Os dois artigos seguintes são dedicados à obra de Harry Stack Sullivan
O que desejo é transmitir as visões teóricas de Sullivan. Para ser o mais claro possível, vou limitar-me a algumas idéias centrais. Começarei pelo conceito de empatia, que para Sullivan tem sentido primário.
Empatia é uma palavra grega, que significa literalmente: um sentir interno. Já em 1903, Theodor Lipps usou um sinônimo em alemão (Einfühlen), para indicar aquele "con-sentir", que vence qualquer separação e que, principalmente, precede qualquer separação como um estado de unidade primitiva. Principalmente neste último sentido de unidade primitiva foi que Sullivan utilizou o termo empatia.
A criança começa a vida com empatia, não levando em consideração pelo menos os primeiros meses, que são de natureza biológica e nos quais a criança ainda não vive com padrões humanos. Empatia, conforme a definição de Sullivan, é a situação de uma tão grande união emocional, nesse caso, com a mãe, que a criança forma com ela uma única unidade de sentimento, onde pode ocorrer um contágio emocional.
O termo contágio emocional – emotional contagion – quer dizer que a criança é "contagiada" pela mãe com sentimentos, bem como com a imaginação e expectativas ligadas a esses sentimentos. A criança está presa à esfera da mãe, move-se na ondulação do seu estado de ânimo. Está sincronizada com a mãe. Se a mãe se acha desassossegada, também a criança – pequena dentro dos limites da própria constituição – estará desassossegada. Se a mãe está angustiada, haverá angústia na criança, por indução. Se a mãe está contente e vive em harmonia, também a criança, novamente dentro dos limites de sua própria constituição, estará contente e viverá em harmonia. Assim a mãe influencia, "contagia" a criança com suas alegrias e sofrimentos, de uma maneira continuada, sem que haja necessidade de ter consciência disso. A empatia transmite. Usando um termo profissional: a empatia serve de veículo, isto é, como meio de transporte de sentimentos e emoções, e de todas as imaginações e expectativas conexas. O estado de empatia caracteriza completamente a criança nos primeiros dois até dois anos e meio de vida. A mãe, ou de modo geral a tutora da criança – a sua significant adult – é soberana nesse período. Depois desse período, a empatia torna-se menos unitiva, o que não significa que a mãe não continue sendo para a criança, ainda por muitos anos, a primeira significant adult em sentido empático. Conseqüentemente, também o contágio emocional, por parte da mãe, persevera por muitos anos. Se a mãe tem medo de trovoadas, é quase inevitável que também seu filho – a seu modo – tenha medo de trovoadas, mesmo quando a mãe pensa ter escondido bem seu temor. De uma ou de outra maneira, mesmo em ninharias, mostrará seu medo: andando um pouco mais ligeiro, falando um pouco mais alto etc. A criança percebe-o, sente-o e, empaticamente, estará sintonizada com a mãe, assim como um radiorreceptor pode estar sintonizado com um radiotransmissor. Trovoadas, trevas, a noite, o espaço, o vazio, o frio, o calor, a chuva, a chegada em casa, a partida, a visita – em todas essas e ainda inúmeras outras coisas, a mãe transmite à criança seu estado de ânimo. Importante é que a mãe utiliza a empatia para suas aprovações e reprovações.
Também desse fato – da aprovação ou reprovação, por parte da mãe, de inúmeras atitudes e atos da criança por meio da empatia – ela não tem geralmente muita consciência. Ela o faz com o auxílio daquelas ninharias acima mencionadas, como: entoações, pequenos silêncios, pigarro, uma tossezinha antes de uma determinada palavra. Seja como for, a mãe torna conhecida sua aprovação ou reprovação – sua apreciação e depreciação – e fomenta assim a socialização ou a aculturação da criança. Por aculturação deve-se entender: o processo de aprender a aceitar e a rejeitar tudo quanto o povo ou parte do povo a que a criança pertence, aceita ou rejeita.
Usa-se a empatia em qualquer formação psíquica. Mesmo nas mais violentas, como, por exemplo, na famigerada lavagem cerebral – brainwashing – pela qual o sujeito, após pouco tempo, torna-se vítima de uma nova ideologia não desejada. Característico desse método, que é usado na lavagem cerebral, é que a vítima, após um tempo de isolação extrema, muitas vezes acompanhada de esgotamento físico, recebe um único confidente – um único signíficant adult que a introduz, passo a passo, usando o método bem dosado de aprovação e reprovação, na nova ideologia. Usava-se a empatia nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Usa-se a empatia na análise didática de futuros psicoterapeutas, quando essa "análise de ensino" é empregada também para educar o "aprendiz" no estrito espírito freudiano.
