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Neurociência do comportamento agressivo – parte V

Mecanismos cerebrais dos comportamentos de agressão

Dado o número e a diversidade dos fatores que participam do determinismo dos comportamentos de agressão, não pode tra­tar-se – sobretudo nos mamíferos mais evoluídos e, singular­mente, no Homem – de pesquisar um "centro" ou "substrato neural" qualquer cuja ativação, por um estímulo "desenca­deante", se projetasse para o exterior sob a forma de um ou outro desses comportamentos. Assim, é preciso, acima de tudo, não perder de vista que nenhum desses fatores poderia repercutir no comportamento sem a mediação de um mecanis­mo cerebral cujas modalidades de funcionamento respondes­sem, elas próprias, a um determinismo complexo. Assim é que certos aspectos das fases precoces da ontogênese, do mesmo modo que a experiência passada que precede de maneira mais imediata um dado comportamento, só podem exercer uma in­fluência moduladora na medida em que tenham deixado traços no cérebro, afetando as modalidades de acionamento e funcio­namento deste ou daquele mecanismo cerebral. Nessas condi­ções, o tratamento da informação que levará, finalmente, à adoção de um comportamento de agressão será um tratamento "contextual", que integrará, simultaneamente, a situação de conjunto com que o organismo é confrontado, diversos parâ­metros de seu estado fisiológico do momento e diversos aspec­tos da vivência que contribuíram para modelar, a parte das po­tencialidades fornecidas pelo genoma, os mecanismos cerebrais que garantem esse tratamento. Essa breve exposição preliminar traz à luz o número e a diversidade dos mecanismos cerebrais necessariamente colocados em jogo, ao mesmo tempo, que já orienta a escolha e a definição dos processos e dos mecanismos cuja natureza cabe precisar concretamente.
É clássico examinar sucessivamente, em uma exposição so­bre o comportamento, as "entradas" e as "saídas" do sistema. Em benefício da clareza, efetivamente exponho em separado os mecanismos implicados na percepção "contextual" de uma dada situação e os implicados na escolha de uma resposta adap­tada. Mas convém sublinhar o caráter basicamente artificial dessa separação, pois de modo algum se trata, na realidade das coisas, de um determinismo linear e unidirecional. No domí­nio das interações socioafetivas, o comportamento tem como função essencial criar, manter ou restabelecer a homeostase relacionaI e afetiva, assim como, no caso da homeostase do meio interno, o cérebro registra os desvios em relação a este ou àquele estado de equilíbrio, e o comportamento programa­do visará a corrigir um desvio similar. Em outras palavras, as "saídas" do sistema visam, em essência, a controlar e a modu­lar suas "entradas", Além disso, a maneira como uma certa si­tuação é percebida depende daquilo que o indivíduo já apren­deu – ou não – para responder a ela de maneira adaptada e eficaz; e, do próprio comportamento e de suas conseqüências, nascem sinais nervosos e secretórios que repercutem, em contra­partida, no funcionamento ulterior deste ou daquele mecanis­mo cerebral. Enfim, quando a natureza da informação perce­bida conduz à seleção de uma certa estratégia, a tomada da informação é focalizada, por seu turno, pela ação a ser reali­zada. Essas breves noções muito genéricas tornam evidente que o discurso linear, necessariamente utilizado neste artigo, não conseguiria apreender o real senão de maneira inábil e exageradamente simplificadora.

Percepção da relação individual com uma situação potencialmente agressogênica

São numerosos os fatores e mecanismos que concorrem para o tratamento da informação que emana de uma dada situação. E esses mecanismos de modo algum se encadeiam em uma seqüên­cia linear, pois, com efeito, nesse processo perceptivo, a toma­da da informação interage de maneira complexa com o nível de vigilância e com a qualidade da atenção, com os aspectos quantitativos e qualitativos da reatividade emocional, com as referências feitas à experiência passada e com as previsões acer­ca das conseqüências possíveis da resposta considerada. Além disso, os fatores de secreção modulam – e são modulados por ­esse processo perceptivo.

Um caso concreto: o comportamento de agressão interespecífico rato-camundongo

Esse comportamento foi escolhido para servir de exemplo não somente por vir sendo estudado há muitos anos em laboratório, mas por ilustrar perfeitamente algumas das noções muito genéricas que acabam de ser evocadas.

