Introdução Psicológica
O termo raciocínio é usado em dois sentidos: lógico e psicológico. Em seu sentido lógico, consiste em selecionar e orientar os dados do conhecimento, tendo como objetivo alcançar uma integração significativa, que possibilite uma atitude racional ante as necessidades do momento. Chama-se juízo o processo que conduz ao estabelecimento dessas relações significativas. Julgar é, nesse caso, estabelecer uma relação entre dois conceitos, ou idéias. A função que relaciona os juízos recebe a denominação de raciocínio. A palavra serve também para designar as operações dedutivas e indutivas. Em seu sentido lógico, o raciocínio não é nem verdadeiro nem falso: é correto ou incorreto.
Em Psicologia, o termo raciocínio tem o mesmo sentido de pensar, portanto, raciocínio = pensamento. Segundo Magalhães Vilhena, aos objetivos da Psicologia interessa, principalmente, o estudo do "processo efetivo, real, do ato do pensar, das operações psíquicas do pensar consideradas sob o prisma descritivo e genético. Estuda o seu curso efetivo, quer espontâneo, quer provocado, os seus caracteres essenciais, o seu desenvolvimento no tempo e os fatores que para ele concorrem, as suas relações com os restantes conteúdos mentais e com os fenômenos afetivos e volitivos, isto é, com toda a vasta série de processos mentais que acompanham ou mesmo intervêm na operação de raciocinar".
A mais elementar forma do pensar consiste em um vago perpassar na mente de idéias casuais e desconexas, em uma sucessão irregular e acidental de representações e idéias. Trata-se, nesse caso, de "pensamentos" sem significação, desprovidos de lógica e de qualquer utilidade. Esse é o pensamento característico do devaneio, da fantasia, que se manifesta nos momentos de inércia mental e adquire caráter patológico em diversos quadros neuróticos.
Em sua forma superior, o pensamento é um ato reflexivo. A reflexão não é apenas uma sucessão, e sim uma série lógica de idéias; cada idéia articula-se com a precedente, o pensamento segue uma direção. "Os anéis da corrente do pensamento reflexivo derivam dos anéis antecedentes e dão origem aos subseqüentes; as idéias não vão e vêm, confusamente – cada fase do raciocínio é um passo dado de certo ponto em direção a outro ou, falando tecnicamente, é um dos termos do pensamento. Cada termo deixa uma contribuição de que o termo seguinte se utiliza" (Dewey). Nesse caso, o pensamento se manifesta como uma série ordenada, em que os conceitos estão de tal forma unidos entre si que o último elo da cadeia deriva necessariamente do antecedente.
O raciocínio é a operação mental que nos permite aproveitar os conhecimentos adquiridos através da prática social, combiná-Ios logicamente, para alcançar uma forma superior de conhecimento. O processo do raciocínio representa um modo especial de ligação entre conceitos, de seqüência de juízos, de encadeamento lógico de conhecimentos, derivando sempre uns dos outros. Assim como a ligação entre conceitos permite a formação de juízos, a ligação entre juízos conduz à formação de novos juízos e, desse modo, se processa o pensamento. O raciocínio humano é uma cadeia infinita de representações, conceitos e juízos. A fonte de todo esse processo é a experiência sensorial.
O pensamento humano é o fenômeno supremo que é alojado e se manifesta pela matéria organizada de modo especial. O pensamento é correlato com determinada forma de movimento da matéria, o metabolismo cerebral.
O conhecimento humano representa um processo que começa com a sensação e termina com o raciocínio dialético. A sensação e o raciocínio são momentos diferentes, aspectos ou graus do mesmo processo do conhecimento. Por isso, não se pode separá-Ios. O mundo exterior age, sobre nossos órgãos dos sentidos, provocando neles as sensações, e essas sensações em conexão indissolúvel com a atividade do pensamento oferecem o conhecimento dos objetos e de suas propriedades.
A escola associacionista procurou explicar o processo do raciocínio humano através de leis e condições especiais das" associações de idéias". Ao mesmo tempo, essa escola psicológica não levou em conta que no raciocínio intervêm inúmeras operações intelectuais de abstração e generalização. Por outro lado, como as "leis" da associação de idéias não esclareciam o processo do pensamento, procurou-se a influência das "constelações" e a existência de uma "idéia diretriz" para explicar a coerência que se observa no raciocínio normal.
