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Uma alternativa para o não adoecimento no trabalho de motorista de ônibus urbano

Os trabalhos realizados por pesquisadores do Campo da Saúde Mental e Trabalho nos mostram que este pode ter uma dupla dimensão: ele tanto pode ser terapêutico como pode ser patogênico. Este fato se evidenciou para mim quando fui trabalhar em uma clínica que tem convênio com grande parte do setor de transporte urbano e rodoviário de Belo Horizonte e região metropolitana. Motoristas e cobradores procuram o atendimento psicológico por diversos motivos. Para alguns o trabalho tem função terapêutica, para a grande maioria ele é adoecedor e em todos tenho a impressão de ouvir a mesma música de fundo: O estresse  é peculiar à profissão.

Há controvérsias quanto ao nexo causal entre doença e trabalho. Há abordagens organicistas que tentam explicar o adoecimento a partir de uma visão apenas biológica. Há outras, originadas de uma tendência a psicologização, que interpretam os fatos considerando apenas mecanismos psicológicos. Um tema tão complexo como este deve ser olhado por diversos ângulos, o social, o psicológico, o orgânico e quantos mais forem possíveis. É o que o método de Lê Guillant propõe; entender as características do trabalho, interpretar as evidências clínicas e articular a isso a história de vida da pessoa. Embora de maneira mais simplificada, procurei construir este pequeno estudo de caso pelo método inspirado em Lê Guillant, que tem como pressuposto ir ao objeto primeiramente. Este objeto é que conduz a pesquisa e nos mostra articulações possíveis com autores deste campo de estudo. O meu modo de ir até este objeto foi escutando os motoristas na clínica e observando-os em seu trabalho, já que sou uma usuária freqüente de ônibus urbano.
 
(…) o estudo de casos particulares é, sem dúvida, primordial. Deve-se começar por escutar uma telefonista, uma mecanógrafa ou um O. S., além de obervá-los na vida cotidiana e na atividade profissional…Eis o começo de tudo. P.239 Le Guillant  Por trabalhar em uma clínica que possui todas as especialidades médicas, muitos destes pacientes chegam até a psicologia encaminhados por neurologistas, psiquiatras e vários outros especialistas. Vejo este fato de maneira positiva porque o risco de olhar para estes casos de forma unilateral é menor. Além do mais é preciso ter o cuidado de não psicologizar algo que pode ter um forte componente orgânico. Le Guillant nos alerta sobre isto;   Ao observarmos de relance os fatos que, na etiologia dos distúrbios mentais, permite atribuir um importante papel as condições do meio, deveríamos insistir de forma detalhada, antes de tudo, dobre a ausência  total de lesões orgânicas, no sentido habitual da expressão, suscetíveis de explicá-los. (GUILLANT, 2006, p.24)   

Um dos motoristas atendidos me chamou atenção pelo relato de não sofrer pelo estresse da sua profissão  por ter encontrado uma alternativa para evitá-lo. Trata-se de um paciente de 50 anos, veio à clínica por causa das duas filhas adolescentes, já que a primeira avaliação é feita com os pais. Durante a consulta porém, Pedro começa a desabafar sobre a pouca valorização do seu trabalho. É motorista há 28 anos, trabalhou em 8 empresas de coletivo diferentes. Pedro trouxe muitos elementos presentes em outros relatos de motoristas que adoeceram. Por isso me foquei em  seu caso para entender como ele conseguiu ficar 28 anos consecutivos trabalhando como motorista sem nunca ter levado um atestado médico, como repetiu várias vezes em seu relato, já que o fato se mostra extremamente  comum na categoria.

