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O verdadeiro crime do Dr. Jung por Davy Bogomoletz – parte II

(continuação)
 

Sabendo, como sabemos, que Jung baseava a sua proposta teórica fundamentalmente sobre o inconsciente coletivo, mais cultural que o inconsciente sexual da escola freudiana, é preciso reconhecer que o Nazismo lhe ofertou, como que sobre uma bandeja, um fenômeno social que poderia ser tomado como a comprovação final de suas proposições. Algo parecido com o que a medição da curvatura dos raios de luz, durante umclipse, fez para com o elemento central da teoria de Einstein. Que o inconsciente tivesse esse poder político, que o inconsciente humano tivesse esses conteúdos culturais, antropológicos, mitológicos, capazes de levar de roldão não só todo um povo, mas todo um continente, e por pouco não todo o mundo, era mais do que o idealizador da noção de "inconsciente coletivo" poderia esperar da sorte.

Ele havia afirmado, até então, que esse estrato pré-individual da mente podia levar o seu portador apenas à loucura, e era a verdadeira matriz da doença mental. Deve ter sido delicioso, para ele, observar nos primeiros tempos do Nazismo como esse inconsciente trans-individual, com o arquétipo de Wotan lá dentro, esporeando seu cavalo mágico e brandindo seu enorme martelo, era capaz na verdade de mover o mundo, de tomar de assalto a preclara razão de metade da humanidade esclarecida, e infligir o terror e a morte à outra metade. Se algo houve na face da Terra que pudesse levar às culminâncias do prestígio as proposições de Jung, esse algo terá sido certamente o Nazismo. No entanto, não lhe caiu bem o sabor da glória, pois já em 1940, segundo Bittencourt, encontraram nele os nazistas – esses ingratos irracionalistas – mais um inimigo que um aliado, e o escorraçaram para o índex.

Pode se bem dizer: "Sorte a dele"! Pois pode ter sido de início glorioso considerar-se o mitólogo, o sacerdote à porta do oráculo, que compreendia a aventura nacional-socialista e lhe dava a legitimação científica "apolítica". Mas teria sido mortífero, mais tarde, vir a ser identificado como o grande mitólogo e "intérprete" dos fornos crematórios.

Talvez, é preciso mais uma vez confessar, não interessasse verdadeiramente a Jung a aniquilação sumária e bestial da população judaica. Talvez lhe bastasse que os psicanalistas "judeus" sumissem do mapa, e seu ressentimento apenas o impedia de referir-se à fronteira existente entre a liquidação (ao menos profissional) dos inimigos pessoais e o massacre de todos os seus correligionários, próximos ou distantes. Por este motivo falei, anteriormente, de "racismo passivo". (Há muitos que, no Brasil, jamais apertariam o gatilho contra um negro desconhecido, mas não se importam nem um pouco se outros o fazem. "Devem ter seus motivos", pensam os racistas passivos com seus botões, e prosseguem em seu pacífico e humaníssimo caminho. O fenômeno, creio eu, deve ser bastante conhecido. Não me ocorrem, em todo caso, meios de prová-lo.)

E assim chegamos, mais por exaustão que por falta de mais coisas a dizer, ao outro texto, bem a propósito intitulado por seu autor "Depois da Catástrofe", publicado pela primeira vez em Zurique, em 1946, outra vez na Neue Schweizer Rundshcau.

"Ao final do artigo anterior" (de 1936, em que havia tocado pela última vez no tema "Alemanha"), diz ele logo no parágrafo de abertura, "citei uma passagem da Voluspà: "O que murmura Wotan com cabeça de Mime?", a fim de caracterizar a natureza apocalíptica dos acontecimentos futuros. O mito tornou-se realidade, e hoje grande parte da Europa encontra-se em ruínas."

Esse é um artigo deveras impressionante. Depois do que foi dito acima a respeito do modo como Jung descreve Hitler, com uma admiração quase idólatra, atribuindo-lhe poderes "junguianos" – sim, é isso mesmo – explícitos e esplendorosos, era de se esperar que ele agora dissesse alguma coisa – qualquer coisa – sobre o engano cometido, e sobre a terrível sombra (inclusive no sentido "junguiano") (6) que deveria estar pairando a essa altura sobre a sua magnífica contribuição para o entendimento da alma humana.

