: Westphal (1833­1890), sucessor de Griesinger em Berlim, com contribuições importan­tes sobre a agorafobia e a neurose obsessiva; Meynert (1833-1893), com trabalhos de interesse sobre o cérebro (em Viena foi chefe de Freud); Wernicke (1848-1905), seguidor também da orientação encefálica da psiquiatria. Esta orientação localizatória cerebral cometeu alguns excessos, nomeados por Nissl como a "mitolo­logia cerebral" e por Kraepelin como "anatomia especulativa (filosófica)".

Em meados do século XIX se impõe a convicção de que a anatomia patológica não trazia os resultados em psiquiatria, exceto os dados positivos obtidos na demência senil e na paralisia geral, que se esperavam. Ocorre a Segunda Revolução Psiquiátrica com as concepções de Kraepelin (1856-1925) e Freud (1856-1939). Da nosografia de Kraepelin renegamos todos os dias, e todos os dias voltamos a refugiar-nos nela, era o que se dizia (e se diz) em sua época. Binswanger disse que sua obra não haveria sido possível sem a nosologia de Kraepelin.

A grande lição de Kraepelin: Há que se aproximar do Ieito do paciente e observá-lo com um olhar científico-natural.

A grande lição de Freud: Há que se escutar o paciente e compreendê-lo.

Estas são as duas belas lições clínicas que este autor (AT), aprendeu em seus seis anos de pós-graduação pela Europa.

Kraepelin é o "grande homem" da "psiquiatria pesada" (psicose e asilos); Freud, o "grande homem" da "psiquiatria leve", porém, não menos sofrida (neurose e consultórios).

Em 1900, com a obra de Kraepelin, a Alemanha se reafirma no ti­mão (da embarcação), na função diretiva da psiquiatria científica. Kraepelin destacando o valor da investigação clínica frente à anatomia patológica e a especulação. E valorizando o estudo do curso total da enfermidade como dado clínico mais significativo.

A Kraepelin se deve outro fato histórico transcendental: a emancipação da psiquiatria em relação à medicina interna. Pinel e Griesinger haviam sido médicos internistas. Produz-se aqui a nota aparentemen­te paradoxal de que a psiquiatria toma a carta de independência precisa­mente no momento em que Kraepelin começa a aplicar aos enfermos psíquicos os mesmos métodos que privavam à época em medicina interna.

O fundador da psicanálise tem o grande acerto metodológico de subs­tituir o modelo científico-natural da anamnese pelo registro da bio­grafia do enfermo. A história clínica, desta maneira, deixa de ser a histo­ria de uma enfermidade e se transforma na história de um enfermo.

Jaspers, exímio expositor, se encarrega de introduzir na psiquiatria o pen­samento crítico-filosófico e baseando-se, ao mesmo tempo, neste pensamento e nas investigações clínicas obtém o resultado de elaborar uma me­todologia sistemática. Sem dúvida, Jaspers é o fundador da metodologia psiquiátrica.

Jaspers, também define o objeto desta metodologia como sendo o psíquico que se deixa captar indiretamente em conceitos de signi­ficação constante. Esta definição mostra o limite onde conclui a pos­sibilidade de uma tarefa plenamente científica em psiquiatria.

Na linha de Freud, e como seus precursores se encontram, sobretudo, Charcot (1825-1923), Babinski (1857-1932) e Pierre Janet (1859-1947). Para Charcot, a histeria era uma enfermidade hereditária da cáp­sula interna cerebral. O motivo deste erro já foi explicado muitas vezes. Para Babinski, seu discípulo, os fenômenos histéricos se caracterizavam por ser produzidos pela sugestão e curáveis pela persuasão; baseando-se nesta última característica, faz a proposta de substituir o termo "histe­ria" por "pitiatismo".

Janet, também discípulo de Charcot, escreveu trabalhos muito impor­tantes sobre as neuroses e a psicoterapia. Seus dois conceitos originais mais difundidos são os da psicastenia e tensão psicológica.

A concepção psicológica de Janet consiste em "a psicologia dinâmi­ca". Não se deve confundir este termo com psicodinâmico, que é uma noção central na psicanálise. Ambos têm em comum o referir-se a uma suposta energia psíquica, umas hipotéticas forças psicológicas.

A astenia psíquica ou hipotensão psicológica, conceito essencialmen­te energético, que se manifesta por um déficit na energia ou na atividade psí­quica voluntária e consciente. Para Janet, sobre esta incapacidade se constrói o desenvolvimento dos tipos de neurose mais representativos: a neurose cons­titucional, a histeria e a psicastenia. Esta última se caracteriza peIa angústia, fobias e obsessões. A psicastenia, assinala Janet, de­pende de dois gêneros de influências: as pessoais ou vivenciais e as extra-pessoais ou biológicas. Acrescenta que na vida real a psicastenia se deve sempre à combinação de uma dificuldade psíquica, mais ou menos pronunciada com uma debilidade biológica, mais ou menos notória.

