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Harry Stack Sullivan – parte II

Os dois artigos seguintes são dedicados à obra de Harry Stack Sullivan

Harry Stack Sullivan nasceu em 1892, na granja de seu pai em Norwich, no Estado de Nova Iorque. Além de outras coisas, o fato de seus pais serem católicos, no meio de uma população predominante­mente protestante, contribuiu muito para que rece­besse uma educação um tanto isolada. Depois de ter terminado, em 1917, sua formação médica, Sulli­van foi agregado, em 1919, ao hospital Santa Isabel, em Washington, que naqueles dias estava sob a di­reção de William Alanson White. Este, que trans­formou sua seção psiquiátrica em um instituto de pesquisa e tratamento, teve grande influência na for­mação de Sullivan, cujo talento residia no contato habilidoso com pacientes esquizofrênicos; mais tar­de, também no tratamento psíquico dos mesmos. Nos anos trinta, Sullivan recebeu um "treinamento" psicanalítico. A utilização do mesmo para uma dire­ção inteiramente própria tornou-se evidente em 1936, quando surgiu a assim chamada Washington School of Psychiatry, de cuja direção ele também partici­pava. Desde 1938, até hoje, essa escola publica a revista Psychiatry, em que Sullivan escrevia seus artigos. Colaboradores eram, entre outros: Karen Horney, Erich Fromm, Clara Thompson (autora de Psychoanalysis, Evolution and Develop­ment) e Patrick Mullahy. Este último esforçou-se repetidamente para dar maiores esclarecimentos so­bre as idéias de Sullivan, as quais, muitas vezes, eram pouco compreendidas. Foi assim que publicou The Contributions of Harry Stack Sullivan (1952), reco­mendável a todos os que desejarem um maior escla­recimento. Realmente, Sullivan não é fácil de se ler. Bem diferentes são os autores como Horney e Fromm, cujos trabalhos, conforme o parecer bastante justo de P.R. Hofstätter (1959), "parecem-se muito com novelas". Sullivan teve grande contato com an­tropólogos culturais, entre os quais Ruth Benedict merece um lugar de destaque. Morreu em Paris, em 1949.

O que desejo é transmitir as visões teóricas de Sulli­van. Para ser o mais claro possível, vou limitar-me a algumas idéias centrais. Começarei pelo conceito de empatia, que para Sullivan tem sentido primário.

Empatia é uma palavra grega, que significa literal­mente: um sentir interno. Já em 1903, Theodor Lipps usou um sinônimo em alemão (Einfühlen), para indicar aquele "con-sentir", que vence qualquer separação e que, principalmente, precede qualquer separação como um estado de unidade primitiva. Principalmente neste último sentido de unidade pri­mitiva foi que Sullivan utilizou o termo empatia.

A criança começa a vida com empatia, não levando em consideração pelo menos os primeiros meses, que são de natureza biológica e nos quais a criança ainda não vive com padrões humanos. Empatia, conforme a definição de Sullivan, é a situação de uma tão grande união emocional, nesse caso, com a mãe, que a criança forma com ela uma única unidade de sentimento, onde pode ocorrer um contágio emocional.