Em uma espécie macrósmica como o rato, as informa­ções de natureza olfativa desempenham um papel importante na percepção das mudanças ocorridas no ambiente. Em nume­rosos casos, um estímulo olfativo pode agir, enquanto tal, co­mo estímulo-desencadeador de um dado comportamento. Mas, em se tratando dos comportamentos de agressão, uma característica particular do estímulo é passível de desempenhar um papel preponderante, a saber, a de sua eventual novidade! De fato, a novidade de um estímulo é um fator importante no determinismo tanto das respostas de aproximação quanto das respostas de evitação (Corey, 1978). E Marler (1976) assinala, com razão, que a estranheza é um estímulo muito eficaz para desencadear uma agressão, e que "talvez seja precisamente a familiaridade que constitui, afinal de contas, o fator mais im­portante para reduzir a probabilidade de agressão".

Podemos considerar o comportamento de agressão in­terespecífica (quando o rato é confrontado pela – ou pelas ­primeira(s) vez(es) com a intrusão de um camundongo, mas não quando já adquiriu a experiência dessa agressão interespe­cífica) como um comportamento de "intolerância", que visa a desvencilhar-se do intruso e que traduz a "neofobia" do ra­to, ou seja, sua tendência natural a evitar os objetos não-fa­miliares em um ambiente familiar. Essa tendência é muito mais acentuada no rato selvagem do que no rato de laboratório, e essa diferença pode explicar, ao menos em parte, o fato de a proporção de ratos "assassinos" ser muito mais elevada en­tre os animais selvagens (aproximadamente 85-90%) do que entre os animais de laboratório (aproximadamente 10-15%). Além disso, certos ratos de laboratório matam os camundon­gos selvagens, mas não os camundongos de laboratório (com respeito aos quais a neofobia é provavelmente menor) que são introduzidos em sua gaiola. Ademais, no seio de uma dada po­pulação de ratos, a proporção dos que matam uma rã intro­duzida em seu ambiente familiar é nitidamente mais elevada que a proporção dos que matam um camundongo colocado em sua presença.

A hipótese segundo a qual são as características de novi­dade e estranheza dos estímulos emanados do camundongo que desempenham um papel preponderante no desencadea­mento inicial da reação de agressão interespecífica do rato acha-se amplamente confirmada – ainda que de maneira indi­reta – por todas as observações que mostram que uma familia­rização prévia com a espécie camundongo impede, de maneira eficaz, o desencadeamento desse comportamento. Os contatos sociais precoces com camundongos se traduzem em uma incidên­cia nitidamente reduzida da reação de agressão interespecífica no rato adulto. Mesmo os ratos selvagens não atacam os ca­mundongos, desde que tenham tido a oportunidade de se fa­miliarizarem previamente com animais dessa espécie (Galef, 1970). O estado de fome, que eleva o nível de reatividade do organismo, facilita claramente o desencadeamento inicial da agressão interespecífica; mas essa facilitação, induzida pela hipoglicemia, é muito mais acentuada nos ratos que tiveram pouco ou nenhum contato prévio com camundongos do que nos ratos que viveram em contato com camundongos durante períodos prolongados (Paul & cols., 1973).

A destrui­ção do septo, que provoca uma hiper-reatividade pronunciada, facilita igualmente o desencadeamento inicial do comporta­mento de agressão interespecífica (Miczek e Grossman, 1972; Miley e Baenninger, 1972); e, se não observamos essa facili­tação em seguida a lesões septais que praticamos desde 1960, foi por essas lesões terem sido efetuadas em ratos que tinham sido familiarizados, nas semanas precedentes à intervenção, com a presença de um camundongo em sua gaiola. Com efeito, em uma experiência reprisada mais recentemente (Penot e Verg­nes, 1976), evidenciou-se claramente que o comportamento dos ratos, no dia seguinte à destruição do septo, diferia pro­fundamente conforme os animais fossem confrontados pela primeira vez com a intrusão de um camundongo em sua gaiola ou, ao contrário, tivessem mantido contatos prolongados com camundongos antes da intervenção: no primeiro caso, 60% dos ratos operados mataram o camundongo introduzido em seu ambiente familiar; no segundo, apenas 8% mataram o ca­mundongo recolocado em suas gaiolas. Podemos acrescentar que, em um estudo relativo aos comportamentos de agressão apresentados pelo rato selvagem diante de sujeitos humanos, camundongos ou congêneres, Galef (1970) constatou que a novidade dos estímulos era sempre uma condição necessária ao desencadeamento da agressão, e que a familiaridade com uma categoria de estímulos reduzia nitidamente a probabili­dade de uma reação de agressão diante deles, sem afetar a probabilidade de agressão em resposta às duas outras cate­gorias de estímulos que tinham preservado sua característica de novidade.