Patologia
Sob a denominação de perturbações da ideação estudam-se, nos tratados de psicopatologia, as alterações da segunda fase do processo do conhecimento, isto é, os distúrbios do conhecimento racional ou intelectual constituído pela formação dos conceitos, a constituição dos juízos e elaboração do raciocínio. As alterações do pensamento são examinadas, habitualmente, em seu curso e em seu conteúdo, muito embora essas alterações sejam de tal natureza que, em determinado enfermo, seja extremamente difícil fazer a distinção entre o que se acha mais atingido, se o curso ou o conteúdo do pensamento. Abandonamos estas denominações tradicionais e consideramos essas alterações como conseqüência de perturbação das operações psíquicas do pensar. Tais alterações são muito variadas, sendo as mais simples aquelas que resultam dos processos nervosos fundamentais: a inibição e a excitação.
Inibição do pensamento
A inibição do pensamento é um sintoma que se manifesta geralmente unido à lentidão de todos os processos psíquicos. Caracteriza-se pela diminuição do número de representações evocáveis na unidade de tempo e pela lentidão do curso do pensamento.
Nos enfermos em que existe inibição do pensamento, observa-se também grande dificuldade na percepção dos estímulos sensoriais, limitação do número de representações e lentidão no processo e evocação das lembranças. "O quadro mais avançado da inibição psíquica coincide com o estupor e passa por ser uma forma do mesmo. Os enfermos inibidos mantêm-se sentados ou deitados na mesma posição, não falam espontaneamente nem respondem às nossas perguntas ou o fazem lentamente ou com grande dificuldade" (Bumke). A perturbação não é apenas quantitativa, mas também qualitativa, pois a alteração atinge a essência do pensamento, isto é, a possibilidade de ser orientado para determinado objetivo e o estabelecimento de ligações entre as representações e os conceitos. Acompanha-se, geralmente, de um sentimento subjetivo de incapacidade.
Nesta observação de Jaspers, a inibição do pensamento se manifesta de forma moderada. "Os meus sentimentos estavam sempre mudando. Os dias alegres para mim eram aqueles em que me interessava por tudo, fazendo alguma coisa conscientemente, individualmente estimulada, julgando as coisas, as pessoas e minha própria pessoa, embora com certa tensão. Nesses momentos procurava toda a companhia possível, empreendia muitas coisas, porque tudo me dava prazer. A transição de um estado de ânimo para outro não era tão repentina, pelo contrário, ia progredindo cada vez um pouco, com o correr dos dias. No outro estado, tinha o sentimento da ausência de interesse, de obtusidade, de imprecisão a respeito das coisas sobre as quais tinha de formar a minha própria opinião. Então, esforçava-me muito para esconder minhas falhas e, em certos casos, lembrava-me de como teria agido nos dias bons. O que mais se altera é minha escrita e, também, o meu modo de andar. Nos últimos tempos, acrescentou-se uma indiferença completa e o fracasso de minha receptividade. Teatros, concertos não impressionam mais minha sensibilidade. Não posso contar nada a respeito deles. Quando converso, perco o fio, quer dizer, um pensamento não se une mais ao outro. Tornei-me insensível a brincadeiras e piadas que surgem na conversa, porque já não as entendo. "
Outro enfermo queixou-se: "Perdi de todo a memória, já não sou capaz de acompanhar uma conversa. Sinto-me como que paralisado, não entendo mais nada, estou completamente abobado. Não consigo dizer, de modo algum, qual é o conteúdo do que leio e do que ouço. Já não tenho vontade, não me resta um resquício de energia, nem de força para agir. Não consigo me decidir por coisa alguma. Fazer um movimento, apenas isso, custa-me grande resolução."
Os enfermos com inibição do pensamento revelam dificuldade na compreensão, dificilmente iniciam uma conversação, demoram a proferir as palavras, pensam com grande esforço e, quando Ihes dirigimos perguntas, custam a responder, porque nada surge em suas mentes perturbadas.
Fuga de idéias
A fuga de idéias é uma perturbação da expressão do pensamento, caracterizada essencialmente por uma variação incessante do tema e uma incapacidade absoluta de levar o raciocínio a uma conclusão. Acompanha-se de uma tendência irresistível a falar, que, nos casos mais pronunciados, atinge a logorréia, verdadeira torrente de palavras relacionadas por assonância e sem sentido lógico.