Sim, porque Jung havia dito que o homem é um repositório de arquétipos, que os arquétipos são os verdadeiros governantes da alma humana, que Hitler era aquele que tinha mais acesso aos próprios arquétipos,  (ao próprio inconsciente), e que por isso era lhe fácil o acesso também ao inconsciente do povo alemão, e que por isso ele, Hitler, não era ele, Hitler, mas o cume do vulcão por onde jorrava a lava da alma alemã, tudo isso havia sido dito por Jung e enfeitado por palavras que nem de longe lembrariam uma advertência, um alerta, uma premonição de catástrofe. Não. Quando alguém descreve um guerreiro como personificando o destino de seu povo, que outros, de outros povos, não podem pretender compreender, obviamente não está esse alguém referindo-se a um demônio, a um destruidor, a um perigoso fascínora, mas a um conquistador, a um líder que levará seu povo aos confins da glória, a, por fim, cumprir seu destino na História. Foi com essas palavras, conforme citado acima, que Jung havia "diagnosticado" Hitler enquanto líder, na entrevista concedida em 1938.

E agora? Como fica agora a "previsão" do homem que entende os oráculos? Ora, agora surge um Hitler "cujo diagnóstico mais preciso só pode ser o de pseudologia phantastica", assim mesmo, em Latim, indicando uma "doença" constituída por "uma forma de histeria que se caracteriza pela capacidade especial de acreditar nas próprias mentiras." (# 419) E o "megafone da alma alemã", onde foi parar? E onde foi parar o "receptáculo dos 78 milhões de inconscientes" alemães, que por isso mesmo, "até agora" – 1938 – era "infalível"?

De que modo livrou-se Jung dessa figura telúrica e heróica, no melhor sentido mitológico, portanto arquetípico, e a transforma, agora, num "cego completo acerca do próprio caráter, admirando auto-eroticamente a si mesmo, …,  projetando a própria "sombra" e falsificando mentirosamente a realidade, desejoso de impressionar e se impor, blefador e impostor"? Pois  esse é agora o retrato "daquele homem que foi dado clinicamente como histérico, mas que um destino curioso transformou durante doze anos no expoente político, moral e religioso da Alemanha." E o parágrafo termina com a pergunta: "Será isso um mero acaso?" (# 418)

Não, obviamente não era um acaso. O que Jung sustenta, ao longo de todo esse artigo, é que – se espremermos bem as suas palavras – somente duas pessoas não têm de que se culpar, em todo esse "surto" que foi a Segunda Guerra Mundial: Ele próprio, que jamais disse algo de impróprio, e Hitler – o pobre doente mental, mero repositório da doença mental do povo alemão, sobre ele projetada, e mero emergente do interior desse grande hospício chamado "Alemanha", que na verdade não passa de uma ala nesse hospício bem maior chamado "Europa". De fato, ao longo de todo o seu artigo, Jung esforça-se por espalhar a culpa sobre todos e cada um, sobre atacantes e atacados, sobre algozes e vítimas, sobre alemães e sobre não alemães. Só não disse explicitamente – valeu-lhe o "bom gosto", cuja falta tanto deplorou em Stalin – que os judeus também eram culpados pela catástrofe…

O mais impressionante, porém, é a falta de coerência verdadeiramente espantosa que ele se permite demonstrar acerca da figura de Hitler. De mágico e quase divino, no sentido grego da palavra, agora ele o descreve como se antes já o houvesse visto como um "espantalho psíquico (com um braço estendido à semelhança de um cabo de vassoura)", e garante que "O povo alemão não se teria deixado convencer (a não ser algumas poucas exceções inexplicáveis) pelos (seus) gestos tão ridículos e tão patéticos, ou seja, tão manifestamente histéricos, e pelos seus discursos prolixos, se a sua figura (a do espantalho psíquico) não refletisse a histeria geral dos alemães." (# 419)

Creio que basta, para o fim de configurar uma acusação, esta última prova material do crime: Esta peça de oratória que exibe, qual lança espetada varando o próprio tórax, a capacidade de desdizer-se e contradizer-se com a mais deslavada falta de vergonha.

Pouco antes, Jung descreve – para melhor desenhar o perfil do povo alemão – a figura do "criminoso pálido", imaginada por Nietzsche, o qual "não quer e não consegue aceitar ser como é; não pode aceitar sua culpa, como tampouco pode deixar de cometê-la. Ele não se envergonha de enganar a si mesmo para salvar a pele. Isso acontece em toda parte. Mas jamais, ao menos parece, aconteceu de modo tão nacional como na Alemanha." (# 417). Talvez. Mas jamais aconteceu também de modo tão agudo num único indivíduo como neste caso, nesse indivíduo chamado Carl Gustav Jung.