A empatia, por fim, é aplicada de modo natural em todos os contatos de caráter permanente, como os de amizade e amor. Ela transforma a existência humana em uma sociedade. Inicialmente, o educador utiliza a empatia como meio de aculturação, sem o saber. Depois, com maior conhecimento, quando a criança atinge a idade em que lhe pode ser dirigida a palavra. Ou seja: a aprovação e a reprovação, dadas pelo educador como um banho morno bem dosado, ocorrem, no início, sem palavras; depois, com palavras. A tática continua a mesma, ou seja, sempre a tática das bem misturadas: aprovação , reprovação.
É essa a tática ou técnica de ser cada vez uma outra mãe. Ou, fazendo uma grosseira divisão, a tática de ser: uma boa mãe, uma mãe ruim.
Isto é – empregando agora uma mudança importante nos termos – a tática ou técnica de fazer com que a criança seja: uma boa criança, uma criança má.
A identidade de ambas as pessoas interligadas pela empatia
Os três pares vistos entrelaçam-se sem dificuldades, como se verifica logo. A mãe que aprova, que é para a criança a boa mãe, leva a criança à consciência (implícita) de ser uma boa criança. A mãe que reprova, a mãe ruim, leva a criança à consciência de ser uma criança má. Tudo parece evidente. O que, porém, parece menos evidente, e muitas vezes também não foi compreendido, mas que para o raciocínio de Sullivan deve ser considerado de suma importância, consiste em que, partindo-se da criança, a boa mãe e a consciência de ser uma boa criança são uma e mesma coisa. Da mesma maneira, há uma identidade total entre a mãe ruim e a consciência de ser uma criança má. A maldade dela consiste na ruindade da mãe. A ruindade da mãe é a realidade, até a única, da própria maldade. Mais brevemente: no processo de aculturação, a criança não se distingue da pessoa educadora. Isso, porém, não é nada mais do que o conteúdo do conceito de empatia. Mais adiante ficará claro que não só a criança, mas também o adulto não se distingue das pessoas influentes. Por isso mesmo, demoramos um pouco na explicação do conceito de empatia.
Euforia-disforia
A unidade boa mãe, boa criança vai de par, na criança, com certo prazer, o que recebeu o nome de euforia. A palavra é derivada do vocábulo grego euphoros, que significa: fácil de carregar. A unidade mãe ruim, má criança encontra-se na criança, junto com um mal-estar, chamado disforia, derivada de dusphoros, que significa: difícil de carregar. Euforia e disforia – bem-estar e mal-estar – possuem uma função desigual. Euforia pode ser considerada como um ponto final de uma viagem: um estado de felicidade sem tensão, de longa duração. Disforia, ao contrário, convoca para uma ação; é o ponto de partida para todas aquelas ações que podem transformar a mãe ruim em uma boa mãe; isto é, que podem conseguir a realização de uma boa criança.
A distinção euforia-disforia é grosseira, pois há uma transição fluida entre ambas, assim como há uma passagem imperceptível entre a boa mãe e seu oposto.
A mãe ausente – a criança ausente
A mãe pode reprovar de uma maneira clara e menos clara. Melhor dizendo: a mãe pode distanciar-se do filho de uma maneira clara e menos clara. Quando se distancia muito claramente, é como se despedisse do filho. Abandona a criança por um momento. É a ausente. Isso tem para a criança o sentido idêntico de que está ausente para si mesma.
Exemplo: Em um movimento brincalhão, a criança derruba seu copo de chocolate sobre o vestido impecável da mãe. Esta fica furiosa. Descarrega todo seu vocabulário de rejeições no ouvido do menino, que exclama jurando: "Não fui eu, não fui eu!" A exclamação não convencerá a mãe, mas é para a criança a pura verdade. A zanga da mãe transforma o ato errado em um ato estranho, no ato de um estranho. Em um ato que a criança não fez – que ela fez como uma ausente. A própria mãe educou seu filho para uma magia dessa ordem. Quando a criança fazia uma arte singularmente reprovável, ela dizia: "Isso meu filhinho não faz!"