De acordo com Honório Delgado, a fuga de idéias tem estas características: "1) a desordem e a falta aparente de finalidade completiva das operações intelectuais: mesmo quando há certa relação entre os conceitos próximos, o conjunto carece de sentido, de unidade significativa; 2) o predomínio do mecanismo da associação de idéias – que se revela claramente pela assonância das palavras – com abundância de conceitos disparatados; 3) a facilidade com que se desvia o curso do pensamento sob a influência dos estímulos exteriores (distraibilidade); 4) a freqüente aceleração do ritmo da expressão verbal."
Ao procurar uma explicação causal para o fenômeno, Bumke admitiu que a desordem era devida a um transtorno da atenção, que se acompanha de certo grau de excitação interna e, algumas vezes, também externa. O enfermo com fuga de idéias mostra-se incapaz de concentrar a atenção em um só objeto, dispersando-se em uma multiplicidade de estímulos sensoriais, sem aprofundar nada, chegando muitas vezes a confundir pessoas. Diz Bumke que no campo visual do enfermo "aparecem múltiplas representações simultâneas ou sucessivas, sem que nenhuma delas seja afastada ou retida por um tempo prolongado. Algumas delas deslizam tão rapidamente que não chegam a adquirir forma definida. Em tais condições, se a linguagem, apesar de sua rapidez, não pode seguir a veloz sucessão das idéias e representações, é natural que, com suas incessantes intercalações, produza a impressão de que é o resultado de uma confusão ideofugitiva".
Na concepção de Bumke, a fuga de idéias seria um transtorno propriamente da vigilância, o que poderia estar na dependência de hiperativação do sistema reticular ativador ascendente em um grau que se acha nos limites da fadiga neuronal do referido sistema. A excitação cortical, devido à estimulação enérgica do sistema reticular, determinaria o enfraquecimento dos mecanismos psíquicos inibitórios.
Este ponto de vista está muito próximo da concepção de Jaspers, para quem a causalidade seria de natureza extraconsciente, embora ignorada. Escreveu a respeito: "Tem-se inquirido a causa da fuga de idéias, mas até o momento não se encontrou resposta satisfatória. A fuga de idéias não resulta de aceleração do curso do pensamento, nem é conseqüência de compulsão a falar; não se pode compreendê-Ia pela simples rapidez com que os princípios associativos mudam (por exemplo, a associação sonora), nem pela predominância de tipos inferiores de associação (quando falham os tipos conceituais de associação). A causa está em processos de natureza ignorada, fora da consciência; o todo produtivo da fuga de idéias só se pode descrever, de forma interpretativa, considerando os dois lados do curso do pensamento, do evento associativo e das tendências determinantes."
Vejamos este exemplo citado por Bumke: "Boa tarde! Sim, boa tarde, se a vida é tão doce como mel. Gosta também de açúcar? – fábrica de açúcar – a cana e a corda – não quer enforcar-se? Você, assassino – pai do assassino – o colarinho – o colarinho da camisa – branca como a neve é a inocência – ah, a ingênua inocência! – moela – pata, pata de cachorro, pata de gato – língua de gato – que tem o gosto de chocolate de hospício – onde estão os loucos."
Uma paciente de Jaspers, ao responder à pergunta se mudara de residência no último ano, disse: "Sim, pois era muda e estúpida, mas não surda, conheço a Ida Daube, que está morta, provavelmente morreu de inflamação do ceco; não sei se era cega; o cego Hesse, o grão-duque de Hesse, a irmã Luísa, o grão-duque de Baden, o marido morreu no dia 28 de setembro de 1907, quando voltei, é vermelho-dourada-vermelho."
Ao comentar este exemplo, diz Jaspers que esses enfermos interrompem, a todo instante, sem motivo aparente, o curso do pensamento, começando a dizer uma coisa e, logo em seguida, outra, não conseguindo fixar-se em um único objetivo. No entanto, mostram-se ocupados com uma quantidade enorme de idéias. Os pacientes não se prendem a nenhuma idéia, estão a todo instante passando para coisas acessórias, perdem o fio e não conseguem recuperá-Io novamente. Nada terminam do que iniciaram; saltam, falta-Ihes o fôlego mental, sempre impulsionados por estímulos externos.
Os exemplos citados mostram a existência de uma ligação compreensível entre um e outro termo e esse elemento é essencial para a distinção entre fuga de idéias e pensamento vago.