Cada empresa implanta um tipo de regulamento mas, que não se preocupa com o motorista são todas. Se você pega um atestado médico, pra eles é a morte, eles não gostam. Eu nunca levei, eu vejo muito colega encostado que realmente precisa (…)  mas eles (a empresa) não fazem um acompanhamento daqueles que levam muito atestado médico, não procuram saber porque, devia ter uma assistente social pra ver se o cara realmente ta necessitando do atestado. Tem colegas que não tão afim de trabalhar, que compram atestado médico, são poucos mas, prejudica o próprio colega. Você pega serviço 5 h da manha e larga 14h, seu colega pega atestado e não vai te render, você tá preparado para largar 14 e tem que continuar. A empresa tem um reserva, se ele já estiver em outra substituição é você que tem que dobrar. 

Tal fala nos leva a refletir sobre outro componente  que é decisivo no trato das patologias desencadeadas pelo trabalho; as condições que a empresa fornece ao funcionário para executar a tarefa.  Na intenção de manter o controle sobre o trabalho e de favorecer a empresa ao máximo, algumas regras são inviáveis ao funcionário.

ANTUNES (1995), nos mostra que, esta ambigüidade presente nas estruturas estratégicas favorece as ações arbitrárias e torna a organização ainda mais poderosa e o indivíduo ainda mais vulnerável (p.55).  Dois exemplos disto, trazidos por Pedro, são a questão da evasão e a determinação do quadro de horários a ser cumprido pelo motorista. No primeiro caso ele diz;
   
Temos um problema de evasão que é muito sério, pessoas que não pagam passagem, eles chegam simplesmente e falam “ô motor, vou descer aí”, e nós estamos a mercê disso, porque as empresas só cobram “olha vocês não podem deixar descer pela porta dianteira”, nós que temos que bater de frente com os evasores  e as próprias empresas não fazem nada contra isso, nós é que temos que nos virar. Foi cobrado de mim uma vez. Eles me chamaram e falaram “ô Pedro, desceram duas passageiras na porta dianteira e não pagaram passagem, o fiscal te anotou”, eu virei pra ele e falei “olha, fala pra ele que ele tá errado, ele tá trabalhando mau, porque lá não desce duas, lá desce é 20, eu rodo são José, lá desce é 10, 15 por viagem”.
 
Em outro momento Pedro relata o seguinte caso;

O cara entrou, ele e namorada, “motor, vou descer aí” eu disse “amigo, você tem algum documento que te dê o direito de descer pela porta dianteira?” ele simplesmente levantou a blusa e mostrou um revólver 38 e me disse “este aqui serve?” 

Outro fator que gera ambigüidade é a questão do quadro de horários. Este é determinado pela BHTRANS e a empresa distribui a escala para os motoristas. A empresa hoje é  terceirizada, se aquela linha de ônibus tem muita reclamação ou perde muita viagem, a BHTRANS a substitui por outra. Cada viagem programada tem um horário de saída e outro de chegada. Não são considerados imprevistos. Se um ônibus fica preso no engarrafamento, por exemplo, será necessário fazer uma viagem complementar para que se cumpra a quantidade determinada para aquele dia. O motorista, desta maneira, não tem hora certa para sair do trabalho como se pode perceber pela fala de Pedro;   o trânsito em si tá muito tumultuado, complicado, você tem hora pra sair do sinal e pra chegar no sinal, você sai com aquela preocupação, mas é uma coisa que não tem como fazer nada já que é um quadro de horário determinado. Eles não trabalham em cima de imprevistos, eles trabalham em cima da quantidade de carros, quebrou tem que fazer uma viagem extra, a BHTRANS determinou que não pode faltar viagem, a empresa tem que cobrir todas as viagens que estão nos quadro de horário, (..) então,  se o carro quebrou no meio do caminho e não completou a viagem é feita outra viagem complementar, que vai começar de novo no mesmo local e fechar no outro a viagem que quebrou é suspensa. Não pode perder nada 