Quando a mãe por sua violenta rejeição, como neste exemplo, se torna ausente para a criança e, conseqüentemente, a criança também se torna ausente para si mesma, essa situação será acompanhada, na criança, de angústia.
Angústia
Angústia é uma disforia aumentada. Angústia, porém, ainda tem uma função especial, não atingida pela disforia. Isso se evidenciou no exemplo acima. Angústia separa. Separa, também, em dois sentidos bem distinguíveis, mas apesar disso, idênticos. Na angústia, a criança experimenta a mãe como uma ausente, mas também se experimenta como um ausente. Vejamos os dois sentidos.
Na angústia a criança experimenta a mãe como ausente:
Angústia tem a mesma função alienante na relação do adulto para com seu significant other, não interessando quem seja esse último. Angústia torna radical qualquer separação. Angústia é o pólo oposto do amor, mais ainda do que o ódio. No ódio, o odiado ainda fica mantido como parceiro (negativo). Na angústia não. Angústia, escreve Sullivan, é a grande força disjuntiva nas relações inter-humanas (the great disjunctive force in interpersonal relations).
O segundo sentido:
Na angústia, a criança experimenta a si mesma como ausente:
A angústia mantém o mesmo sentido para o adulto. A angústia faz dizer: "Isso eu não fiz, não posso ter feito isso, não faço tais coisas." Traça o limite entre aquilo que se é na verdade e aquilo que se pretende, também na verdade, não ser. Na existência neurótica, esse limite é marcado com uma agudeza incrível. Aí, a angústia separa: o que se é do que não se é. Na nomenclatura antiga, dizíamos: a angústia neurótica traça o limite entre consciente e inconsciente.
A diferença entre a terminologia antiga e a nova é mais do que uma diferença de palavras. Consciente e inconsciente referem-se a uma única pessoa, que possui um campo consciente e um campo inconsciente. Com os novos termos abandona-se o terreno do individualismo subjetivo. A angústia separa o que se é do que não se é de fato, mas isso quer dizer: a angústia separa os significant others presentes dos ausentes. Lá onde desaparece o significante que suscita angústia, naquele mesmo lugar, junto a ele, junto a sua fala, sua tossezinha, seu silêncio, deixa-se de ser a si mesma; aí começa (usando o termo antigo) o inconsciente. Pode-se manter a palavra inconsciente, contanto que fique salvaguardado seu sentido inter-humano.
Síntese do raciocínio anterior
Sob a condição sugerida na última frase, podemos fazer o seguinte resumo:
1. O limite entre consciente e inconsciente não deve ser procurado no indivíduo, mas encontra-se entre as pessoas (corporalmente presentes ou não) em torno do respectivo indivíduo;
2. O limite entre consciente e inconsciente é o limite entre significant others presentes e ausentes (corporalmente presentes ou não).
3. O tamanho do consciente é igual ao tamanho do grupo dos significant others (corporalmente ou não) presentes.
4. O tamanho do inconsciente é igual ao tamanho do grupo dos significant others (corporalmente ou não) ausentes.
5. O limite de consciente e inconsciente é vigiado pela angústia: pela força que separa, a força que faz com que os significant others estejam ausentes.
6. A angústia cria o inconsciente e é a prova do mesmo.
Observação
A descrição dada nesses pontos é muito restrita, pois muitas vezes acontece, e até quase sempre, que o limite entre os significant others presentes e ausentes passa pelos próprios significant others. A mãe poderá servir de exemplo. Ela é para a criança a boa mãe e a mãe ruim, isto é: a prova de sua presença e de sua ausência. O limite passa por ela.
Nova visão de dados antigos
A descrição inter-humana de consciente-inconsciente leva a uma nova visão de numerosos conceitos analíticos tradicionais. Como exemplo, escolho o ato falho.
O leitor psi deve estar lembrado da falha do neurologista Bernard Sachs, quando, na reunião da Associação Neurológica Americana, tomou a palavra e disse entusiasmado: "Como me lembro bem daqueles dias passados no laboratório do Professor Meynert", e assim por diante. Chegando à enumeração das quatro pessoas que trabalhavam lá, não conseguiu lembrar-se do quarto homem. Aquele quarto homem era Freud, em cuja homenagem se fazia a reunião. Dificilmente Sachs poderia ter encontrado uma ocasião pior para sua falha de memória. Mas também não havia melhor ocasião. Sachs, como vimos, não aceitava a veneração a Freud. Da mesma maneira, não aceitava os festejadores daquele dia. No momento da homenagem, despedia-se dos mesmos. Naquele instante, surgiu seu inconsciente. Conseqüentemente, não se lembrava mais. Sua despedida causou um pequeno inconsciente de curta duração, mas suficientemente grande e durável para fazer-lhe formular a pergunta: "Quem era mesmo o quarto homem?" Naquele momento, Sachs deve ter sentido um mal-estar, uma angústia talvez.
