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Revisão: Alterações da Cognição – (a) Raciocínio – parte I

Introdução Psicológica

O termo raciocínio é usado em dois sentidos: lógico e psicológico. Em seu sentido lógico, consiste em selecionar e orientar os dados do conheci­mento, tendo como objetivo alcançar uma integração significativa, que pos­sibilite uma atitude racional ante as necessidades do momento. Chama-se juízo o processo que conduz ao estabelecimento dessas relações significativas. Jul­gar é, nesse caso, estabelecer uma relação entre dois conceitos, ou idéias. A função que relaciona os juízos recebe a denominação de raciocínio. A palavra serve também para designar as operações dedutivas e indutivas. Em seu sentido lógico, o raciocínio não é nem verdadeiro nem falso: é correto ou incorreto.

Em Psicologia, o termo raciocínio tem o mesmo sentido de pensar, portanto, raciocínio = pensamento. Se­gundo Magalhães Vilhena, aos objetivos da Psicologia interessa, principalmen­te, o estudo do "processo efetivo, real, do ato do pensar, das operações psí­quicas do pensar consideradas sob o prisma descritivo e genético. Estuda o seu curso efetivo, quer espontâneo, quer provocado, os seus caracteres es­senciais, o seu desenvolvimento no tempo e os fatores que para ele concor­rem, as suas relações com os restantes conteúdos mentais e com os fenô­menos afetivos e volitivos, isto é, com toda a vasta série de processos men­tais que acompanham ou mesmo intervêm na operação de raciocinar".

A mais elementar forma do pensar consiste em um vago perpassar na men­te de idéias casuais e desconexas, em uma sucessão irregular e acidental de representações e idéias. Trata-se, nesse caso, de "pensamentos" sem signi­ficação, desprovidos de lógica e de qualquer utilidade. Esse é o pensamento característico do devaneio, da fantasia, que se manifesta nos momentos de inércia mental e adquire caráter patológico em diversos quadros neuróticos.

Em sua forma superior, o pensamento é um ato reflexivo. A reflexão não é apenas uma sucessão, e sim uma série lógica de idéias; cada idéia articula­-se com a precedente, o pensamento segue uma direção. "Os anéis da cor­rente do pensamento reflexivo derivam dos anéis antecedentes e dão origem aos subseqüentes; as idéias não vão e vêm, confusamente – cada fase do raciocínio é um passo dado de certo ponto em direção a outro ou, falando tecnicamente, é um dos termos do pensamento. Cada termo deixa uma con­tribuição de que o termo seguinte se utiliza" (Dewey). Nesse caso, o pen­samento se manifesta como uma série ordenada, em que os conceitos estão de tal forma unidos entre si que o último elo da cadeia deriva necessariamen­te do antecedente.

O raciocínio é a operação mental que nos permite aproveitar os conheci­mentos adquiridos através da prática social, combiná-Ios logicamente, para alcançar uma forma superior de conhecimento. O processo do raciocínio re­presenta um modo especial de ligação entre conceitos, de seqüência de juí­zos, de encadeamento lógico de conhecimentos, derivando sempre uns dos outros. Assim como a ligação entre conceitos permite a formação de juízos, a ligação entre juízos conduz à formação de novos juízos e, desse modo, se processa o pensamento. O raciocínio humano é uma cadeia infinita de repre­sentações, conceitos e juízos. A fonte de todo esse processo é a experiência sensorial.

O pensamento humano é o fenômeno supremo que é alojado e se manifesta pela matéria organizada de modo especial. O pensamento é correlato com determinada for­ma de movimento da matéria, o metabolismo cerebral.

O conhecimento humano representa um processo que começa com a sen­sação e termina com o raciocínio dialético. A sensação e o raciocínio são mo­mentos diferentes, aspectos ou graus do mesmo processo do conhecimento. Por isso, não se pode separá-Ios. O mundo exterior age, sobre nossos órgãos dos sentidos, provocando neles as sensações, e essas sensações em cone­xão indissolúvel com a atividade do pensamento oferecem o conhecimento dos objetos e de suas propriedades.

A escola associacionista procurou explicar o processo do raciocínio hu­mano através de leis e condições especiais das" associações de idéias". Ao mesmo tempo, essa escola psicológica não levou em conta que no raciocínio intervêm inúmeras operações intelectuais de abstração e generalização. Por outro lado, como as "leis" da associação de idéias não esclareciam o pro­cesso do pensamento, procurou-se a influência das "constelações" e a exis­tência de uma "idéia diretriz" para explicar a coerência que se observa no raciocínio normal.