Pensamento vago
Kurt Schneider mostra como tem sido difícil estabelecer de modo claro as diferentes alterações do pensar, advertindo sobre a impossibilidade de se distinguir aquilo que corresponde ao curso do pensamento, ao ato de pensar, ao conteúdo e ao rendimento do pensamento. Uma das alterações mais difíceis de ser descrita e conceituada é a que recebe a denominação de pensamento vago. Procurei penetrar na intimidade do sintoma tomando como ponto de partida o transtorno da ideação, admitindo que a alteração central consiste na perda das relações conceituais. Como é sabido, na mente normal, os conceitos formam verdadeiros sistemas de relações, passando a ter significação definida apenas no conjunto de que participam. São esses sistemas de relações conceituais que se apresentam perturbados, dando como resultado a alteração característica do pensamento esquizofrênico, que tem recebido várias denominações: "pensamento desagregado" (Bleuler), "pensamento dissociado" (Ziehen) e "pensamento saltígrado" (Carl Schneider). A designação correta seria, do ponto de vista gramatical, "pensamento anfibológico", que significa: pensamento ambíguo, equívoco, obscuro.
Kronfeld e Carl Schneider procuraram fixar novas diretrizes na investigação desse tipo de pensamento, tomando como ponto de partida alguns princípios da fenomenologia de Husserl. O ponto de vista de Kronfeld se centraliza na análise do ato intencional e, desse modo, procurou demonstrar a significação das variações do "ato de objetivação". Em sua opinião, "no ato intencional está contida uma atividade do eu, e sua produção exige a reunião simultânea e a emissão ininterrupta de uma constelação de fatores e de uma infinidade de mecanismos diversos, centralizados e comandados por um núcleo de ativação espontânea". Para Kronfeld, "o centro psíquico de inspiração automática do ato é indispensável à sua execução, e do seu enfraquecimento, debilitação ou ausência resultaria então a perda da espontaneidade, com a impressão de que o ato já não é mais dirigido pelo eu até a sua consumação final". A "transformação do sentimento de atividade consciente" altera o "ato espontâneo" e determina o aparecimento de uma espécie de "ataxia intrapsíquica", no sentido de Stransky.
Por seu lado, Carl Schneider tomou como ponto de partida a noção de estrutura da intencionalidade como correlação noético-noemática, que corresponde à função identificadora e objetivante da consciência. Schneider insiste na necessidade de se estabelecer, na unidade da corrente de vivências, a distinção rigorosa entre o conteúdo e a execução, isto é, o modo de dar-se, de transcorrer na consciência. "A consciência vigil e normal implica um modo típico de execução: cada vivência surge delimitada em seus contornos pelo que se denomina cesura (Zaesur), e ainda por estar ordenada em um encadeamento incessante de acontecimentos correlatos – a sucessão ininterrupta de estados-de-espírito, que constituem a corrente de vivências." Schneider denomina a maneira como as vivências se articulam e se combinam de "arranjos-de-relação". "O arranjo-de-relação consiste no estabelecimento de coligações a priori, ora no sentido da objetividade (relação entre uma coisa e outra, entre um conteúdo e outro, entre objeto e objeto), ora com referência a um eu (relação de alguma coisa com um eu, na forma como lhe é dada). Quando o arranjo-de-relação se faz no sentido da objetividade, isto é, quando se dirige para fatos e coisas da realidade exterior, isso leva então à formação dos chamados estados de coisas ou estados de fatos." … "Quando o arranjo-de-relação se faz com referência ao eu, realiza uma forma de coligação que se define como modo da coisa dada, em que cabem todas as atividades da consciência mesma, combináveis em um número infinito de relações possíveis. É evidente que o arranjo-de-relação constitui o próprio arcabouço da execução psíquica. Não é, porém, vivenciado como tal porque se fundamenta em relações estabelecidas a priori. Vivenciado então, será apenas o modelo-de-disposição, que dá unidade à execução psíquica total. Por isso, esta é vivenciada como modo-de-disposição das vivências, modo que representa o elemento vivencial do arranjo-de-relação. Esse modo-de-disposição independe, porém, dos conteúdos das vivências e das conexões de sentido existentes nos arranjos-de-relação, concretizando assim o aspecto formal mais estrito da vida psíquica consciente. Tal forma varia, é suscetível de alterar-se em condições determinadas e com ela se modifica necessariamente o modo típico de execução da consciência. Com essa mudança de execução, perturba-se conseqüentemente a atividade psíquica total, em suas diferentes esferas de expressão." O pensamento vago, na opinião do autor citado, resulta de uma alteração básica de execução psíquica.