Teoricamente, importa mais a conclusão, a saber: o ato falha de Sachs era um fenômeno comunicativo. O inconsciente no sentido de antiego é sempre um fenômeno de comunicação. No momento em que o sujeito abandona os outros, ou é abandonado pelos outros, nasce seu inconsciente. O inconsciente que então nasce, logicamente, só valerá com respeito ao grupo no qual o sujeito veio a ser isolado. Suspendendo-se a distância que existe entre ele e o grupo, desaparece o inconsciente. A duração do inconsciente, portanto, é a mesma que se observa na alienação com respeito àquele grupo (no sentido de um antigrupo).
Na existência neurótica, esse grupo é de tal tamanho que o inconsciente possui um caráter duradouro. Também para o neurótico, porém, o inconsciente é local e temporal. Basta oferecer um outro lugar ao neurótico, para evidenciar-se a temporalidade do inconsciente. Isso acontece em uma, psicoterapia. A finalidade da psicoterapia é demonstrar a temporalidade do inconsciente que aflige o paciente, também e principalmente no contexto de sua vida diária e pública. Psicoterapia é um sucesso, quando o inconsciente, isto é, a ausência do paciente com respeito a uma parte da sociedade, é suspenso com respeito àquela convivência. O significado prático disso consiste no fato de que o paciente, novamente (ou pela primeira vez), pertence à sociedade.
Observação
No decorrer da descrição, fizemos tantas anotações restritivas e ampliativas com respeito à palavra inconsciente, que seria melhor substituir esse termo, que pertence por demais a uma teoria intrapsíquica, por um outro. Frederik van Eeden já queria o mesmo em 1888. Sua proposta: o segundo eu, poderia ser aceito, contanto que o termo recebesse um sentido social-psicológico. Mais certo seria o termo: autonegação social, ou: negação neurótica de relacionamento. É claro, porém, que termos como esses nunca teriam aceitação. O termo inconsciente está enraizado; terá que continuar a servir sob uma nova bandeira.
Sullivan evitava as palavras unconscious e unconsciousness; usava de preferência os termos unaware e unawareness. Para inconsciente, adotava a composição not-me.
Autodinamismo (Self-dynamism)
O limite entre consciente e inconsciente – entre me e not-me diria Sullivan – não é estável: desloca-se nas relações a uma mesma pessoa. Continuamente, o indivíduo tenta aumentar seu consciente, ou seja, diminuir seu inconsciente. Cada vez de novo se evidencia a própria força e fraqueza, ao lado da fraqueza e, mais ainda, força de outras pessoas. No limite de me e not-me há uma luta pelo poder, mais ou menos no sentido de AdIer. Há um dinamismo naquele limite, usando o termo de Sullivan. O eu, que defende seu limite entre significant others, é um dinamismo, um autodinamismo, do qual Sullivan dá a seguinte descrição:
O eu é um autodinamismo, isto é, uma organização móvel e inconstante de defesa e asseguração, nascido na longa aula de educação e formação, isto é, de aculturação, com a finalidade de evitar a angústia ou, caso a angústia surgisse inesperadamente, de reduzi-Ia ao mínimo.
Ou com suas próprias palavras:
O eu é um self-dynamism, quer dizer: an organization of educative experience, called into being by the necessity to avoid or to minimize incidents of anxiety.
A pessoa humana
Na descrição que acabamos de fazer, encontramos a base para um novo conceito de personalidade. A pessoa humana, o seu eu (como é difícil substantivar palavras como eu!), sua existência estritamente própria, não se encontra onde está o sujeito, mas nos contatos que ele mantém. Aí, nesses contatos, manifesta-se o que de fato é próprio da pessoa. Sullivan diz:
A personalidade, torna-se manifesta nas situações interpessoais e não de outro modo (personality is made manifest in interpersonal situations and not otherwise).