Patologia

Sob a denominação de perturbações da ideação estudam-se, nos trata­dos de psicopatologia, as alterações da segunda fase do processo do conheci­mento, isto é, os distúrbios do conhecimento racional ou intelectual consti­tuído pela formação dos conceitos, a constituição dos juízos e elaboração do raciocínio. As alterações do pensamento são examinadas, habitualmente, em seu curso e em seu conteúdo, muito embora essas alterações sejam de tal natureza que, em determinado enfermo, seja extremamente difícil fazer a dis­tinção entre o que se acha mais atingido, se o curso ou o conteúdo do pensa­mento. Abandonamos estas denominações tradicionais e consideramos es­sas alterações como conseqüência de perturbação das operações psíquicas do pensar. Tais alterações são muito variadas, sendo as mais simples aque­las que resultam dos processos nervosos fundamentais: a inibição e a excitação.


Inibição do pensamento

A inibição do pensamento é um sintoma que se manifesta geralmente unido à lentidão de todos os processos psíquicos. Caracteriza-se pela diminuição do número de repre­sentações evocáveis na unidade de tempo e pela lentidão do curso do pensa­mento.

Nos enfermos em que existe inibição do pensamento, observa-se tam­bém grande dificuldade na percepção dos estímulos sensoriais, limitação do número de representações e lentidão no processo e evocação das lembran­ças. "O quadro mais avançado da inibição psíquica coincide com o estupor e passa por ser uma forma do mesmo. Os enfermos inibidos mantêm-se sen­tados ou deitados na mesma posição, não falam espontaneamente nem res­pondem às nossas perguntas ou o fazem lentamente ou com grande dificul­dade" (Bumke). A perturbação não é apenas quantitativa, mas também qua­litativa, pois a alteração atinge a essência do pensamento, isto é, a possibili­dade de ser orientado para determinado objetivo e o estabelecimento de liga­ções entre as representações e os conceitos. Acompanha-se, geralmente, de um sentimento subjetivo de incapacidade.

Nesta observação de Jaspers, a inibição do pensamento se manifesta de forma moderada. "Os meus sentimentos estavam sempre mudando. Os dias alegres para mim eram aqueles em que me interessava por tudo, fazendo al­guma coisa conscientemente, individualmente estimulada, julgando as coi­sas, as pessoas e minha própria pessoa, embora com certa tensão. Nesses momentos procurava toda a companhia possível, empreendia muitas coisas, porque tudo me dava prazer. A transição de um estado de ânimo para outro não era tão repentina, pelo contrário, ia progredindo cada vez um pouco, com o correr dos dias. No outro estado, tinha o sentimento da ausência de interesse, de obtusidade, de imprecisão a respeito das coisas sobre as quais tinha de formar a minha própria opinião. Então, esforçava-me muito para esconder mi­nhas falhas e, em certos casos, lembrava-me de como teria agido nos dias bons. O que mais se altera é minha escrita e, também, o meu modo de andar. Nos últimos tempos, acrescentou-se uma indiferença completa e o fracasso de minha receptividade. Teatros, concertos não impressionam mais minha sen­sibilidade. Não posso contar nada a respeito deles. Quando converso, perco o fio, quer dizer, um pensamento não se une mais ao outro. Tornei-me insen­sível a brincadeiras e piadas que surgem na conversa, porque já não as en­tendo. "

Outro enfermo queixou-se: "Perdi de todo a memória, já não sou capaz de acompanhar uma conversa. Sinto-me como que paralisado, não entendo mais nada, estou completamente abobado. Não consigo dizer, de modo al­gum, qual é o conteúdo do que leio e do que ouço. Já não tenho vontade, não me resta um resquício de energia, nem de força para agir. Não consigo me decidir por coisa alguma. Fazer um movimento, apenas isso, custa-me grande resolução."

Os enfermos com inibição do pensamento revelam dificuldade na compreensão, dificilmente iniciam uma conversação, demoram a proferir as palavras, pensam com grande esforço e, quando Ihes dirigimos perguntas, custam a responder, porque nada surge em suas mentes perturbadas.


Fuga de idéias

A fuga de idéias é uma perturbação da expressão do pen­samento, caracterizada essencialmente por uma variação incessante do tema e uma incapacidade absoluta de levar o raciocínio a uma conclusão. Acompanha-se de uma tendência irresistível a falar, que, nos ca­sos mais pronunciados, atinge a logorréia, verdadeira torrente de palavras re­lacionadas por assonância e sem sentido lógico.