O termo contágio emocional – emotional contagion – quer dizer que a criança é "contagiada" pela mãe com sentimen­tos, bem como com a imaginação e expectativas ligadas a esses sentimentos. A criança está presa à esfera da mãe, move-se na ondulação do seu estado de ânimo. Está sincro­nizada com a mãe. Se a mãe se acha desassossegada, também a criança – pequena dentro dos limites da própria consti­tuição – estará desassossegada. Se a mãe está angustiada, haverá angústia na criança, por indução. Se a mãe está con­tente e vive em harmonia, também a criança, novamente dentro dos limites de sua própria constituição, estará con­tente e viverá em harmonia. Assim a mãe influencia, "con­tagia" a criança com suas alegrias e sofrimentos, de uma maneira continuada, sem que haja necessidade de ter cons­ciência disso. A empatia transmite. Usando um termo pro­fissional: a empatia serve de veículo, isto é, como meio de transporte de sentimentos e emoções, e de todas as imagi­nações e expectativas conexas. O estado de empatia carac­teriza completamente a criança nos primeiros dois até dois anos e meio de vida. A mãe, ou de modo geral a tutora da criança – a sua significant adult – é soberana nesse período. Depois desse período, a empatia torna-se menos unitiva, o que não significa que a mãe não continue sendo para a criança, ainda por muitos anos, a primeira significant adult em sentido empático. Conseqüentemente, também o con­tágio emocional, por parte da mãe, persevera por muitos anos. Se a mãe tem medo de trovoadas, é quase inevitável que também seu filho – a seu modo – tenha medo de tro­voadas, mesmo quando a mãe pensa ter escondido bem seu temor. De uma ou de outra maneira, mesmo em ninharias, mostrará seu medo: andando um pouco mais ligeiro, falando um pouco mais alto etc. A criança percebe-o, sente-o e, em­paticamente, estará sintonizada com a mãe, assim como um radiorreceptor pode estar sintonizado com um radiotrans­missor. Trovoadas, trevas, a noite, o espaço, o vazio, o frio, o calor, a chuva, a chegada em casa, a partida, a visita – em todas essas e ainda inúmeras outras coisas, a mãe transmite à criança seu estado de ânimo. Importante é que a mãe utiliza a empatia para suas aprovações e re­provações.

Também desse fato – da aprovação ou reprovação, por parte da mãe, de inúmeras atitudes e atos da criança por meio da empatia – ela não tem geralmente muita consciência. Ela o faz com o auxílio daquelas ninharias acima mencionadas, como: entoações, pequenos silêncios, pigarro, uma tossezi­nha antes de uma determinada palavra. Seja como for, a mãe torna conhecida sua aprovação ou reprovação – sua apre­ciação e depreciação – e fomenta assim a socialização ou a aculturação da criança. Por aculturação deve-se entender: o processo de aprender a aceitar e a rejeitar tudo quanto o povo ou parte do povo a que a criança pertence, aceita ou rejeita.

Usa-se a empatia em qualquer formação psíquica. Mesmo nas mais violentas, como, por exemplo, na famigerada lavagem cerebral – brainwashing – pela qual o sujeito, após pouco tempo, torna-se vítima de uma nova ideologia não desejada. Característico desse método, que é usado na lavagem cerebral, é que a vítima, após um tempo de isolação extrema, muitas vezes acompanhada de esgotamento físico, recebe um único confidente – um único signíficant adult que a introduz, passo a passo, usando o mé­todo bem dosado de aprovação e reprovação, na nova ideologia. Usava-se a empatia nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Usa-se a empatia na análise didática de futuros psicoterapeutas, quando essa "análise de ensino" é empregada também para educar o "aprendiz" no estrito espírito freudiano.

A empatia, por fim, é aplicada de modo natural em todos os contatos de caráter permanente, como os de amizade e amor. Ela transforma a existência humana em uma sociedade. Inicialmente, o educador utiliza a empatia como meio de aculturação, sem o saber. Depois, com maior conhecimento, quando a criança atinge a idade em que lhe pode ser diri­gida a palavra. Ou seja: a aprovação e a reprovação, dadas pelo educador como um banho morno bem dosado, ocorrem, no início, sem palavras; depois, com palavras. A tática conti­nua a mesma, ou seja, sempre a tática das bem misturadas: aprovação , reprovação.

É essa a tática ou técnica de ser cada vez uma outra mãe. Ou, fazendo uma grosseira divisão, a tática de ser: uma boa mãe, uma mãe ruim.
Isto é – empregando agora uma mudança importante nos termos – a tática ou técnica de fazer com que a criança seja: uma boa criança, uma criança má.