Carl Schneider considera que nos casos de enfermos inteligentes e capazes de uma correta auto-observação, a vacuidade do pensamento determina transtornos emocionais e produz a retração do paciente no meio ambiente. O caso clínico citado como exemplo revela esta alteração, acompanhada das dificuldades que a disfunção básica da execução psíquica determina na expressão do pensamento:
"Compreendo ainda o sentido da palavra que acabo de ouvir, porém a sua conexão em vão a procuro em minha memória. Os pensamentos se atropelam, não estão ordenados com clareza, cruzam em minha cabeça como relâmpagos e, em seguida, vem outro. Tenho a sensação de um extremo aturdimento. Se penso, por exemplo, que são três horas da madrugada, antes que termine o pensamento surge outra idéia. Já não tenho em minhas mãos o curso do meu pensamento. As idéias muitas vezes não são claras, são idéias que não se tem de modo claro, que aparecem de algum modo, porém não sabemos se realmente existem. Junto às idéias principais transcorrem sempre idéias secundárias; embrulham o pensamento, não se chega a nenhum fim no pensar, cada vez é maior a confusão, tudo anda de um lado para outro. Penso em algo afilado e ao mesmo tempo penso em algo que o acompanha; sei muito bem que o acompanha, porém não o vejo senão muito longe. Não posso falar com ninguém sem que me sobrevenham outras frases. O pensamento está mudado, é outro, uma precipitação, uma sensação como se já não me pertencessem as idéias. O que leio se desvanece por completo, quando chego às linhas de baixo não posso dizer o que há nas de cima. Na maioria das vezes tenho outros pensamentos pouco claros. Tenho a sensação do empobrecimento do pensamento, tudo o que penso e vejo me parece incolor, vago, um pouco incompleto. Minha lembrança da Universidade ficou reduzida ao armário onde colocava o abrigo. Se com a melhor boa vontade quero recordar algo, perco o controle das coisas mais simples. E me pus a estudar algo – foi a termologia – mas em vão."
Transcrevo em seguida a composição de um paciente que demonstrava relativa conservação da personalidade:
"Não tenho palavras para agradecer este gesto de singular importância que vem representar os verdadeiros anseios das classes, cujo passado conduz e reforça propugnar por uma causa justa de suas reivindicações, na verdade o tempo sempre foi a maior Escola da Humanidade em toda a sua História. A justiça nasceu por certo do equilíbrio das forças, em cujo tempo continua e continuará sempre cedendo espaço para que todos os bem intencionados se locupletem a famigerada busca de irreverentes lutadores das causas ganhas. O esforço com que cada um se empenha é realmente construtivo e exemplar. A luta por uma causa justa não é impor grilhões a ferro e fogo, é um dever que só pode ser obtido pela representação inconteste dos trabalhadores pela liberdade. Liberdade no bom sentido é o emprego da Educação certa e adequada a cada povo na medida em que este próprio povo exige dados aos seus costumes, hábitos e necessidades indispensáveis ao equilíbrio suficiente para desempenhar o seu papel com honra, dignidade e altivez que sobreponham o ódio, a vingança e o despreparo, capazes realmente de conduzir ao caos total de toda a Humanidade. Este é realmente um momento de reflexão para todos os que inspirados de uma forma ou de outra queiram totalizar nos conceitos já extintos e superados de quantos figurões, incapazes de utilizarem a potencialidade de suas culturas, se tornam irreverentes aos sofrimentos dos que lutam com dignidade. É certo que os vícios profanam o sagrado dever de cada cidadão, desavisado não é aquele que consciente e inconsciente deturpa a interpretação dos Obreiros do Bem. A Bondade tem lugar onde haja compreensão, perfeição e solidariedade, entretanto, não obstante os matizes que se apresentam como forma de segredar a justiça, tomamos como limite o peso que isto representa para os menos avisados, ou seja, suportar irremediavelmente as conseqüências atrozes da imperfeição cujo propósito representa sem dúvida o maior perigo. Estamos conscientes de nossos deveres obreiros do bem. A grande responsabilidade da utilização das forças não cabe neste momento, senão para somar pontos que sejam positivamente contados e cotados. As estruturas frágeis não têm suporte e combustíveis que possam atender e corresponder à altura aos propósitos delineados, concluímos, portanto, e achamos justo que esta pequena parcela do que aqui vai seja considerada como a maneira mais consentânea de poder colaborar com os que, sentindo o meu esforço em colocar o bom humor nas torpezas da vida, acharam por fim a paz de que todos nós dependemos. Sei perfeitamente a importância dos gestos e do comportamento dos que sempre batalharam para sobreviver, não me acho inferiorizado em ser honesto, e sei quanto difícil é obter os meios pelos quais os menos desafortunados o conseguem."