De acordo com Honório Delgado, a fuga de idéias tem estas característi­cas: "1) a desordem e a falta aparente de finalidade completiva das opera­ções intelectuais: mesmo quando há certa relação entre os conceitos próxi­mos, o conjunto carece de sentido, de unidade significativa; 2) o predomínio do mecanismo da associação de idéias – que se revela claramente pela as­sonância das palavras – com abundância de conceitos disparatados; 3) a fa­cilidade com que se desvia o curso do pensamento sob a influência dos estí­mulos exteriores (distraibilidade); 4) a freqüente aceleração do ritmo da ex­pressão verbal."

Ao procurar uma explicação causal para o fenômeno, Bumke admitiu que a desordem era devida a um transtorno da atenção, que se acompanha de certo grau de excitação interna e, algumas vezes, também externa. O enfer­mo com fuga de idéias mostra-se incapaz de concentrar a atenção em um só objeto, dispersando-se em uma multiplicidade de estímulos sensoriais, sem aprofundar nada, chegando muitas vezes a confundir pessoas. Diz Bumke que no campo visual do enfermo "aparecem múltiplas representações simultâ­neas ou sucessivas, sem que nenhuma delas seja afastada ou retida por um tempo prolongado. Algumas delas deslizam tão rapidamente que não chegam a adquirir forma definida. Em tais condições, se a linguagem, apesar de sua rapidez, não pode seguir a veloz sucessão das idéias e representações, é na­tural que, com suas incessantes intercalações, produza a impressão de que é o resultado de uma confusão ideofugitiva".

Na concepção de Bumke, a fuga de idéias seria um transtorno propria­mente da vigilância, o que poderia estar na dependência de hiperativação do sistema reticular ativador ascendente em um grau que se acha nos limites da fadiga neuronal do referido sistema. A excitação cortical, devido à esti­mulação enérgica do sistema reticular, determinaria o enfraquecimento dos mecanismos psíquicos inibitórios.

Este ponto de vista está muito próximo da concepção de Jaspers, para quem a causalidade seria de natureza extraconsciente, embora ignorada. Es­creveu a respeito: "Tem-se inquirido a causa da fuga de idéias, mas até o momento não se encontrou resposta satisfatória. A fuga de idéias não resul­ta de aceleração do curso do pensamento, nem é conseqüência de compul­são a falar; não se pode compreendê-Ia pela simples rapidez com que os prin­cípios associativos mudam (por exemplo, a associação sonora), nem pela pre­dominância de tipos inferiores de associação (quando falham os tipos con­ceituais de associação). A causa está em processos de natureza ignorada, fora da consciência; o todo produtivo da fuga de idéias só se pode descrever, de forma interpretativa, considerando os dois lados do curso do pensamen­to, do evento associativo e das tendências determinantes."

Vejamos este exemplo citado por Bumke: "Boa tarde! Sim, boa tarde, se a vida é tão doce como mel. Gosta também de açúcar? fábrica de açú­car a cana e a corda não quer enforcar-se? Você, assassino pai do assassino o colarinho o colarinho da camisa branca como a neve é a inocência ah, a ingênua inocência! moela pata, pata de cachorro, pata de gato língua de gato que tem o gosto de chocolate de hospício onde estão os loucos."

Uma paciente de Jaspers, ao responder à pergunta se mudara de resi­dência no último ano, disse: "Sim, pois era muda e estúpida, mas não surda, conheço a Ida Daube, que está morta, provavelmente morreu de inflamação do ceco; não sei se era cega; o cego Hesse, o grão-duque de Hesse, a irmã Luísa, o grão-duque de Baden, o marido morreu no dia 28 de setembro de 1907, quando voltei, é vermelho-dourada-vermelho."

Ao comentar este exemplo, diz Jaspers que esses enfermos interrom­pem, a todo instante, sem motivo aparente, o curso do pensamento, come­çando a dizer uma coisa e, logo em seguida, outra, não conseguindo fixar­-se em um único objetivo. No entanto, mostram-se ocupados com uma quan­tidade enorme de idéias. Os pacientes não se prendem a nenhuma idéia, estão a todo instante passando para coisas acessórias, perdem o fio e não conseguem recuperá-Io novamente. Nada terminam do que iniciaram; sal­tam, falta-Ihes o fôlego mental, sempre impulsionados por estímulos ex­ternos.

Os exemplos citados mostram a existência de uma ligação compreensí­vel entre um e outro termo e esse elemento é essencial para a distinção entre fuga de idéias e pensamento vago.