A identidade de ambas as pessoas interligadas pela empatia

Os três pares vistos entrelaçam-se sem dificuldades, como se verifica logo. A mãe que aprova, que é para a criança a boa mãe, leva a criança à consciência (implícita) de ser uma boa criança. A mãe que reprova, a mãe ruim, leva a criança à consciência de ser uma criança má. Tudo parece evidente. O que, porém, parece menos evidente, e muitas vezes tam­bém não foi compreendido, mas que para o raciocínio de Sullivan deve ser considerado de suma importância, consiste em que, partindo-se da criança, a boa mãe e a consciência de ser uma boa criança são uma e mesma coisa. Da mesma maneira, há uma identidade total entre a mãe ruim e a cons­ciência de ser uma criança má. A maldade dela consiste na ruindade da mãe. A ruindade da mãe é a realidade, até a única, da própria maldade. Mais brevemente: no processo de aculturação, a criança não se distingue da pessoa educadora. Isso, porém, não é nada mais do que o conteúdo do con­ceito de empatia. Mais adiante ficará claro que não só a criança, mas também o adulto não se distingue das pessoas influentes. Por isso mesmo, demoramos um pouco na expli­cação do conceito de empatia.

Euforia-disforia

A unidade boa mãe, boa criança vai de par, na criança, com certo prazer, o que recebeu o nome de euforia. A palavra é derivada do vocábulo grego euphoros, que significa: fácil de carregar. A unidade mãe ruim, má criança encontra-se na criança, junto com um mal-estar, chamado disforia, derivada de dusphoros, que significa: difícil de carregar. Euforia e disforia – bem-estar e mal-estar – possuem uma função de­sigual. Euforia pode ser considerada como um ponto final de uma viagem: um estado de felicidade sem tensão, de longa duração. Disforia, ao contrário, convoca para uma ação; é o ponto de partida para todas aquelas ações que podem transformar a mãe ruim em uma boa mãe; isto é, que podem conseguir a realização de uma boa criança.

A distinção euforia-disforia é grosseira, pois há uma tran­sição fluida entre ambas, assim como há uma passagem imperceptível entre a boa mãe e seu oposto.


A mãe ausente – a criança ausente

A mãe pode reprovar de uma maneira clara e menos clara. Melhor dizendo: a mãe pode distanciar-se do filho de uma maneira clara e menos clara. Quando se distancia muito cla­ramente, é como se despedisse do filho. Abandona a criança por um momento. É a ausente. Isso tem para a criança o sentido idêntico de que está ausente para si mesma.

Exemplo: Em um movimento brincalhão, a criança der­ruba seu copo de chocolate sobre o vestido impe­cável da mãe. Esta fica furiosa. Descarrega todo seu vocabulário de rejeições no ouvido do menino, que exclama jurando: "Não fui eu, não fui eu!" A excla­mação não convencerá a mãe, mas é para a criança a pura verdade. A zanga da mãe transforma o ato errado em um ato estranho, no ato de um estranho. Em um ato que a criança não fez – que ela fez como uma ausente. A própria mãe educou seu filho para uma magia dessa ordem. Quando a criança fazia uma arte singularmente reprovável, ela dizia: "Isso meu filhinho não faz!"
Quando a mãe por sua violenta rejeição, como neste exemplo, se torna ausente para a criança e, conseqüentemente, a criança também se torna ausente para si mesma, essa situa­ção será acompanhada, na criança, de angústia.

Angústia

Angústia é uma disforia aumentada. Angústia, porém, ainda tem uma função especial, não atingida pela disforia. Isso se evidenciou no exemplo acima. Angústia separa. Separa, tam­bém, em dois sentidos bem distinguíveis, mas apesar disso, idênticos. Na angústia, a criança experimenta a mãe como uma ausente, mas também se experimenta como um ausente. Vejamos os dois sentidos.

Na angústia a criança experimenta a mãe como ausente:

Angústia tem a mesma função alienante na relação do adulto para com seu significant other, não interessando quem seja esse último. Angústia torna radical qualquer sepa­ração. Angústia é o pólo oposto do amor, mais ainda do que o ódio. No ódio, o odiado ainda fica mantido como parceiro (negativo). Na angústia não. Angústia, escreve Sullivan, é a grande força disjuntiva nas relações inter-humanas (the great disjunctive force in interpersonal relations).

