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Ensaio sobre o Corpo = Parte I

Objetivamos com a realização deste trabalho introduzir um conceito essencial na psicanálise contemporâna, ou seja: “o corpo”. Em se tratando de psicanálise, temos a preferência pelo conceito de “corpo erógeno” ou “corpo do desejo”. Este trabalho será seguido da publicação da parte II, oportunamente.

Ao escolher o tema corpo para desenvolver algumas considerações, não o fiz sem me dar conta da complexidade no interior da qual eu enveredava. Lembramos da nefasta dicotomia mente-corpo, a qual teve seu amplo reinado na história das ciências, o que acabou por acarretar uma grande plêiade de limitações que puderam ser esclarecidas quando se pôde visualizar a sua interação dialética.

Quero crer que nenhum pensador bem fundamentado e atualizado, ainda teime em insistir na manutenção dessa anacrônica dualidade.

Se, a título de exemplo tomarmos o sonho, perceberemos que inicialmente não lhe foi dado a menor importância, o que fica expresso nos registros de frases do tipo: "os sonhos são vã espuma e, na maioria das vezes, resultado de processos fisiológicos".

O corpo, por sua vez, ficou como uma realidade cujo único instrumento de aproximação era o saber médico, o qual tinha como objeto de estudo muito mais a doença do que o doente propriamente dito. Felizmente, hoje nos encontramos frente a um outro estado de coisas, onde podemos assitir que a problemática referente ao corpo, ocupa um lugar estratégico na clínica psicanalítica da contemporaneidade.

No que tange ao analista, nos diz Joyce MacDougall: "o analista tenta observar bem o seu próprio teatro interior e interpretá-lo da melhor maneira possível, antes mesmo de interpretar o de seu paciente. Entendemos que este fenômeno pode ser propiciador de um certo modelo de escuta do próprio corpo, o qual permite pensar as diferentes formas de escuta dos fenômenos corporais no interior da situação analítica".

"Eles perceberam que estavam nus(Gênese:3,7). Daquí em diante o corpo não pôde ser ignorado".

Queremos agora salientar uma amplitude sobre o conceito de corpo, ou seja, podemos falar de corpo biológico, corpo filosófico, corpo histórico, corpo estético, corpo religioso, corpo social, corpo antropológico e, finalmente, o corpo psicanalítico, para o qual prefiro a denominação de "corpo erógeno". Na clínica atual, os analistas se deparam com queixas que fazem parte de um quadro depressivo e, que envolvem o corpo.

Ainda segundo Joyce MacDougall: "é possível que a manutenção do equilíbrio psíquico se realize em grande parte, pela produção dos sintomas somáticos do que pela produção dos sintomas psíquicos, neuróticos ou psicóticos".

Colocam-se algumas questões

= se o corpo biológico não pode ser objeto da psicanálise, existiria então uma abordagem psicanalítica do corporal?

= que corpo poderia ser acolhido pelo psicanalista em sua escuta?

A psicanálise amplia a visão do adoecer ao indicar as implicações subjetivas que acompanham toda perturbação orgânica.

P.-L. Assoun, aponta o papel do inconsciente como um "lugar de passagem, ao mesmo tempo necessário e misterioso, onde de alguma forma, torna-se 'indecidível' a relação entre o psíquico e o somático".

Um paralelo entre a doença e o sonho, através de Freud

Segundo Freud, nos sonhos a doença física ainda incipiente é, com frequência, detectada mais cedo e mais claramente do que no estado de vigília. Assim, nos sonhos, todas as sensações costumeiras do corpo assumem proporções gigantescas. Parafraseando o que popularmente convencionou-se em falar que "Freud explica", diríamos que: essa ampliação das sensações é de natureza hipocondríaca e "depende da retirada de todos os investimentos do mundo externo em direção ao ego".

Naquilo que em psicanálise é denominado de recusa da realidade (Verleugnung), o que notaremos é que o corpo 'fala', mas não é escutado.

Se fizermos um recorte sobre a hipocondria, notaremos que ela aqui nos interessa, na medida em que pode ser encarada como o "exagero patológico de uma escuta do corpo".