Pensamento vago

Kurt Schneider mostra como tem sido difícil estabele­cer de modo claro as diferentes alterações do pensar, advertindo sobre a impossibilidade de se distinguir aquilo que corresponde ao curso do pensamento, ao ato de pensar, ao conteúdo e ao rendimento do pen­samento. Uma das alterações mais difíceis de ser descrita e conceituada é a que recebe a denominação de pensamento vago. Procurei penetrar na inti­midade do sintoma tomando como ponto de partida o transtorno da ideação, admitindo que a alteração central consiste na perda das relações conceituais. Como é sabido, na mente normal, os conceitos formam verdadeiros sistemas de relações, passando a ter significação definida apenas no conjunto de que participam. São esses sistemas de relações conceituais que se apresentam perturbados, dando como resultado a alteração característica do pensamen­to esquizofrênico, que tem recebido várias denominações: "pensamento de­sagregado" (Bleuler), "pensamento dissociado" (Ziehen) e "pensamento sal­tígrado" (Carl Schneider). A designação correta seria, do ponto de vista gra­matical, "pensamento anfibológico", que significa: pensamento ambíguo, equívoco, obscuro.

Kronfeld e Carl Schneider procuraram fixar novas diretrizes na investiga­ção desse tipo de pensamento, tomando como ponto de partida alguns prin­cípios da fenomenologia de Husserl. O ponto de vista de Kronfeld se centrali­za na análise do ato intencional e, desse modo, procurou demonstrar a signi­ficação das variações do "ato de objetivação". Em sua opinião, "no ato in­tencional está contida uma atividade do eu, e sua produção exige a reunião simultânea e a emissão ininterrupta de uma constelação de fatores e de uma infinidade de mecanismos diversos, centralizados e comandados por um nú­cleo de ativação espontânea". Para Kronfeld, "o centro psíquico de inspira­ção automática do ato é indispensável à sua execução, e do seu enfraqueci­mento, debilitação ou ausência resultaria então a perda da espontaneidade, com a impressão de que o ato já não é mais dirigido pelo eu até a sua consu­mação final". A "transformação do sentimento de atividade consciente" al­tera o "ato espontâneo" e determina o aparecimento de uma espécie de "ata­xia intrapsíquica", no sentido de Stransky.

Por seu lado, Carl Schneider tomou como ponto de partida a noção de estrutura da intencionalidade como correlação noético-noemática, que cor­responde à função identificadora e objetivante da consciência. Schneider in­siste na necessidade de se estabelecer, na unidade da corrente de vivências, a distinção rigorosa entre o conteúdo e a execução, isto é, o modo de dar-se, de transcorrer na consciência. "A consciência vigil e normal implica um mo­do típico de execução: cada vivência surge delimitada em seus contornos pe­lo que se denomina cesura (Zaesur), e ainda por estar ordenada em um enca­deamento incessante de acontecimentos correlatos – a sucessão ininterrup­ta de estados-de-espírito, que constituem a corrente de vivências." Schnei­der denomina a maneira como as vivências se articulam e se combinam de "arranjos-de-relação". "O arranjo-de-relação consiste no estabelecimento de coligações a priori, ora no sentido da objetividade (relação entre uma coisa e outra, entre um conteúdo e outro, entre objeto e objeto), ora com referên­cia a um eu (relação de alguma coisa com um eu, na forma como lhe é dada). Quando o arranjo-de-relação se faz no sentido da objetividade, isto é, quando se dirige para fatos e coisas da realidade exterior, isso leva então à formação dos chamados estados de coisas ou estados de fatos." … "Quando o arranjo­-de-relação se faz com referência ao eu, realiza uma forma de coligação que se define como modo da coisa dada, em que cabem todas as atividades da consciência mesma, combináveis em um número infinito de relações possí­veis. É evidente que o arranjo-de-relação constitui o próprio arcabouço da exe­cução psíquica. Não é, porém, vivenciado como tal porque se fundamenta em relações estabelecidas a priori. Vivenciado então, será apenas o modelo­-de-disposição, que dá unidade à execução psíquica total. Por isso, esta é vi­venciada como modo-de-disposição das vivências, modo que representa o ele­mento vivencial do arranjo-de-relação. Esse modo-de-disposição independe, porém, dos conteúdos das vivências e das conexões de sentido existentes nos arranjos-de-relação, concretizando assim o aspecto formal mais estrito da vida psíquica consciente. Tal forma varia, é suscetível de alterar-se em condições determinadas e com ela se modifica necessariamente o modo típico de execução da consciência. Com essa mudança de execução, perturba-se conseqüentemente a atividade psíquica total, em suas diferentes esferas de expressão." O pensamento vago, na opinião do autor citado, resulta de uma alteração básica de execução psíquica.