O papel desempenhado pela experiência afetiva de natu­reza aversiva suscitada por certos estímulos (ou experimental­mente associada a eles), e não tanto por esses estímulos en­quanto estímulos-desencadeadores no sentido clássico do termo é igualmente evidenciado pela observação que se segue. Pode-se desencadear facilmente um comportamento de agressão interespecífica no rato naturalmente "não-assassino" es­timulando-o ao nível do sistema de reforço negativo e, desse modo, associando à intrusão do camundongo uma experiên­cia afetiva desprazerosa, aversiva, experimentalmente induzi­da. O comportamento de agressão assim desencadeado pode ser considerado como um comportamento de defesa, como uma conduta por meio da qual o rato se esforça em pôr fim a uma emoção de natureza aversiva. Além disso, constata-se que a agressão desencadeada por uma estimulação ao nível do hipotálamo médio, ou no nível da parte dorsal da massa cinzenta central do mesencéfalo, é sempre acompanhada por uma reação emocional intensa e é freqüentemente entremeada com tentativas de fuga. Todos esses pontos de estimulação são pon­tos de auto-interrupção: quando se dá ao rato a possibilidade de interromper a estimulação e os efeitos aversivos que ela in­duz, ele aprende muito depressa o comportamento (por exem­plo, pressionar uma alavanca) que lhe permite pôr fim a isso. E, a partir desse momento, a estimulação do sistema de reforço negativo praticamente deixa de desencadear a conduta agressi­va diante do camundongo introduzido na gaiola.

Enquanto a anosmia – ou seja, a ausência de qualquer percepção olfativa – provocada pela ablação bilateral dos bul­bos olfativos provoca um desaparecimento total da agressão intermachos nos camundongos (Ropartz, 1978), a não-percep­ção das informações de natureza olfativa que emanam do ca­mundongo de modo algum impede que o rato bulbectomi­zado ataque e mate o camundongo introduzido em sua gaiola. De acordo com todas as evidências, não são essas informações, enquanto tal, que desempenham um papel essencial no desen­cadeamento desse comportamento. Isso é corroborado pelo fato – à primeira vista, paradoxal – de que a ablação dos bul­bos olfativos facilita até mesmo o desencadeamento inicial da agressão interespecífica. Na realidade, não é a anosmia provo­cada pela bulbectomia que responde por essa facilitação, pois esta última só é observada quando a anosmia é produzida pela destruição ou ablação da mucosa nasal. O que a bulbectomia bilateral provoca, mais do que a anosmia, uma hiper-reativida­de acentuada, que se traduz igualmente por interações agres­sivas mais freqüentes e mais intensas com os congêneres. Mas, provavelmente, a anosmia deve ser considerada responsável pelo fato de que a bulbectomia facilita a agressão interespe­cífica não apenas no rato confrontado pela primeira vez com um camundongo, mas também naquele que tinha podido familiarizar-se previamente com essa espécie estranha. Isso mostra que o efeito preventivo da familiarização prévia não mais se faz sentir, a partir do momento em que o rato não mais tem condições de reconhecer o camundongo com base em informa­ções de natureza olfativa.

Essa conclusão se junta à que é ex­traída de observações efetuadas quanto ao comportamento do rato "assassino" diante do camundongo e diante dos filhotes de sua própria espécie: quando se apresenta a um Rato "as­sassino", sucessivamente, dois ou três camundongos, e depois um ratinho com a idade de 25 dias (que tem basicamente o tamanho de um camundongo adulto), ele mata rapidamente cada um dos camundongos e, em seguida, investe contra o ra­tinho, e somente no último momento esse comportamento de ataque cede lugar, bruscamente, a um comportamento quase maternal; uma vez privado de seus bulbos olfativos, o rato mata não apenas os camundongos, mas igualmente as crias de sua própria espécie (que não reconhece suficientemente de­pressa para que a agressão iniciada possa ser sustada a tempo). Em outras palavras, se as informações de natureza olfativa não são necessárias, enquanto tais, para que se desencadeie uma agressão interespecífica, desempenham, em contrapartida, um papel essencial no reconhecimento do camundongo previa­mente tornado familiar e, portanto, na prevenção de qualquer agressão diante dele.