Nos escritos freudianos, transparece que existe uma certa situação libidinal que estaria na origem da ampliação das sensações corporais no sonhos e, observa que é sob o efeito de uma regressão, própria ao adormecer, que o corpo pode ser informado, através de seu erotismo interno de modificações corporais incipientes.

Será através do conceito de pulsão que Freud colocará em evidência a diferença entre um corpo anatômico e um corpo libidinal. Dessa forma, o corpo é a sede dos conflitos pulsionais. Em psicanálise, o corpo do qual se trata, é um corpo cuja anatomia é construída a partir dos investimentos libidinais, mediatizados pela alteridade e pelos fantasmas.

É sabido que desde 1.911, em Schreber, Freud havia descrito três momentos no desenvolvimento da libido, a saber: = o auto-erotismo; = o narcisismo e, finalmente, o amor objetal.

As Sensações e a Nomeação do Corpo

No bebê, são as sensações que adquirem um maior relevo. Para que a mãe possa escutar o choro do seu bebê, supõe-se que ela seja capaz de transformar esse corpo de sensações em um corpo falado.

Queremos trazer agora para a discussão a importantíssima contribuição de Piera Aulagnier-Spairani. A autora salienta em primeiro lugar que a relação da mãe com o seu próprio corpo como "lugar do prazer", e chama a atenção para o prazer que a mãe pode experimentar no contato com o corpo do seu bebê; o prazer de nomeá-lo e o prazer de dar ao bebê o conhecimento da existência desse corpo. Piera insiste também que é o prazer que a mãe experimenta na sua relação com o pai que irá garantir à criança, mais tarde, além dos prazeres parciais da sexualidade infantil, o acesso à sua própria procura de prazer objetal.

A maneira como os investimentos libidinais se organizam dentro da situação analítica

Entendemos que o corpo do paciente e do analista, ou seja, o corpo de ambos é solicitado "enquanto moeda de troca, através da palavra". Segundo Pierre Fédida, "(…) se o médico pode se abstrair de seu corpo e permitir assim que o doente faça o mesmo, para que possa se exercer sobre ele um saber e um poder, o analista não pode esquecer que seu corpo é o cenário no qual vem atuar os fantasmas do paciente, ou mesmo o lugar imaginário dos desejos de acordo com a economia primitiva da troca com o corpo dos pais". (Conceito de Transferência).

Sabemos que um silêncio rígido do analista, pode enviar o paciente a uma solidão muda, remetendo-o à sua própria morte. Esse tipo de paciente tem a necessidade de constatar a presença viva do analista, lhe assegurando que o analista não está morto. Algumas simples expressões sonoras que vem do analista são suficientes para reassegurar o paciente, permitindo o desenvolvimento do processo associativo objetivado na sessão.

Joel Birman expressa que o trabalho analítico pode funcionar como um reorganizador da libidinização do corpo. Assim: "a presença viva do analista é necessária para que ele possa acolher o impacto das forças pulsionais, se constituindo assim como esse Outro, através do qual a libidinização torna-se possível".

Gostaria de encerrar essas considerações fazendo jus ao criador da psicanálise, Sigmund Freud, o qual, a nosso ver, desde sempre esteve muito atento às questões referentes ao corpo, sobretudo nos casos de histeria. Apenas para citarmos um nome que surge na história da psicanálise contemporânea e, que dedicou quase toda sua vida profissional sobre as questões do corpo nas neuroses e nas psicoses, queremos deixar registrado o de Pierre Fédida, seguramente um dos maiores estudiosos do tema no viés psicanalítico.

Um pequeno paralelo associativo

Assim como quando uma criança está na sala e a mãe na cozinha, pode dizer: mãe? E a mãe responde: sim, o que há? A criança responde, não, nada! Tratando-se aqui de poder se reassegurar da presença da mãe por perto, as pequenas manifestações sonoras do analista, como uma tosse, um espirro etc, servem da mesma maneira para um reasseguramento do paciente de que o analista está vivo e por perto.

Bibliografia

= Pierre Fédida — Clínica Psicanalítica = Estudos.

= Piera Aulagnier-Spairani — A Violência da Interpretação.

=Maria Helena Fernandes — A Hipocondria do sonho e o silêncio dos
órgãos.

=Joyce MacDougall — Teatros do Corpo.

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