O segundo sentido:

Na angústia, a criança experimenta a si mesma como ausente:
A angústia mantém o mesmo sentido para o adulto. A an­gústia faz dizer: "Isso eu não fiz, não posso ter feito isso, não faço tais coisas." Traça o limite entre aquilo que se é na verdade e aquilo que se pretende, também na verdade, não ser. Na existência neurótica, esse limite é marcado com uma agudeza incrível. Aí, a angústia separa: o que se é do que não se é. Na nomenclatura antiga, dizíamos: a angústia neurótica traça o limite entre consciente e inconsciente.

A diferença entre a terminologia antiga e a nova é mais do que uma diferença de palavras. Consciente e inconsciente referem-se a uma única pessoa, que possui um campo cons­ciente e um campo inconsciente. Com os novos termos aban­dona-se o terreno do individualismo subjetivo. A angústia separa o que se é do que não se é de fato, mas isso quer dizer: a angústia separa os significant others presentes dos ausentes. Lá onde desaparece o significante que suscita an­gústia, naquele mesmo lugar, junto a ele, junto a sua fala, sua tossezinha, seu silêncio, deixa-se de ser a si mesma; aí começa (usando o termo antigo) o inconsciente. Pode-se manter a palavra inconsciente, contanto que fique salva­guardado seu sentido inter-humano.

Síntese do raciocínio anterior

Sob a condição sugerida na última frase, podemos fazer o seguinte resumo:

1. O limite entre consciente e inconsciente não deve ser procurado no indivíduo, mas encontra-se entre as pessoas (corporalmente presentes ou não) em torno do respectivo indivíduo;

2. O limite entre consciente e inconsciente é o limite entre significant others presentes e ausentes (corporalmente pre­sentes ou não).

3. O tamanho do consciente é igual ao tamanho do grupo dos significant others (corporalmente ou não) presentes.

4. O tamanho do inconsciente é igual ao tamanho do grupo dos significant others (corporalmente ou não) ausentes.

5. O limite de consciente e inconsciente é vigiado pela an­gústia: pela força que separa, a força que faz com que os significant others estejam ausentes.

6. A angústia cria o inconsciente e é a prova do mesmo.


Observação

A descrição dada nesses pontos é muito restrita, pois muitas vezes acontece, e até quase sem­pre, que o limite entre os significant others presen­tes e ausentes passa pelos próprios significant others. A mãe poderá servir de exemplo. Ela é para a criança a boa mãe e a mãe ruim, isto é: a prova de sua pre­sença e de sua ausência. O limite passa por ela.


Nova visão de dados antigos

A descrição inter-humana de consciente-inconsciente leva a uma nova visão de numerosos conceitos analíticos tradicio­nais. Como exemplo, escolho o ato falho.
O leitor psi deve estar lembrado da falha do neurologista Bernard Sachs, quando, na reunião da Associação Neurológica Ameri­cana, tomou a palavra e disse entusiasmado: "Como me lembro bem daqueles dias passados no laboratório do Pro­fessor Meynert", e assim por diante. Chegando à enumera­ção das quatro pessoas que trabalhavam lá, não conseguiu lembrar-se do quarto homem. Aquele quarto homem era Freud, em cuja homenagem se fazia a reunião. Dificilmente Sachs poderia ter encontrado uma ocasião pior para sua falha de memória. Mas também não havia melhor ocasião. Sachs, como vimos, não aceitava a veneração a Freud. Da mesma maneira, não aceitava os festejadores daquele dia. No momento da homenagem, despedia-se dos mesmos. Naquele instante, surgiu seu inconsciente. Conseqüente­mente, não se lembrava mais. Sua despedida causou um pequeno inconsciente de curta duração, mas suficientemente grande e durável para fazer-lhe formular a pergunta: "Quem era mesmo o quarto homem?" Naquele momento, Sachs deve ter sentido um mal-estar, uma angústia talvez.

Teoricamente, importa mais a conclusão, a saber: o ato falha de Sachs era um fenômeno comunicativo. O inconsciente no sentido de antiego é sempre um fenômeno de comunicação. No mo­mento em que o sujeito abandona os outros, ou é abando­nado pelos outros, nasce seu inconsciente. O inconsciente que então nasce, logicamente, só valerá com respeito ao grupo no qual o sujeito veio a ser isolado. Suspendendo-se a distância que existe entre ele e o grupo, desaparece o inconsciente. A duração do inconsciente, portanto, é a mesma que se observa na alienação com respeito àquele grupo (no sentido de um antigrupo).