Para Janet, os conflitos psicológicos não são a causa principal das neuroses, mas que devem considerar-se quase sempre como uma expressão da hipotensão psicológica. Entre os fatores responsáveis da hipoten­são, de onde se derivam a maior parte das neuroses, Janet distingue duas séries: os fatores persistentes, principalmente, a constituição heredi­tária e a educação nociva, e os fatores acidentais, em especial o esgo­tamento psicológico e social. Dizia: "A vida social existe para esgotar os homens". Janet lamenta de não poder formular com mais precisão as re­lações entre os fatores psicológicos e os fisiológicos. Concebe as neu­roses, na linha de Cullen, como "um transtorno funcional do or­ganismo que não se acompanha de uma deterioração da própria função". As neuroses se contrapõem, assim, às lesões orgânicas. Janet contribui em ligar as neuroses à psicoterapia: a psicoterapia é um remédio eficaz nas neuroses e uma medida estéril no tratamento das lesões orgâ­nicas. Para Janet, a psicoterapia é essencialmente "uma educação do es­pírito".

Janet tem o acerto de considerar a hipnose como uma técnica de sugestão e o fenômeno hipnótico, como um fenômeno psicológico que não se acompanha de elementos físicos. A fisiologia não permitiria explicar o fenômeno hipnótico, nem sequer reconhecer se existe ou não.

Na tese de Janet sobre a etiologia das neuroses figura uma com­binação de fisiogenia e psicogenia. Este é um de seus maiores méritos.

Os trabalhos preliminares de Freud sobre a histeria estariam inspirados na obra de Janet, particularmente, no conceito de dissociação da consciência. Freud coincide com Janet em dois pontos essenciais:

1º. Muitos fenômenos histéricos se acompanham de um campo de consciência estreito e dissociado, que Freud e Breuer chamam de es­tado hipnóide, por sua analogia com a hipnose.

2º. O mecanismo patogêni­co da histeria consiste na dissociação de grupos de representações. Esta dissociação se deveria, segundo Janet, à hipotensão psicológica, de gênese mais fisiológica que psicológica e, segundo Freud, aos traumas psí­quicos ou à repressão de elementos psíquicos conflitivos.

A técnica de psicoterapia utilizada por Janet era demasiado rudimen­tar e se baseava na pedagogia e sugestão. A entidade psicastenia padece de excessiva amplitude ou imprecisão. Muitos enfermos incluídos na psicastenia por Janet eram realmente esquizofrênicos.

A ciência atuaI se inicia em 1914, sem que isso implique, naturalmente, a admissão de que todo o antes seja equivocado, e todo o depois, seja acertado. Há abundantes exceções em ambos os sentidos. Mas a ciência de hoje toma por base as cons­truções cientificas produzidas desde 1914, considerando-as umas vezes como verdadeiras e outras, como pontos de referência necessários.

A psiquiatria oficial dessa época encarnada, em Eugen e seu filho Manfred Bleuler, Kretschmer, Bumke e tantos outros, seguem um caminho muito mais próximo a Kraepelin do que a Freud. A postura anti-psicanalítica, por exemplo, de Bumke, foi muitas vezes apaixonada e contribuiu à nociva cisão da psi­quiatria européia em psiquiatria acadêmica ou oficial, e a dinâmica. Bumke re­provava Freud, sobretudo -neste caso não sem razão – o haver inco­rrido na mitologização racionalista do inconsciente e o haver desenvolvido a concepção tripla da personalidade quando esta é uma entidade radicalmente unitária.

Concluo este artigo historiográfico com a menção honrosa para Kurt Schneider, construtor em grande parte do suporte da psiquiatria e da psicopatologia, atuais. Sua sistemática nosográfica, montada sobre o dualismo empírico, tem uma clareza cartesiana. Talvez padeça do inconveniente de delimitar muito nitidamente os campos psiquiátricos englobados aos métodos científico-natural e histórico-cultural, isto é, à explicação e à compreensão. A neurose e as reações vi­venciais, por exemplo, ficariam por conta do método compreensivo. As psicoses sintomáticas e orgânicas, ao método explicativo. Fica, assim, dissociada a psiquiatria em dois campos distintos: o campo médico e explicativo, e o psicológico e compreensivo.           ­

De minha parte (o autor), venho advogando que a psiquiatria é tributária de uma metodologia mista, compreensiva e explicativa, em todos os seus distritos, se bem que uns têm mais afinidade com a via científico-natural, e outros, com a via histórico-cultural.


Notas:
1. A bibliografia encontra-se à disposição, com o autor.

2. A parte I deste artigo encontra-se na Seção Colunistas da RedePsi.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter