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Incompatibilidades do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM – com a Terapia Analítico-Comportamental

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (American Psychiatric Association, 2002) – ou DSM – é um livro que contém uma listagem dos transtornos psiquiátricos e seus respectivos critérios diagnósticos, além de dados epidemiológicos, padrões familiais, diagnóstico diferencial, entre outros. O DSM tem por objetivo auxiliar na identificação de sinais e sintomas, possibilitando a descoberta da etiologia, curso e resposta ao tratamento (Cavalcante & Tourinho, 1998).

Atualmente, o DSM se faz um instrumento de grande utilidade clínica na prática psiquiátrica, pois, a partir de sua taxonomia, os diagnósticos tornaram-se mais fidedignos, as pesquisas mais precisas, as indicações dos tratamentos (seja este farmacológico ou psicoterápico) mais acuradas e os prognósticos mais previsíveis.

Entretanto, psiquiatras apontam que, embora os critérios diagnósticos resultem de diversas pesquisas, discussões e ampla revisão bibliográfica, eles são necessariamente arbitrários; por conseguinte, indivíduos que sofrem de um determinado transtorno podem não satisfazer os critérios, enquanto um grupo heterogêneo de pacientes pode receber o mesmo diagnóstico (Kaplan, Sadock & Grebb, 1997; Fleck & Shansis, 2004).

O DSM, quando se propõe a ordenar e categorizar os transtornos mentais a partir de conjuntos de critérios específicos, está de acordo com a postura da Ciência em classificar e sistematizar – através da observação, identificação, pesquisa e explicação racional – determinados fenômenos da natureza. Entretanto, na perspectiva analítico-comportamental, o Manual parece ser pouco profícuo para a prática clínica, sendo apenas um facilitador na comunicação de diferentes profissionais da saúde mental (assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, etc.), e uma referência ateórica que possibilita um diálogo com psiquiatras e psicólogos clínicos com orientação em diferentes abordagens teóricas.

Por ser baseado no modelo médico, o DSM busca descrever os sinais e sintomas anteriormente a qualquer teorização ou, em termos comportamentais, visa descrever a topografia (ou forma) do comportamento. Segundo a Terapia Analítico-Comportamental, a ênfase em tal aspecto é inadequada, pois um mesmo repertório comportamental pode ser resultado de histórias de vida distintas e, assim, possuir diferentes funções (Cavalcante & Tourinho, 1998). Esta abordagem psicoterápica investiga as relações de dependência entre o comportamento e as alterações no ambiente (conseqüências) com o qual o indivíduo interage. Todavia, embora a topografia seja insuficiente para uma avaliação funcional, é um equívoco ignorá-la, pois as diferentes formas do comportamento podem alterar suas funções.

Além do enfoque na topografia de instâncias comportamentais, as fontes de rejeição ao DSM por parte da Terapia Analítico-Comportamental estão em suas palavras diagnóstico, estatístico, transtornos e mentais.

O termo diagnóstico é utilizado em medicina para indicar uma fase do ato médico em que o profissional procura a natureza e a causa de uma doença e, na medicina psiquiátrica, o diagnóstico representa a classificação de uma estrutura psíquica subjacente, entendida como constituinte e inerente àquele indivíduo e que, por conseguinte, nunca vai mudar. A perspectiva analítico-comportamental discorda dessa classificação, pois assevera, com base em inúmeras pesquisas empíricas, que o comportamento é mutável, fluido e evanescente (Skinner, 1953/2003). Neste sentido, inversamente à psiquiatria tradicional, a Terapia Analítico-Comportamental defende a observação sistemática da problemática do cliente a cada sessão, pois, na medida em que o comportamento é plástico, o “diagnóstico” que se faz no começo de uma intervenção pode deixar de ser válido após algumas sessões, a não ser apenas como uma medida para examinar as mudanças ocorridas (Banaco, 2006).

A estatística, segundo o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, é uma “parte da matemática em que se investigam os processos de obtenção, organização e análise de dados sobre uma população ou sobre uma coleção de seres quaisquer, e os métodos de tirar conclusões e fazer ilações ou predições com base nesses dados” (Ferreira, 1999, p. 830). Ao se basear no modelo estatístico, o DSM avalia os comportamentos, pensamentos e sentimentos humanos a partir de uma média da população que, com efeito, não representa nenhum indivíduo qualquer. Por outro lado, a Terapia Analítico-Comportamental trabalha com o chamado “modelo de sujeito único”, em que cada indivíduo é comparado somente com ele mesmo, ou seja, a análise está comprometida com a singularidade de cada ser humano em particular, não interessando, portanto, a média da população (Matos, 1990). Em resumo, o Manual ocupa-se com uma análise intersujeitos e a Terapia Analítico-Comportamental com uma análise intrasujeitos.