Carl Schneider considera que nos casos de enfermos inteligentes e ca­pazes de uma correta auto-observação, a vacuidade do pensamento deter­mina transtornos emocionais e produz a retração do paciente no meio am­biente. O caso clínico citado como exemplo revela esta alteração, acompa­nhada das dificuldades que a disfunção básica da execução psíquica deter­mina na expressão do pensamento:

"Compreendo ainda o sentido da palavra que acabo de ouvir, porém a sua conexão em vão a procuro em minha memória. Os pensamentos se atro­pelam, não estão ordenados com clareza, cruzam em minha cabeça como re­lâmpagos e, em seguida, vem outro. Tenho a sensação de um extremo atur­dimento. Se penso, por exemplo, que são três horas da madrugada, antes que termine o pensamento surge outra idéia. não tenho em minhas mãos o curso do meu pensamento. As idéias muitas vezes não são claras, são idéias que não se tem de modo claro, que aparecem de algum modo, porém não sabemos se realmente existem. Junto às idéias principais transcorrem sem­pre idéias secundárias; embrulham o pensamento, não se chega a nenhum fim no pensar, cada vez é maior a confusão, tudo anda de um lado para ou­tro. Penso em algo afilado e ao mesmo tempo penso em algo que o acompa­nha; sei muito bem que o acompanha, porém não o vejo senão muito longe. Não posso falar com ninguém sem que me sobrevenham outras frases. O pen­samento está mudado, é outro, uma precipitação, uma sensação como se já não me pertencessem as idéias. O que leio se desvanece por completo, quando chego às linhas de baixo não posso dizer o que há nas de cima. Na maioria das vezes tenho outros pensamentos pouco claros. Tenho a sensação do em­pobrecimento do pensamento, tudo o que penso e vejo me parece incolor, vago, um pouco incompleto. Minha lembrança da Universidade ficou reduzi­da ao armário onde colocava o abrigo. Se com a melhor boa vontade quero recordar algo, perco o controle das coisas mais simples. E me pus a estudar algo foi a termologia mas em vão."

Transcrevo em seguida a composição de um paciente que demonstrava relativa conservação da personalidade:

"Não tenho palavras para agradecer este gesto de singular importância que vem representar os verdadeiros anseios das classes, cujo passado con­duz e reforça propugnar por uma causa justa de suas reivindicações, na ver­dade o tempo sempre foi a maior Escola da Humanidade em toda a sua Histó­ria. A justiça nasceu por certo do equilíbrio das forças, em cujo tempo conti­nua e continuará sempre cedendo espaço para que todos os bem intenciona­dos se locupletem a famigerada busca de irreverentes lutadores das causas ganhas. O esforço com que cada um se empenha é realmente construtivo e exemplar. A luta por uma causa justa não é impor grilhões a ferro e fogo, é um dever que pode ser obtido pela representação inconteste dos trabalha­dores pela liberdade. Liberdade no bom sentido é o emprego da Educação certa e adequada a cada povo na medida em que este próprio povo exige dados aos seus costumes, hábitos e necessidades indispensáveis ao equilíbrio sufi­ciente para desempenhar o seu papel com honra, dignidade e altivez que so­breponham o ódio, a vingança e o despreparo, capazes realmente de condu­zir ao caos total de toda a Humanidade. Este é realmente um momento de reflexão para todos os que inspirados de uma forma ou de outra queiram to­talizar nos conceitos já extintos e superados de quantos figurões, incapazes de utilizarem a potencialidade de suas culturas, se tornam irreverentes aos sofrimentos dos que lutam com dignidade. É certo que os vícios profanam o sagrado dever de cada cidadão, desavisado não é aquele que consciente e inconsciente deturpa a interpretação dos Obreiros do Bem. A Bondade tem lugar onde haja compreensão, perfeição e solidariedade, entretanto, não obs­tante os matizes que se apresentam como forma de segredar a justiça, toma­mos como limite o peso que isto representa para os menos avisados, ou seja, suportar irremediavelmente as conseqüências atrozes da imperfeição cujo pro­pósito representa sem dúvida o maior perigo. Estamos conscientes de nos­sos deveres obreiros do bem. A grande responsabilidade da utilização das for­ças não cabe neste momento, senão para somar pontos que sejam positiva­mente contados e cotados. As estruturas frágeis não têm suporte e combus­tíveis que possam atender e corresponder à altura aos propósitos delineados, concluímos, portanto, e achamos justo que esta pequena parcela do que aqui vai seja considerada como a maneira mais consentânea de poder colaborar com os que, sentindo o meu esforço em colocar o bom humor nas torpezas da vida, acharam por fim a paz de que todos nós dependemos. Sei perfeita­mente a importância dos gestos e do comportamento dos que sempre bata­lharam para sobreviver, não me acho inferiorizado em ser honesto, e sei quanto difícil é obter os meios pelos quais os menos desafortunados o conseguem."