Segundo Dejours, citado por ANTUNES (1995), os estudos realizados pela psicopatologia do trabalho revelam que o equilíbrio psíquico e a saúde mental do indivíduo são afetados pelas pressões originadas pela organização do trabalho. A fala de Pedro revela aspectos da organização do trabalho do motorista que influenciam de maneira decisiva a saúde do indivíduo. Tenho recebido com freqüência na clínica motoristas afastados,  cobradores em menor grau,  por  estresse com fortes componentes ligados ao seu trabalho. Um deles foi assaltado 40 vezes em três anos e por fim atropelou acidentalmente um pedestre que foi a óbito. Ele estava atrasado para cumprir o horário e como trafegava em BR não deu tempo de freiar quando a vítima se jogou  na frente do ônibus. Este motorista apresenta desde então um quadro de estresse pós-traumático, foi encaminhado pelo psiquiatra. Não consegue dormir a noite, tem pesadelos freqüentes, relata não conseguir esquecer a cena. A empresa pediu seu afastamento. Nos últimos meses em que trabalhou, não estava parando paras pessoas que davam sinal porque achava que todos eram ladrões. Começou a ter delírios, a enxergar bandidos que já o assaltou por toda parte. Escutava ameaças dentro do ônibus e não sabia de onde vinham. Depois de 5 meses de afastamento não consegue entrar num ônibus nem como passageiro. Um outro caso foi de um motorista que teve que ser afastado porque freqüentemente estava tendo dormência nas pernas, chegava a ficar tonto e tinha que parar o ônibus porque não conseguia continuar. Entrou de licença uma vez por isso e durante o período de afastamento melhorou. O INSS liberou para voltar, mas pouco tempo depois, começou a apresentar os mesmo sintomas. No momento se encontra afastado fazendo acompanhamento psicológico porque a bateria de exames que realizou não acusam nada. Este motorista também relata o estresse por evasão e assaltos ocorrido em sua linha. São muitos os casos que tem o fator condição de trabalho como ponto comum na queixa trazida. Diante desta tônica, Pedro chega com um discurso interessante porque sua fala revela a consciência do sofrimento que o trabalho acarreta, mas mostra que é possível encontrar saídas;
 
(…) você tem que buscar alternativa, eu, por exemplo, mudo de empresa, mudo para ônibus rodoviário para poder não acumular muito o estresse se não, não agüento. Esta é uma alternativa que funciona. Eu fico dois, três anos no ônibus urbano, depois saio, fico mais dois, três no rodoviário, aí volto. Eu consigo fazer as trocas com uma certa facilidade até aqui, mas como estou com 50 anos, tende a ficar mais difícil porque o próprio sistema dificulta que o motorista que passou dos 45 anos arrume mais trabalho. Hoje pra arrumar trabalho eu tô velho, pra aposentar eu tô novo. Isto também se torna estressante, é mais uma preocupação porque chega num ponto que eu tenho que ficar numa empresa porque se eu sair eu não arrumo emprego em outra.  Se eu não tivesse criado esta alternativa acho que eu já tinha batido as botas, porque eu tenho colega com o mesmo tempo de trabalho que eu, comecei 10 de fevereiro de 78 a trabalhar com ônibus, que ou tá encostado ou já morreu.

Pedro justifica sua escolha dizendo que a mesma pessoa consegue ser “três”, já que ela se comporta de maneira diferente dependendo do contexto. Segundo ele, a mesma pessoa que é evasora na linha urbana, se comporta com educação no ônibus de turismo. O passageiro de ônibus rodoviário é mais tranqüilo. Ele quer chegar bem, ele se preocupa mais que o motorista esteja bem e na maioria das vezes, ele dorme a viagem inteira. Já o passageiro de turismo está passeando, então ele não tem pressa. É mais amigável. O passageiro de coletivo, porém, sempre tem pressa e não se preocupa nem em chegar bem, eles querem é que o motorista corra; 

Já o passageiro de urbano não, se atrasa 20 min é muito. Ele fica no ponto, se o ônibus atrasa 15 minutos pra ele é uma hora, vc já deve ter escutado isso, “Pô já tem uma hora que eu to esperando este ônibus”, e tem  apenas 15 minutos.