A leitura desta produção esquizofrênica nos deixa a impressão de algo impreciso, vago, indefinido. O enfermo não revela empobrecimento do pensamento, nem limitação dos conceitos, ao contrário, este escrito demonstra grande riqueza de conceitos e bom rendimento do pensamento. Mas, o que se verifica, na realidade, é a transformação das relações conceituais estabelecidas antes da enfermidade. Em conseqüência, o pensamento se torna vago, impreciso, indeterminado.
Interceptação do pensamento
Na esquizofrenia, observa-se com freqüência o aparecimento inesperado de interceptação das representações e das idéias. Esta alteração é expressa de modo imediato na linguagem: o doente começa a expor um assunto qualquer e, subitamente, se detém. Às vezes, depois de alguns instantes, volta a completar o pensamento interrompido. Outras vezes, inicia um ciclo de pensamento completamente diverso do anterior. Esse fenômeno é determinado pela inibição, que se processa de modo súbito sob a influência de uma excitação, quer interna ou externa. Nesses casos, até mesmo uma excitação fraca pode conduzir à inibição, pois na esquizofrenia, onde o sintoma se manifesta, existem as condições favoráveis criadas pela debilidade do sistema nervoso central.
Bleuler estudou amplamente a interceptação do pensamento e pretendeu demonstrar que, nesses casos, os enfermos não apresentam anormalidade no aspecto temporal do raciocínio. Perguntas e respostas se sucedem como em qualquer conversação natural, reduzindo-se a alteração a uma simples parada no curso do pensamento. Algumas vezes o enfermo consegue superar o obstáculo repetindo a frase iniciada ou desviando o pensamento para outro assunto. Em outros casos, porém não consegue vencer as dificuldades durante um período de tempo muito prolongado, ou mesmo a interceptação pode-se estender a toda a atividade psíquica, permanecendo o paciente em silêncio, sem se mover e como em completa "privação de pensamentos". Este sintoma não deve ser confundido com a inibição do pensamento, observada com freqüência nos casos de enfermos deprimidos. Do mesmo modo, a interceptação não deve ser considerada como forma de negativismo, porque, neste último caso, os enfermos não falam nem respondem ao interrogatório clínico.
O exemplo seguinte revela claramente o aspecto formal do sintoma: o paciente José Elione, em uma fase avançada da enfermidade, apresentava como sintoma principal a interceptação do pensamento, independentemente, é claro, da ausência de iniciativa e do desinteresse pelo mundo exterior. É interessante salientar, neste caso, que as pausas intermediárias aumentavam a duração à medida que se sucediam as interrupções súbitas do raciocínio. Elione: "Eu sonhei com meu pai. Ele dizia: 'Aqui se faz, aqui se paga'. Ele era um homem muito enérgico." Parada súbita, com a duração de 45 segundos. "Hoje pela manhã me veio a lembrança do cara que abalroou o carro do meu irmão. Fiquei triste e tive raiva." Parada de um minuto. "Meu irmão era espírita. Em casa eu me sentia muito bem, me sentia melhor, me lembrando das coisas." Parada de três minutos. "Quando eu estava internado no Instituto de Psiquiatria, da Universidade de São Paulo, meu irmão foi me visitar. Na ocasião eu previ a sua morte." Parada de três minutos e quarenta segundos. À medida que prosseguia a entrevista, as pausas intermediárias aumentavam a duração no tempo.