A leitura desta produção esquizofrênica nos deixa a impressão de algo impreciso, vago, indefinido. O enfermo não revela empobrecimento do pen­samento, nem limitação dos conceitos, ao contrário, este escrito demonstra grande riqueza de conceitos e bom rendimento do pensamento. Mas, o que se verifica, na realidade, é a transformação das relações conceituais estabe­lecidas antes da enfermidade. Em conseqüência, o pensamento se torna va­go, impreciso, indeterminado.


Interceptação do pensamento

Na esquizofrenia, observa-se com freqüência o apareci­mento inesperado de interceptação das representações e das idéias. Esta alteração é expressa de modo imedia­to na linguagem: o doente começa a expor um assunto qualquer e, subita­mente, se detém. Às vezes, depois de alguns instantes, volta a completar o pensamento interrompido. Outras vezes, inicia um ciclo de pensamento com­pletamente diverso do anterior. Esse fenômeno é determinado pela inibição, que se processa de modo súbito sob a influência de uma excitação, quer in­terna ou externa. Nesses casos, até mesmo uma excitação fraca pode con­duzir à inibição, pois na esquizofrenia, onde o sintoma se manifesta, existem as condições favoráveis criadas pela debilidade do sistema nervoso central.

Bleuler estudou amplamente a interceptação do pensamento e pretendeu demonstrar que, nesses casos, os enfermos não apresentam anormalidade no aspecto temporal do raciocínio. Perguntas e respostas se sucedem como em qualquer conversação natural, reduzindo-se a alteração a uma simples parada no curso do pensamento. Algumas vezes o enfermo consegue supe­rar o obstáculo repetindo a frase iniciada ou desviando o pensamento para outro assunto. Em outros casos, porém não consegue vencer as dificulda­des durante um período de tempo muito prolongado, ou mesmo a intercep­tação pode-se estender a toda a atividade psíquica, permanecendo o pa­ciente em silêncio, sem se mover e como em completa "privação de pensa­mentos". Este sintoma não deve ser confundido com a inibição do pensa­mento, observada com freqüência nos casos de enfermos deprimidos. Do mesmo modo, a interceptação não deve ser considerada como forma de ne­gativismo, porque, neste último caso, os enfermos não falam nem respon­dem ao interrogatório clínico.

O exemplo seguinte revela claramente o aspecto formal do sintoma: o paciente José Elione, em uma fase avançada da enfermidade, apresentava co­mo sintoma principal a interceptação do pensamento, independentemente, é claro, da ausência de iniciativa e do desinteresse pelo mundo exterior. É interessante salientar, neste caso, que as pausas intermediárias aumentavam a duração à medida que se sucediam as interrupções súbitas do raciocínio. Elione: "Eu sonhei com meu pai. Ele dizia: 'Aqui se faz, aqui se paga'. Ele era um homem muito enérgico." Parada súbita, com a duração de 45 segun­dos. "Hoje pela manhã me veio a lembrança do cara que abalroou o carro do meu irmão. Fiquei triste e tive raiva." Parada de um minuto. "Meu irmão era espírita. Em casa eu me sentia muito bem, me sentia melhor, me lembrando das coisas." Parada de três minutos. "Quando eu estava internado no Insti­tuto de Psiquiatria, da Universidade de São Paulo, meu irmão foi me visi­tar. Na ocasião eu previ a sua morte." Parada de três minutos e quarenta se­gundos. À medida que prosseguia a entrevista, as pausas intermediárias au­mentavam a duração no tempo.