A significação e os efeitos comportamentais dos estímu­los que emanam do camundongo são, provavelmente, inteira­mente diferentes no rato "assassino" que tem a experiência do comportamento de agressão interespecífica. De fato, à me­dida que esse comportamento se repete, a motivação a ele sub­jacente evolui no sentido de tornar-se cada vez mais nitidamen­te uma motivação de natureza apetitiva. O rato "assassino" mata mais depressa e mais "friamente"; é raro apresentar a reação emocional mais ou menos intensa que se observa quan­do dos primeiros confrontos com o camundongo. O fato de que o comportamento de "intolerância" e defesa torna-se, desse modo, progressivamente, um comportamento de apetên­cia é atestado por um conjunto de constatações concretas. Por um lado, observa-se que o rato "assassino" que tem a expe­riência desse comportamento procura o camundongo e o ma­ta, mesmo que seu nível de reatividade tenha sido considera­velmente rebaixado (por doses de clorpromazina ou reserpina elevadas até o nível de 15-20mg/kg) ou que ele tenha sido pri­vado de suas aferências olfativas, visuais e auditivas. Por outro lado, a disponibilidade do camundongo para uma agressão in­terespecífica pode desempenhar uma função de "recompensa" nas situações de aprendizagem instrumental (Myer e White, 1965; Van Hemel, 1972).

Portanto, o próprio comportamento de agressão interespecífica se reforça de maneira positiva. Esse reforço positivo se deve, provavelmente, à conjugação de pelo menos três fatores: (1) a execução de uma seqüência compor­tamental característica da espécie, com as retroações proprio­ceptivas que comporta, tem, em si mesma, virtudes reforça­doras; (2) o rato aprendeu que essa agressão é eficaz para pôr fim a – e para prevenir – uma experiência de natureza aversi­va; (3) o rato come parcialmente o camundongo morto, em particular seu cérebro (ao passo que, na maioria das vezes, não come nenhuma parte dos primeiros camundongos que mata). Seja como for, concebe-se facilmente a natureza muito par­ticular da "espera" – da antecipação das conseqüências passí­veis de decorrerem da reação de agressão – que é suscitada, nesse caso, pelos estímulos que emanam do camundongo. E de modo algum surpreende que, precisamente nesse caso, a ablação dos bulbos olfativos tenha o efeito – à primeira vista, paradoxal – de atenuar a tendência do rato "assassino" a ata­car o camundongo (Bandler e Chi, 1972; Thompson e Thorne, 1975), ao passo que essa mesma intervenção acarreta, como vimos, uma facilitação do desencadeamento da agressão in­terespecífica no rato "não-assassino". De modo geral, torna-se evidente que as informações de natureza olfativa não podem ter a mesma significação – e que sua supressão não pode ter os mesmos efeitos comportamentais – conforme se trate de um rato confrontado pela primeira vez com a intrusão de um camundongo em sua gaiola, ou de um rato "não-assassino" que se tenha familiarizado com a presença de um camundongo em seu ambiente, ou ainda de um rato "assassino" que tenha uma longa experiência do comportamento de agressão interes­pecífica e de suas conseqüências.

Assim, dado que a significação das mensagens olfativas é passível de evoluir no tempo, convém sublinhar que essa signi­ficação é, a um tempo, resultante do tratamento dessas infor­mações – singularmente, no nível das estruturas Iímbicas do lobo temporal – e um determinante importante, que afeta, em contrapartida, algumas das etapas iniciais de seu tratamento ao nível dos bulbos olfativos. Vimos anteriormente que, no domí­nio do comportamento alimentar, a resposta do bulbo olfativo aos odores alimentares era objeto de uma facilitação seletiva, graças à atuação de uma influência centrífuga provavelmente proveniente do hipotálamo, a partir do momento em que o organismo estivesse hipoglicêmico devido à privação de alimen­to. No que concerne aos comportamentos socioafetivos do ra­to, o registro da atividade bioelétrica das células mitrais do bulbo olfativo demonstrou que essa atividade era modulada em função da natureza "amedrontadora" (por exemplo, o odor de um predador, como a raposa) ou, ao contrário, "tran­qüilizadora" da informação tratada, e também em função do nível de vigilância, que, por sua vez, pelo menos em parte, é determinado pela significação da mensagem emitida pelos re­ceptores olfativos (Cattarelli & cols, 1977; Cattarelli & Chanel, 1979).

Dessa maneira, parece que, em um comportamento tão "simples" quanto a agressão interespecífica rato-camundon­go, e em um nível tão periférico quanto o dos bulbos olfativos, já existem interações complexas entre o tratamento dos dados objetivos da informação sensorial, o nível de vigilância e de reatividade do organismo, e a significação que tem, para este último, a informação tratada. E, como vimos, essa significação é muito diferente conforme o rato seja "ingênuo" quanto às interações com a espécie camundongo ou tenha a experiência do "não-assassino", ou, ao contrário, a do "assassino". Nessas condições, a interpretação dos efeitos comportamentais in­duzidos pela manipulação experimental dos bulbos olfativos (ablação; modificação de ordem neuroquímica por via geral ou local) é mais difícil – e deve ser feita com maior prudência ­do que se supõe à primeira vista.

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