O artigo "Depois da Catástrofe", que poderia ser um verdadeiro exercício de reabilitação, uma verdadeira reflexão sobre, em primeiro lugar, o auto-engano cometido em "Wotan" e, principalmente nas entrevistas concedidas posteriormente, (e Jung bem que adverte, retroativamente, ao início de "Depois da Catástrofe", que "a transmissão exclusivamente oral possibilita a criação de lendas", e é por esta razão que ele agora se decide a escrever suas opiniões – ou seja, se alguma afirmação lamentável houve, a culpa foi da imprensa, nunca dele – # 401) revela-se a mais completa decepção, para quem o lê buscando em Jung o sábio amadurecido pela amarga experiência com a própria falibilidade. Pois é ao Fausto de Goethe que ele atribui, quase ao final, a frase salvadora, a frase que redime o culpado e o torna sujeito da culpa e, assim, candidato ao perdão: "Este é o meu outro lado, o meu alter ego, a minha sombra infelizmente demasiado real e inegável." (# 439). Ele nada tem a ver com isto. Ele nada fez ou disse que lhe possa ser cobrado.

Sim. Houvesse Jung dito algo desse tipo sobre si próprio, houvesse ele admitido ter se deixado arrastar pela tentação da onipotência, esse mal essencial do homem, que os gregos chamavam de hübrys – o maior dos pecados na teologia grega – e que Freud tão bem estudou e esmiuçou, mas que ele mesmo, ao menos nesse trabalho, não cita em momento algum – houvesse ele, enfim, admitido a culpa de ter permitido que a fantasia da onipotência o arrastou para a lama da ilusão que se revelou assassina – poder-se-ia dizer: "Sim, eis aí um homem que assume a responsabilidade por seus atos, admite a culpa por seus deslizes, aceita envergonhar-se abertamente por reconhecer que cometeu o pecado."

Mas não. Até o fim do artigo, que não é curto, Jung nada mais faz que espalhar a culpa e lambuzá-la em tudo que lhe aparece pela frente. E ele diz, pouco depois do parágrafo citado acima, algo ainda mais tacanho e mal parado: "Onde a culpa é grande, a graça também pode ser imensa. (…) (mas) Sempre nos esquecemos disso, porque olhamos com fascínio as circunstâncias que nos rodeiam, em lugar de examinar nosso coração e nossa consciência. Todo demagogo se aproveita dessa fraqueza humana e denuncia, alto e bom som, o descaminho das circunstâncias exteriores. No entanto, o que em última instância não caminha bem é o homem." (# 441) Não "Eu". "O homem"!…

E é esse o grande crime do Dr. Jung: essa incapacidade inacreditável – num psicanalista – de olhar para si mesmo no espelho, de encarar a própria verdade, de confrontar-se corajosamente com a própria sombra. A frase "Eu não fiz nada de errado", obviamente, não está escrita no trabalho, mas é ela e não outra que grita em cada uma das suas entrelinhas. Jung, aquele que sempre esteve certo, novamente está certo. Jung, aquele que nunca errou, agora denuncia os erros alheios e nada precisa confessar de seu.

O parágrafo que definitivamente o incrimina é este: "Todavia o demônio (com a fundação do Reich em 1871) adiantou-se ao espírito alemão, seduzindo-o com a isca do poder, da posse material e do orgulho nacional, fazendo com que o povo imitasse ao pé da letra os seus profetas sem, no entanto, compreendê-los. Desse modo, o alemão, ao invés de se ter ocupado com a riqueza de suas potencialidades espirituais, deixou-se seduzir por esses enganos, pelas velhas tentações de Satã. Esqueceu seu cristianismo, vendeu o espírito à técnica, trocou a moral pelo cinismo e consagrou sua maior aspiração às forças da aniquilação. É bem verdade que todos fazem o mesmo. Entretanto, existem certos homens que não deveriam fazê-lo, porque deveriam aspirar a riquezas superiores." (# 433)

Como vemos, a verdadeira gênese da Segunda Grande Guerra já não é mais a Primeira Grande Guerra, com sua miséria e sua humilhação, como está indicado em "Wotan". Agora essa raiz recua para 1871, quando Bismarck unifica a Alemanha e a transforma num país. Goethe não precisou de Bismarck para alcançar a glória, é o que diz Jung. E Hitler não encarnou Wotan, e sim Satã. Talvez em alemão as duas palavras não rimem, como em português, mas se para Jung elas não fizeram uma rima, ao menos fizeram uma solução: Se é Satã que move Hitler, e não Wotan, então está tudo explicado. Até aqui, a canalhice costumeira de lançar a culpa sobre o outro – agora Satã – que ele mesmo denuncia e ele mesmo comete com a mais tranqüila inconsci(st)ência. O arremate, porém, é que é "de arrepiar", como se diz entre nós: "Entretanto, existem homens que não deveriam fazê-lo, porque deveriam aspirar a riquezas superiores."