Na existência neurótica, esse grupo é de tal tamanho que o inconsciente possui um caráter duradouro. Também para o neurótico, porém, o inconsciente é local e temporal. Basta oferecer um outro lugar ao neurótico, para evidenciar-se a temporalidade do inconsciente. Isso acontece em uma, psicote­rapia. A finalidade da psicoterapia é demonstrar a tempora­lidade do inconsciente que aflige o paciente, também e prin­cipalmente no contexto de sua vida diária e pública. Psico­terapia é um sucesso, quando o inconsciente, isto é, a ausência do paciente com respeito a uma parte da sociedade, é suspenso com respeito àquela convivência. O significado prático disso consiste no fato de que o paciente, novamente (ou pela primeira vez), pertence à sociedade.

Observação

No decorrer da descrição, fizemos tan­tas anotações restritivas e ampliativas com respeito à palavra inconsciente, que seria melhor substituir esse termo, que pertence por demais a uma teoria intra­psíquica, por um outro. Frederik van Eeden já queria o mesmo em 1888. Sua proposta: o segundo eu, poderia ser aceito, contanto que o termo recebesse um sentido social-psicológico. Mais certo seria o termo: autonegação social, ou: negação neurótica de relacionamento. É claro, porém, que termos como esses nunca teriam aceitação. O termo inconsciente está enraizado; terá que continuar a servir sob uma nova bandeira.

Sullivan evitava as palavras un­conscious e unconsciousness; usava de preferência os termos unaware e unawareness. Para inconsciente, adotava a composição not-me.

Autodinamismo (Self-dynamism)

O limite entre consciente e inconsciente – entre me e not-me diria Sullivan – não é estável: desloca-se nas relações a uma mesma pessoa. Continuamente, o indivíduo tenta aumentar seu consciente, ou seja, diminuir seu inconsciente. Cada vez de novo se evidencia a própria força e fraqueza, ao lado da fraqueza e, mais ainda, força de outras pessoas. No limite de me e not-me há uma luta pelo poder, mais ou menos no sentido de AdIer. Há um dinamismo naquele limite, usando o termo de Sullivan. O eu, que defende seu limite entre sig­nificant others, é um dinamismo, um autodinamismo, do qual Sullivan dá a seguinte descrição:

O eu é um autodinamismo, isto é, uma organização móvel e inconstante de defesa e asseguração, nas­cido na longa aula de educação e formação, isto é, de aculturação, com a finalidade de evitar a angústia ou, caso a angústia surgisse inesperadamente, de reduzi-Ia ao mínimo.
Ou com suas próprias palavras:

O eu é um self-dynamism, quer dizer: an organiza­tion of educative experience, called into being by the necessity to avoid or to minimize incidents of anxiety.


A pessoa humana

Na descrição que acabamos de fazer, encontramos a base para um novo conceito de personalidade. A pessoa humana, o seu eu (como é difícil substantivar palavras como eu!), sua existência estritamente própria, não se encontra onde está o sujeito, mas nos contatos que ele mantém. Aí, nesses contatos, manifesta-se o que de fato é próprio da pessoa. Sullivan diz:

A personalidade, torna-se manifesta nas situações interpessoais e não de outro modo (personality is made manifest in interpersonal situa­tions and not otherwise).