Compulsão a pensar

Bleuler designa com esta expressão o transtorno do pensamento que consiste no enfermo sentir-se força­do a pensar. Essa alteração caracteriza-se, principalmente, pelo fato de sur­girem na consciência, ao lado daquilo que é desejado, pensamentos de con­teúdo casual, que se manifestam independentemente da vontade do doente. O fenômeno pode ir acompanhado de um sentimento desagradável de coa­ção. Algumas vezes o enfermo tem a impressão de que está com "pressa de pensar". Outros se queixam de que são forçados a pensar de forma ex­cessiva, de que "as idéias se atropelam em sua cabeça". Outros ainda falam de "desdobramento de pensamentos", de "urgência no pensar", de "acu­mulação de pensamentos", porque sentem que uma infinidade de pensamen­tos, surge em sua mente. Diz Bleuler que as informações de que "pensam demasiadamente" produzem no examinador a impressão de que eles pensam muito pouco. Em alguns casos, os pacientes referem que "alguém os está obrigando a pensar desta maneira e se queixam de uma sensação subseqüente de esgotamento". Diz ainda que o conteúdo desses pensamentos opressi­vos é essencialmente igual ao de qualquer outro tipo de pensamento esqui­zofrênico.

Esta observação de Forel foi transcrita por Bleuler como exemplo do seu conceito de "compulsão a pensar":

"Em minha mente se sucedia, como o interminável movimento de um relógio, uma compulsiva, torturante e ininterrupta seqüência de idéias. Natu­ralmente, não se encontravam perfeitamente definidas nem claramente de­senvolvidas. As idéias se uniam numa notável e extravagante série de asso­ciações, apesar de manterem certa vinculação inerente de elo para elo. No conjunto havia suficiente coerência ou sistema, de modo que sempre podia distinguir o lado luminoso e o sombrio das coisas, pessoas, ações ou pala­vras escutadas que despertavam o meu interesse. Que idéias, que imagens não deram voltas em minha mente! Sempre parecia voltar uma e outra vez a certos conceitos, a certas imagens, que agora, no entanto, sinto dificulda­de para recordar. Por exemplo: o Direito Divino da França, Barbera, Rohan. Pareciam-me constituir escalões nessa vertiginosa sucessão de pensamen­tos. E proferia em alta voz, rapidamente, como uma contra-senha, a idéia que o meu infatigável pensamento acabava de alcançar. Usava também este arti­fício para não perder a ilação e para conservar certo controle sobre o opressi­vo, enlouquecedor e impetuoso fluxo de pensamentos. Isto era particularmente necessário em certos momentos de minha vida cotidiana, como ao entrar na enfermaria, ou quando se abria a porta, ou quando ia ao refeitório, quando encontrava alguém no salão."

Em alguns enfermos místicos encontramos, com freqüência, queixas de que "se sentem forçados a pensar em blasfêmias", em coisas ultrajantes em relação à divindade, em cenas de libertinagem ou em zombarias a respeito da fé.

É bastante difícil estabelecer uma delimitação precisa entre "compulsão a pensar" e os sintomas que se descrevem sob a denominação de "pensa­mentos feitos" e "inspirados".


Pensamentos feitos, inspirados e subtraídos

Somente sutilezas fenomenológicas podem con­tribuir para que se possa estabelecer a distinção entre "compulsão a pensar" e "pensamentos fei­tos ou fabricados". A primeira perturbação é mais de natureza compulsiva, isto é, obedece a uma coação interna, enquanto a segunda se assemelha a uma imposição que procede do mundo exterior.

Os pensamentos feitos ou fabricados são vivenciados como impostos à mente do enfermo. Diz Conrad que muitos pacientes fazem referência ao "pos­to" ao "fabricado", em relação ao pensamento, porém tudo permanece no campo do difuso, do obscuro, do indeterminado.

O enfermo Swedenborg, famoso cientista sueco, ao adoecer de esquizo­frenia, referiu que, em determinado momento, teve uma espécie de intuição: "As palavras que dizia não eram minhas, senão que alguém as colocava em minha boca."

Com referência aos pensamentos inspirados, os pacientes dizem que os mesmos Ihes foram "sugeridos", que "procedem do alto, foram transmiti­dos por Deus", daí muitos enfermos estarem imbuídos do cumprimento de uma missão. O paciente citado acima, Swedenborg, desenvolveu a con­vicção de ser um predestinado, escolhido para cumprir uma missão. Em face de sua missão de apostolado começou a interpretar as Escrituras à sua ma­neira, negando a "Trindade" e sustentando que a significação da Bíblia era completamente diferente do sentido que a Igreja lhe emprestava, e que so­mente ele era capaz de revelar o seu verdadeiro significado. Em sua missão de apostolado difundia verdades que não foram pensadas por ele e sim trans­mitidas do alto mediante uma revelação.

O nosso paciente Mauro esclareceu: "Em alguns momentos surgiam pen­samentos que eu considerava sugeridos ou inspirados por Deus. Existem pen­samentos que são produzidos, mas estes eram sugeridos. Acredito que eram pensamentos feitos pela divindade. É como se Ele fizesse o homem passar por um sofrimento, depois tirasse o sofrimento e depois voltasse de novo ao sofrimento até chegar à situação desejada por Deus."