Que esta frase se encaixa como uma luva, ou melhor, como uma carapuça – conforme o "hábito" (nos dois sentidos) que nos legou a Inquisição – na cabeça do próprio autor, só não percebeu quem já havia esquecido o que ele mesmo havia dito não há tantos anos assim. O problema é perceber que ele próprio "esqueceu" tudo que havia dito – e escrito – antes. "Depois da Catástrofe" revela-se, assim, uma outra catástrofe, a catástrofe da credibilidade, da honradez que se espera do sábio, da honestidade intelectual vergonhosamente assassinada.

Concluindo, reconheço que não posso imputar a Jung a pecha de nazista, nem de anti-semita, nem de assassino, nem de racista ("ativo", ao menos), nem qualquer outro tipo de delito de sangue.

Renato Bittencourt, concedamos-lhe mais esta, arrola em seu trabalho uma testemunha de defesa que merece de minha parte inteira credibilidade: Gershon Scholem (pág. 181), e com este depoimento encerro definitivamente o "caso de anti-semitismo" contra Jung. Scholem, o grande estudioso da mística judaica, evitou em certo momento (1949) encontrar-se com Jung, por ter ouvido acusações que sobre ele pesavam. Mas ele próprio, Scholem, valeu-se de uma testemunha de defesa, o famoso rabino Leo Baeck – que lhe contou ter também suspeitado de Jung, sendo procurado por este para uma longa conversa a dois, na qual Jung afirmou: "Cometi um deslize", e assim fizeram as pazes. Scholem, com base no testemunho de Baeck, também "fez as pazes" com Jung, e para mim o seu testemunho é bastante. É verdade que não fica explicado qual "deslize", é bem verdade que no trabalho ora analisado não há a menor menção a esse "deslize", mas não posso duvidar do discernimento de Gershon Scholem, principalmente em se tratando de matéria tão imensamente sensível. Não que ele seja, com perdão da palavra, "infalível", mas simplesmente porque não tenho a mais leve razão para suspeitar de seu julgamento. Até agora, ao menos.

 

No entanto, cabe a esse homem, o Dr. Carl Gustav Jung, explicar lá em cima, pois já não mais está ao alcance da justiça dos homens, como conseguiu distorcer de forma tão espantosamente genial a própria consciência. Como lhe foi possível voltar atrás no que havia dito tão poucos anos antes, sem dar a menor impressão de estar voltando atrás. Como lhe foi possível pretender a tal ponto esconder que hoje estava dizendo o oposto diametral do que havia dito ontem, jamais gastando uma única sílaba para desculpar-se ou ao menos lamentar o erro clamoroso que havia cometido, ou mesmo reconhecer, apenas reconhecer, que antes havia dito coisas diferentes. No meu entender, ele terá de explicar não por que odiou os judeus, como querem alguns, e não está provado, mas por que foi capaz de – e isto está provado – brincar com a hübrys durante tanto tempo, sabendo-a (quem melhor do que ele, o mitólogo mor, o saberia?), o crime maior do homem, e depois fingir inocência de forma tão grotescamente abjeta e canalha. Por este crime, aqui demonstrado, ao menos eu não lhe perdoarei jamais.

NOTAS

* – "Wotan" e "Depois da Catástrofe" constam das Obras Completas de C.G.Jung, vol. X – "Psicologia em Transição", editora Vozes, 1993, Petrópolis.

1- JUNG, C.G., "Zichronót, Chalomót, Machshavót" ("Memórias, Sonhos, Reflexões"), anotações e redação de Aniela Jaffé, tradução para o hebraico de Mikha Ankori, editora Ramót em conjunto com a Universidade de Tel Aviv, Tel Aviv, 1993.

2- BITTENCOURT, Renato, "Freud e Jung, a Correspondência e os Conflitos", capítulo 9. Sem indicação de editora ou data.

3- ALEXANDER, Franz e SELESNICK, Sheldon, "História da Psiquiatria", ed. Ibrasa, 1966, São Paulo.

4- CHEMOUNI, Jacquy, "Freud e o Sionismo", editora Imago, 1992, Rio de Janeiro.

5- McGUIRRE, William, e HULL, R.F.C., coordenadores, "C.G.Jung – Entrevistas e Encontros", Editora Cultrix, sem indicação de data, São Paulo.

6- "Sombra", conceito lançado por Jung para indicar o lado sombrio, rejeitado, muitas vezes (mas não necessariamente) inconsciente da mente, muito próximo, em sua natureza e funcionamento, ao id de Freud, com a diferença de que Jung não atribui à "sombra" o papel de repositório das energias vitais, como faz Freud com o id.

Atenção: a parte I deste texto segue na Seção Colunistas.

One thought on “O verdadeiro crime do Dr. Jung por Davy Bogomoletz – parte II”

  1. No languaje exists that cannot be misused… Every interpretation is hypothetical, for it is a mere attempt to read an unfamiliar text.

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