Essas palavras foram tiradas de um artigo de Sullivan, publicado na revista Psychiatry do ano de 1938. De lá para cá já se passaram setenta anos e ainda custa acreditar em uma frase com tal conteúdo – prova de empatia, situada em alguns séculos de história cultural do Ocidente, que faz com que a crença na pessoa humana dentro de nós, em nossa mente, não possa ceder. Na nossa mente, porém, nunca ninguém achou outra coisa senão células e processos físico­-químicos. Não há nenhuma repartição dentro de nós com acontecimentos intrapsíquicos. O que existe é a vida junto de contemporâneos, sem levar em consideração se estamos muitas ou poucas vezes, corporalmente, no meio deles. Em nossa mente, encontra-se a condição, a mais importante condição para aquela vida com os contemporâneos – assim como a condição para um passeio está na posse de pernas. O corpo como conjunto é: condição. Nesse corpo, principal­mente na face, encontra-se, além do mais, o reflexo percep­tível da existência com os contemporâneos. A ruga entre os olhos pode ser inervada neurologicamente por um centro cerebral, mas deve o seu sentido à existência com outros. Situa-se, antes de mais nada, nessa existência com outros; depois, torna-se ainda visível na fronte. A existência verda­deiramente pessoal, subjetiva se quisermos, fica fora do sujeito.

É lá, naquele "fora", que a neurose se realiza. A perturbação neurótica surge na relação com os outros. Admite-se, então, que também pela relação com outros, por exemplo, pela re­lação com um terapeuta, possa desaparecer.

Psicoterapia, a partir da doutrina da personalidade segundo Sullivan

Para saber o que vem a ser psicoterapia na doutrina da per­sonalidade segundo Sullivan, é bom falarmos primeiro sobre mais um dos seus termos técnicos.
A pessoa – que consiste em um dinamismo para evitar angústia – atinge sua meta evitando o que poderia tornar-se "o mau", ou, se isso não for possível, relacionando-se de tal maneira com ele que o fator "mal" se mostre o menos possível. Uma conseqüência desta última alternativa é que a relação é superficial e, de preferência, de curta duração. Nem sem­pre, porém, terá êxito nas suas providências. Nesse caso, o sujeito será impelido – pelas palavras, gestos, atitudes, por tudo aquilo que é quase imperceptível, mas apesar disso perigoso, angustiante, e que a pessoa percebe ou com o que, talvez, tenha colaborado – para o limite de sua existência pessoal. Ou melhor, com certa violência, será impelido além do limite de sua existência, para chegar onde ele não é, e onde, conseqüentemente, nasce a angústia. Para salvaguar­dar a integridade de sua própria pessoa, o indivíduo serve-se de um artifício, que consiste no que Sullivan chamou de: selective inattention.

A tradução literal é: desatenção seletiva. A pessoa na sua angústia, na angústia que se aproxima, tor­na-se desatenta. Mas sua desatenção é cuidadosamente calculada para o que ela pode e não pode perceber. Ouve e vê aquilo que é oferecido aos seus sentidos na medida que baste para não perceber a parte angustiante do mesmo. Mais tarde, somente se lembrará da parte não angustiante e do acontecimento total apenas saberá fazer uma narração ino­cente.

Em síntese: quando uma experiência traz consigo o anúncio de uma angústia, o ameaçado no seu auto-dinamismo servir-se-á do mecanismo chamado desatenção seletiva, que faz com que o aspecto angus­tiante da experiência seja mantido fora do limite da pessoa, de modo que disso mais tarde não saberá dizer nada, e da experiência total apenas relatará uma narrativa banal, ingênua e inocente.

Para o anúncio da angústia, Sullivan criou o termo: uncanny emotion, uma sensação esquisita, diríamos nós.

Com uma coleção de "narrações inocentes", o paciente apre­senta-se ao terapeuta. No contato com o mesmo, o paciente tende a continuar a usar sua desatenção seletiva, cada vez que são dedilhadas as cordas duma uncanny emotion. Isso é inevitável. É até desejável, se a psicoterapia quiser ser uma terapia. O importante de um contato psicoterapêutico consiste em que o psicoterapeuta provoque a uncanny emotion tão pouco, que a desatenção seletiva não tire toda a força da conversa, e a provoque o suficiente para tornar possível no paciente pequenas, mas importantes, experiências. O pa­ciente deverá guardar da conversa uma lembrança mais ou menos "culposa". Como o psicoterapeuta poderá conseguir isso, tratarei na parte III.

Nota: A parte I deste texto está na Seção Artigos, que trata dos precursores do pensamento de Sullivan.

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