Outro fator que se evidenciou na fala de Pedro e que percebo nos outros casos atendidos é a desvalorização do trabalho;  

Nós não temos o valor, nós hoje somos o último depois de ninguém. Antigamente, nem é do seu tempo, motorista era autoridade máxima dentro do ônibus, não tinha polícia, não tinha nada. Hoje ele não tem voz ativa nenhuma, hoje nós não apitamos nada dentro do ônibus, estamos ali só pra dirigir. Ninguém respeita, entra qualquer um e acha que a gente é um cachorro que está sentado ali. As pessoas não se dão conta que a vida delas está nas minhas mãos.
 
A desvalorização ocorre também por parte da empresa. O fato de pagar 10 h pra quem fez 30 h de hora extra é um exemplo. O fato de estabelecer um quadro horário que não leva em conta imprevistos é outro. CLOT (1998)  nos mostra que o trabalho deve ser organizado, além da direção e da administração, por aquelas e aqueles que o exercem, e esta organização coletiva comporta prescrições indispensáveis para a finalização ou realização do trabalho real (p.9). Vemos que isto não acontece na empresa de Pedro. O fiscal é um modelo deste desajuste. Ele é secreto, o motorista não sabe a hora nem quem é o fiscal. Ele não relata as situações de constrangimento pelas quais o motorista passa, ele apenas aponta se desceram ou não pessoas pela porta da frente indevidamente. Ele não fiscaliza o trabalho, ele fiscaliza o motorista, como o próprio Pedro diz. Outra fonte de tensão, para o motorista e o cobrador, é os assaltos. Além do desgaste da situação em si, é determinado que o cobrador só pode ficar com R$ 35,00 reais, se forem roubados uma quantidade maior, ele tem que pagar para a empresa a diferença. CLOT (1998) esclarece que “não podendo ser gastas em contribuição reconhecida, essas tensões psíquicas expõe os sujeitos a inibições, rejeições e sofrimentos que o vocabulário cotidiano designa sob o termo de stress” (p.7).

Diante disso, considero importante o caso de Pedro porque ele se mostra como uma luz em meio a tantos casos de doença e afastamento.  Assim como SIVADON (2001) afirma que todo sujeito -com raras exceções que resultam da imperfeição das técnicas- é capaz de encontrar ou reencontrar um comportamento ativo e útil sob certas condições, a alternativa encontrada por Pedro para evitar o adoecimento revela que é possível encontrar saídas.  A abordagem destes casos, feita de forma  múltipla, nos leva a entender que a susceptibilidade individual, a organização do trabalho e o contexto cultural em que se está inserido são peças indispensáveis para a compreensão do comportamento do trabalhador.

De fato, ao consideramos a existência exercida pelo meio, é difícil estabelecer a relação entre o que parece ser particular ao individuo e o que se refere ao grupo de que ele faz parte. (GUILLANT, 2006, p.28)   

Diante destas questões o psicólogo vê-se envolto em desafios. Exercer uma clínica social requer acolher os conflitos pessoais como manifestações, ao mesmo tempo sociais e privadas. A visão do contexto funcional do trabalho tem sido de vital importância para o meu exercício de psicóloga clínica, principalmente por atender conveniados que são funcionários associados por empresas. Um dos desafios do psicólogo, notadamente o do trabalho é o de ajudar os indivíduos na difícil trajetória que o trabalho hoje os lança: manter-se em pé por sua sobrevivência e ao mesmo tempo lidar com as contradições que muitas condições organizacionais lhe impõem. É saudável se movimentar rumo a melhor adaptação possível ao trabalho já que este não se adapta ao trabalhador como deveria ser. O engessamento em uma posição laboral subjetiva incômoda 


Referencias Bibliográficas 

LIMA, M. E. Antunes.  Os Equívocos da Excelência. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

LIMA, M. E. (org). Escritos de Louis Le Guillant. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

SIVADON, Paul. Psicopatologia do trabalho. Texto provisório, 2001.

CLOT, Yves. A função psicológica do trabalho. Tradução provisória para uso em sala de aula de La fonction psychologique du travail – PUF, Paris, 1999.
 

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