A palavra transtorno, no DSM, é utilizada como sinônimo de anormalidade e doença. A Terapia Analítico-Comportamental não lida com tais conceitos, pois compreende que todo e qualquer comportamento é, de alguma forma, adaptado (embora possa trazer muito sofrimento), na medida em que sua determinação está nas conseqüências que produz, num sentido semelhante à teoria da seleção natural de Charles Darwin. Isto quer dizer que um paciente psiquiátrico se comporta, pensa e sente da forma que os faz devido a sua história de interação com o mundo, portanto, a noção de “anormal” é desconstruída, uma vez que existem leis gerais para todos os comportamentos (Banaco, 2006). Em suma, o comportamento dito “anormal” ou “doentio” “pode ser resultado de combinações quantitativas e qualitativas de processos que são, eles próprios, intrinsecamente ordenados, absolutamente determinados, e normais em sua origem” (Sidman, 1966, p. 43).

O termo mental, etimologicamente, refere-se àquilo que é proveniente da alma ou do espírito, compreendido como uma substância imaterial onde se situam os processos psíquicos (Houaiss, 2001). O dualismo mente/corpo, que professa que subjetividade e comportamento são entidades de naturezas diferentes que operam separadamente, ainda persiste em algumas tradições psicológicas, embora incontáveis evidências da neurociência moderna demonstrem que a mente é produto do cérebro (Bear, Connors & Paradiso, 2002). A Terapia Analítico-Comportamental rejeita esse dualismo e assevera que os chamados fenômenos mentais são de natureza física, sendo, portanto, uma psicologia monista materialista (Skinner, 1945/1961). As palavras dos eminentes neurocientistas Michael Gazzaniga e Todd Heatherton corroboram a defesa do monismo materialista que Skinner (1945/1961), o “pai” da Psicologia Analítico-Comportamental, fez há mais de sessenta anos: “a atividade mental resulta de processos biológicos dentro do cérebro, tal como a ação de células nervosas e reações químicas associadas. (…) Basta saber que 'a mente é o que o cérebro faz'" (Gazzaniga & Heatherton, 2005). Por fim, é importante observar que o próprio DSM reconhece a problemática do uso do termo “mental” ao afirmar que “embora esta obra se intitule Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a expressão ‘transtornos mentais’ infelizmente sugere uma distinção entre transtornos ‘mentais’ e transtornos ‘físicos’, um anacronismo reducionista do dualismo mente/corpo” (American Psychiatric Association, 2002, p.27).

Em conclusão, o DSM é um manual que classifica indivíduos sob rótulos diagnósticos e estuda seus comportamentos, pensamentos e sentimentos em comparação com os de outros sujeitos. Em contrapartida, a Terapia Analítico-Comportamental fornece um modelo consciencioso ao considerar que cada ser humano é singular, que todo comportamento tem função adaptativa e que a intervenção psicoterápica deve ser baseada nas relações do indivíduo com o ambiente.

Referências:

American Psychiatric Association (2002). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ª ed., texto revisado). Porto Alegre: Artmed.

Banaco, R. A. (2006). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: topografia ou função. Aula ministrada no curso “A ansiedade e os transtornos de ansiedade de acordo com a Análise do Comportamento”, São Paulo – SP.

Bear, M. F., Connors, B. W. & Paradiso, M. A. (2002). Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed.

Cavalcante, S. N. & Tourinho, E. Z. (1998). Classificação e diagnóstico na clínica: possibilidades de um modelo analítico-comportamental. Psicologia Teoria e Pesquisa, 14, 2, pp. 139-147.

Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa (3ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Fleck, M. P. A., & Shansis, F. (2004). Depressão. In: F. Kapczinski, J. Quevedo & I. Izquierdo (orgs.), Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos (pp. 265-273). Porto Alegre: Artmed.

Gazzaniga, M. S. & Heatherton, T. F. (2005). Ciência psicológica: mente, cérebro e comportamento. Porto Alegre: Artmed.

Houaiss, A. (2001). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.

Kaplan, H. I., Sadock, B. J. & Grebb, J. A. (1997). Compêndio de psiquiatria (7ª ed.), Porto Alegre: Artmed.

Matos, M. A. (1990). Controle experimental estatístico: a filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 8, pp. 585-592.

Sidman, M. (1966). Normal sources of pathological behavior. In R. Ulrich, T.Stachnik and J. Mabry (orgs.). Control of human behavior (pp. 42-53). Glenview: Scott, Foresman and Co. Publicado originalmente em Science, 132, pp. 61-68.

Skinner, B. F. (1945/1961). The operational analysis of psychological terms. In: B. F. Skinner, Cumulative record (pp. 272-286). New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes.

* Agradeço ao Dr. Felipe Corchs e ao Dr. Alexandre Saadeh pelos comentários acerca da primeira versão deste texto.

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