A referência a pensamentos subtraídos é encontrada em alguns enfer­mos esquizofrênicos. Os pacientes sentem que pessoas estranhas subtraem os seus pensamentos e encontram explicação nas influências telepáticas, na ação hipnótica ou através de máquinas invisíveis com as quais as suas idéias são captadas no exato momento de serem pensadas.


Pensamento derreísta

Bleuler não incluiu o autismo entre as perturbações das funções psíquicas elementares da esquizofre­nia, porém deixou explícito que o pensar, nesses casos, se encontra profun­damente alterado. O voltar-se para o mundo interno contribui para que o pensamento se manifeste sob a forma de devaneio, quando a pessoa pode deixar em liberdade as suas fantasias. Em tais circunstâncias, o pensar não obedece às leis da lógica e, nos casos mais acentuados, tudo transcorre como se o indivíduo estivesse submerso em um verdadeiro estado de oni­rismo.

Nos casos francamente patológicos, o ato intencional do pensar não se ajusta à realidade. Predominam, então, as tendências individuais, os desejos e os temores.

Para Bleuler, "…0 pensamento derreísta obedece às suas próprias leis. Sem dúvida, utiliza as relações lógicas habituais na medida em que se tor­nam convenientes, porém não se acha ligado de nenhuma maneira a essas leis lógicas. O pensamento derreísta está dirigido pelas necessidades afeti­vas; o paciente pensa mediante símbolos, analogias, conceitos fragmentá­rios, vinculações acidentais". Admite que se o enfermo tem a possibilidade de retomar à realidade, é capaz de pensar com clareza e lógica.

Por isso, considera necessário fazer a distinção entre o pensamenso rea­lista e o pensamento derreísta (dereistische Denken), pois eles existem justa­postos no mesmo enfermo. No primeiro caso, o paciente se orienta perfeita­mente bem no tempo e no espaço. As suas ações são perfeitamente adequa­das e se adaptam à realidade, a tal ponto que nos parecem normais. "O pen­samento derreísta é a fonte das idéias delirantes, das cruas infrações da lógi­ca, de auto-satisfação e de todos os sintomas patológicos." Admite que as duas formas de pensamento se encontram separadas, o que faz com que o paciente possa pensar às vezes de uma maneira derreísta, e outras, de forma normal. Na maioria dos casos, porém, as duas formas de pensamento se en­contram mescladas, chegando à completa fusão.

Diz Bleuler que, ao adquirir pleno desenvolvimento, o pensamento der­reísta é inteiramente diferente do pensamento baseado na experiência. No en­tanto, admite que "… existe toda a espécie de transições, desde o simples afastamento das formas de pensamento aprendidas, tal como são necessá­rias para alcançar qualquer conclusão analógica, até a fantasia mais desen­freada". Salienta que os conteúdos e metas do pensamento derreísta são sem­pre, naturalmente, o que nos convém no momento mais íntimo. Por isso, é compreensível que se valorizem mais do que as vantagens reais, as quais po­dem ser substituídas.

O pensamento derreísta facilita ao enfermo a realização de desejos: "con­verte o paciente com delírio de grandezas em dono do mundo; ou suprime no paciente, durante o delírio de perseguição, toda censura e lhe possibilita ver a culpa nos demais e não em suas próprias faltas".

O significado do pensamento derreísta não se resume em simples reali­zações de desejos. Consiste em uma atividade incessante, desde que a pessoa se encontre em estado vigil, atividade que é considerada como devaneio nas pessoas normais e derreísta nos casos patológicos, caracterizando-se pelo completo desligamento do mundo externo. No entanto, a vida no meio social exige uma permanente adaptação afetiva, acompanhada da tomada de posi­ções, de decisões e de uma vontade forte para agir. Estas qualidades são in­teiramente desnecessárias no mundo autístico, razão pela qual o pensamen­to derreísta assume as suas próprias leis.

Bleuler completa a sua exposição afirmando que "os desejos e os temo­res constituem o conteúdo do pensamento derreísta. Nos casos em que não são percebidas as contradições com a realidade, estão incluídos somente os desejos; os temores aparecem quando o paciente toma conhecimento dos obstáculos que se opõem aos seus desejos" . O pensamento derreísta se ma­nifesta, também, através da incapacidade que os enfermos revelam para en­frentar a realidade, em suas reações inadequadas ante as influências externas.

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