Compulsão a pensar
Bleuler designa com esta expressão o transtorno do pensamento que consiste no enfermo sentir-se forçado a pensar. Essa alteração caracteriza-se, principalmente, pelo fato de surgirem na consciência, ao lado daquilo que é desejado, pensamentos de conteúdo casual, que se manifestam independentemente da vontade do doente. O fenômeno pode ir acompanhado de um sentimento desagradável de coação. Algumas vezes o enfermo tem a impressão de que está com "pressa de pensar". Outros se queixam de que são forçados a pensar de forma excessiva, de que "as idéias se atropelam em sua cabeça". Outros ainda falam de "desdobramento de pensamentos", de "urgência no pensar", de "acumulação de pensamentos", porque sentem que uma infinidade de pensamentos, surge em sua mente. Diz Bleuler que as informações de que "pensam demasiadamente" produzem no examinador a impressão de que eles pensam muito pouco. Em alguns casos, os pacientes referem que "alguém os está obrigando a pensar desta maneira e se queixam de uma sensação subseqüente de esgotamento". Diz ainda que o conteúdo desses pensamentos opressivos é essencialmente igual ao de qualquer outro tipo de pensamento esquizofrênico.
Esta observação de Forel foi transcrita por Bleuler como exemplo do seu conceito de "compulsão a pensar":
"Em minha mente se sucedia, como o interminável movimento de um relógio, uma compulsiva, torturante e ininterrupta seqüência de idéias. Naturalmente, não se encontravam perfeitamente definidas nem claramente desenvolvidas. As idéias se uniam numa notável e extravagante série de associações, apesar de manterem certa vinculação inerente de elo para elo. No conjunto havia suficiente coerência ou sistema, de modo que sempre podia distinguir o lado luminoso e o sombrio das coisas, pessoas, ações ou palavras escutadas que despertavam o meu interesse. Que idéias, que imagens não deram voltas em minha mente! Sempre parecia voltar uma e outra vez a certos conceitos, a certas imagens, que agora, no entanto, sinto dificuldade para recordar. Por exemplo: o Direito Divino da França, Barbera, Rohan. Pareciam-me constituir escalões nessa vertiginosa sucessão de pensamentos. E proferia em alta voz, rapidamente, como uma contra-senha, a idéia que o meu infatigável pensamento acabava de alcançar. Usava também este artifício para não perder a ilação e para conservar certo controle sobre o opressivo, enlouquecedor e impetuoso fluxo de pensamentos. Isto era particularmente necessário em certos momentos de minha vida cotidiana, como ao entrar na enfermaria, ou quando se abria a porta, ou quando ia ao refeitório, quando encontrava alguém no salão."
Em alguns enfermos místicos encontramos, com freqüência, queixas de que "se sentem forçados a pensar em blasfêmias", em coisas ultrajantes em relação à divindade, em cenas de libertinagem ou em zombarias a respeito da fé.
É bastante difícil estabelecer uma delimitação precisa entre "compulsão a pensar" e os sintomas que se descrevem sob a denominação de "pensamentos feitos" e "inspirados".
Pensamentos feitos, inspirados e subtraídos
Somente sutilezas fenomenológicas podem contribuir para que se possa estabelecer a distinção entre "compulsão a pensar" e "pensamentos feitos ou fabricados". A primeira perturbação é mais de natureza compulsiva, isto é, obedece a uma coação interna, enquanto a segunda se assemelha a uma imposição que procede do mundo exterior.
Os pensamentos feitos ou fabricados são vivenciados como impostos à mente do enfermo. Diz Conrad que muitos pacientes fazem referência ao "posto" ao "fabricado", em relação ao pensamento, porém tudo permanece no campo do difuso, do obscuro, do indeterminado.
O enfermo Swedenborg, famoso cientista sueco, ao adoecer de esquizofrenia, referiu que, em determinado momento, teve uma espécie de intuição: "As palavras que dizia não eram minhas, senão que alguém as colocava em minha boca."
Com referência aos pensamentos inspirados, os pacientes dizem que os mesmos Ihes foram "sugeridos", que "procedem do alto, foram transmitidos por Deus", daí muitos enfermos estarem imbuídos do cumprimento de uma missão. O paciente citado acima, Swedenborg, desenvolveu a convicção de ser um predestinado, escolhido para cumprir uma missão. Em face de sua missão de apostolado começou a interpretar as Escrituras à sua maneira, negando a "Trindade" e sustentando que a significação da Bíblia era completamente diferente do sentido que a Igreja lhe emprestava, e que somente ele era capaz de revelar o seu verdadeiro significado. Em sua missão de apostolado difundia verdades que não foram pensadas por ele e sim transmitidas do alto mediante uma revelação.
O nosso paciente Mauro esclareceu: "Em alguns momentos surgiam pensamentos que eu considerava sugeridos ou inspirados por Deus. Existem pensamentos que são produzidos, mas estes eram sugeridos. Acredito que eram pensamentos feitos pela divindade. É como se Ele fizesse o homem passar por um sofrimento, depois tirasse o sofrimento e depois voltasse de novo ao sofrimento até chegar à situação desejada por Deus."