Essas palavras foram tiradas de um artigo de Sullivan, publicado na revista Psychiatry do ano de 1938. De lá para cá já se passaram setenta anos e ainda custa acreditar em uma frase com tal conteúdo – prova de empatia, situada em alguns séculos de história cultural do Ocidente, que faz com que a crença na pessoa humana dentro de nós, em nossa mente, não possa ceder. Na nossa mente, porém, nunca ninguém achou outra coisa senão células e processos físico-químicos. Não há nenhuma repartição dentro de nós com acontecimentos intrapsíquicos. O que existe é a vida junto de contemporâneos, sem levar em consideração se estamos muitas ou poucas vezes, corporalmente, no meio deles. Em nossa mente, encontra-se a condição, a mais importante condição para aquela vida com os contemporâneos – assim como a condição para um passeio está na posse de pernas. O corpo como conjunto é: condição. Nesse corpo, principalmente na face, encontra-se, além do mais, o reflexo perceptível da existência com os contemporâneos. A ruga entre os olhos pode ser inervada neurologicamente por um centro cerebral, mas deve o seu sentido à existência com outros. Situa-se, antes de mais nada, nessa existência com outros; depois, torna-se ainda visível na fronte. A existência verdadeiramente pessoal, subjetiva se quisermos, fica fora do sujeito.
É lá, naquele "fora", que a neurose se realiza. A perturbação neurótica surge na relação com os outros. Admite-se, então, que também pela relação com outros, por exemplo, pela relação com um terapeuta, possa desaparecer.
Psicoterapia, a partir da doutrina da personalidade segundo Sullivan
Para saber o que vem a ser psicoterapia na doutrina da personalidade segundo Sullivan, é bom falarmos primeiro sobre mais um dos seus termos técnicos.
A pessoa – que consiste em um dinamismo para evitar angústia – atinge sua meta evitando o que poderia tornar-se "o mau", ou, se isso não for possível, relacionando-se de tal maneira com ele que o fator "mal" se mostre o menos possível. Uma conseqüência desta última alternativa é que a relação é superficial e, de preferência, de curta duração. Nem sempre, porém, terá êxito nas suas providências. Nesse caso, o sujeito será impelido – pelas palavras, gestos, atitudes, por tudo aquilo que é quase imperceptível, mas apesar disso perigoso, angustiante, e que a pessoa percebe ou com o que, talvez, tenha colaborado – para o limite de sua existência pessoal. Ou melhor, com certa violência, será impelido além do limite de sua existência, para chegar onde ele não é, e onde, conseqüentemente, nasce a angústia. Para salvaguardar a integridade de sua própria pessoa, o indivíduo serve-se de um artifício, que consiste no que Sullivan chamou de: selective inattention.
A tradução literal é: desatenção seletiva. A pessoa na sua angústia, na angústia que se aproxima, torna-se desatenta. Mas sua desatenção é cuidadosamente calculada para o que ela pode e não pode perceber. Ouve e vê aquilo que é oferecido aos seus sentidos na medida que baste para não perceber a parte angustiante do mesmo. Mais tarde, somente se lembrará da parte não angustiante e do acontecimento total apenas saberá fazer uma narração inocente.
Em síntese: quando uma experiência traz consigo o anúncio de uma angústia, o ameaçado no seu auto-dinamismo servir-se-á do mecanismo chamado desatenção seletiva, que faz com que o aspecto angustiante da experiência seja mantido fora do limite da pessoa, de modo que disso mais tarde não saberá dizer nada, e da experiência total apenas relatará uma narrativa banal, ingênua e inocente.
Para o anúncio da angústia, Sullivan criou o termo: uncanny emotion, uma sensação esquisita, diríamos nós.
Com uma coleção de "narrações inocentes", o paciente apresenta-se ao terapeuta. No contato com o mesmo, o paciente tende a continuar a usar sua desatenção seletiva, cada vez que são dedilhadas as cordas duma uncanny emotion. Isso é inevitável. É até desejável, se a psicoterapia quiser ser uma terapia. O importante de um contato psicoterapêutico consiste em que o psicoterapeuta provoque a uncanny emotion tão pouco, que a desatenção seletiva não tire toda a força da conversa, e a provoque o suficiente para tornar possível no paciente pequenas, mas importantes, experiências. O paciente deverá guardar da conversa uma lembrança mais ou menos "culposa". Como o psicoterapeuta poderá conseguir isso, tratarei na parte III.
Nota: A parte I deste texto está na Seção Artigos, que trata dos precursores do pensamento de Sullivan.