A referência a pensamentos subtraídos é encontrada em alguns enfermos esquizofrênicos. Os pacientes sentem que pessoas estranhas subtraem os seus pensamentos e encontram explicação nas influências telepáticas, na ação hipnótica ou através de máquinas invisíveis com as quais as suas idéias são captadas no exato momento de serem pensadas.
Pensamento derreísta
Bleuler não incluiu o autismo entre as perturbações das funções psíquicas elementares da esquizofrenia, porém deixou explícito que o pensar, nesses casos, se encontra profundamente alterado. O voltar-se para o mundo interno contribui para que o pensamento se manifeste sob a forma de devaneio, quando a pessoa pode deixar em liberdade as suas fantasias. Em tais circunstâncias, o pensar não obedece às leis da lógica e, nos casos mais acentuados, tudo transcorre como se o indivíduo estivesse submerso em um verdadeiro estado de onirismo.
Nos casos francamente patológicos, o ato intencional do pensar não se ajusta à realidade. Predominam, então, as tendências individuais, os desejos e os temores.
Para Bleuler, "…0 pensamento derreísta obedece às suas próprias leis. Sem dúvida, utiliza as relações lógicas habituais na medida em que se tornam convenientes, porém não se acha ligado de nenhuma maneira a essas leis lógicas. O pensamento derreísta está dirigido pelas necessidades afetivas; o paciente pensa mediante símbolos, analogias, conceitos fragmentários, vinculações acidentais". Admite que se o enfermo tem a possibilidade de retomar à realidade, é capaz de pensar com clareza e lógica.
Por isso, considera necessário fazer a distinção entre o pensamenso realista e o pensamento derreísta (dereistische Denken), pois eles existem justapostos no mesmo enfermo. No primeiro caso, o paciente se orienta perfeitamente bem no tempo e no espaço. As suas ações são perfeitamente adequadas e se adaptam à realidade, a tal ponto que nos parecem normais. "O pensamento derreísta é a fonte das idéias delirantes, das cruas infrações da lógica, de auto-satisfação e de todos os sintomas patológicos." Admite que as duas formas de pensamento se encontram separadas, o que faz com que o paciente possa pensar às vezes de uma maneira derreísta, e outras, de forma normal. Na maioria dos casos, porém, as duas formas de pensamento se encontram mescladas, chegando à completa fusão.
Diz Bleuler que, ao adquirir pleno desenvolvimento, o pensamento derreísta é inteiramente diferente do pensamento baseado na experiência. No entanto, admite que "… existe toda a espécie de transições, desde o simples afastamento das formas de pensamento aprendidas, tal como são necessárias para alcançar qualquer conclusão analógica, até a fantasia mais desenfreada". Salienta que os conteúdos e metas do pensamento derreísta são sempre, naturalmente, o que nos convém no momento mais íntimo. Por isso, é compreensível que se valorizem mais do que as vantagens reais, as quais podem ser substituídas.
O pensamento derreísta facilita ao enfermo a realização de desejos: "converte o paciente com delírio de grandezas em dono do mundo; ou suprime no paciente, durante o delírio de perseguição, toda censura e lhe possibilita ver a culpa nos demais e não em suas próprias faltas".
O significado do pensamento derreísta não se resume em simples realizações de desejos. Consiste em uma atividade incessante, desde que a pessoa se encontre em estado vigil, atividade que é considerada como devaneio nas pessoas normais e derreísta nos casos patológicos, caracterizando-se pelo completo desligamento do mundo externo. No entanto, a vida no meio social exige uma permanente adaptação afetiva, acompanhada da tomada de posições, de decisões e de uma vontade forte para agir. Estas qualidades são inteiramente desnecessárias no mundo autístico, razão pela qual o pensamento derreísta assume as suas próprias leis.
Bleuler completa a sua exposição afirmando que "os desejos e os temores constituem o conteúdo do pensamento derreísta. Nos casos em que não são percebidas as contradições com a realidade, estão incluídos somente os desejos; os temores aparecem quando o paciente toma conhecimento dos obstáculos que se opõem aos seus desejos" . O pensamento derreísta se manifesta, também, através da incapacidade que os enfermos revelam para enfrentar a realidade, em suas reações inadequadas ante as influências externas.