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Psicanálise e a frustração

No presente texto procuraremos voltar o olhar para o tema da frustração e sua relação com a psicanálise, assim como tentar tecer alguns comentários sobre seu papel na atualidade. Esse tem sido um tema recorrente em análises feitas sobre a contemporaneidade e suas implicações para o sujeito psíquico em suas relações com os temas de seu tempo. Amor, trabalho, lazer, relações sociais, relações de vínculos familiares, conquistas, atividade sexual, paternidade, maternidade, consumo de bens, acumulação de patrimônio etc. Não há área do fazer humano onde esse conceito não assuma uma importância elevada.

Costumamos no senso comum contrapor desejo à frustração e veremos que em psicanálise não é necessariamente essa fórmula que encontramos como aquilo que constrói a capacidade humana de obter prazer. Ao formular a 2ª Tópica com suas diferentes instâncias, Freud se dava conta que o “Princípio de Prazer” não era assim uma reta constante, uma meta tão diretamente compreensível, entendeu que a caminho da descarga necessária haveria um intrincado entrelace e muitos senhores a se atender, e postulou que haveria nessa busca, aquilo que ele passa a denominar de “Princípio de Constância”, que se traduziria por uma busca do aparelho psíquico em manter um nível sempre constante e baixo de carga. Existirá também aí uma questão voltada à evitação do desprazer, sentida sempre quando há aumento dessa tensão. “Podemos dizer que o maior conflito humano está exatamente no desejar, pois dos pontos de vista econômico, dinâmico e tópico(metapsicologia)cria tensão no aparelho psíquico”ª. A questão do “adiamento” da satisfação passa mais do nunca a ter em psicanálise um valor fundamental para a economia e dinâmica psíquica.

Essa é uma tese psicanalítica, que frente às questões mais atuais do homem no mundo, ganha cada vez mais um contorno importante para que seja estudada por essa via conceitual.

Porém pensamos aqui, que mesmo que visando a redução de tensão pelo princípio de constância, ou movido pela Pulsão de morte no princípio de nirvana, há uma intenção de prazer quanto ao objeto em si, a ligação com ele será o alvo e a meta primeira, mesmo sabendo que esse prazer se dá em forma de descarga e diminuição da tensão dentro do aparelho. Freud mesmo diz que a questão humana está no estabelecimento dos laços afetivos, ou como diriam outros autores, na relação de objeto ou vínculo.

Se o conflito humano está no desejar, a morte está no não-desejar, então por isso desejo é o que nos move sempre por Eros, realimentando sempre a carga antes que a morte ganhe em termos de cessar toda e qualquer carga ou tensão dentro do aparelho psíquico. Desejamos porque viver é desejar e não desejar é morrer.

Lida a psicanálise na atualidade com diferentes quadros que têm sido predominantes como adoecimento do sujeito psíquico frente à sua realidade interna. Os distúrbios alimentares chamam a atenção cada vez mais de inúmeros especialistas de diferentes áreas. Partiremos aqui de uma leitura daquilo que hoje está posto como “anorexia nervosa”, conceito esse que sabemos já descrito desde o século XIX: “consumpção nervosa”. “No ano de 1694, Richard Morton é autor do primeiro relato médico de anorexia nervosa” (A)

Para a leitura desse distúrbio tão presente nos estudos atuais, queremos apenas considerar aqui a tradução lacaniana desse distúrbio, que o colocará como “desejo de nada”. A partir desse conceito construir uma possível suposição da presença do sujeito frente ao ato de desejar, cada vez mais tomado pela grande maioria com voracidade, muito se discute sobre o acesso constantemente facilitado ao chamado “fast-food”, estendendo-se essa leitura do “rápido” para as emoções e atos humanos em todas as suas possibilidades.

Dois grandes filmes na década de 70 abordaram essa temática do desejo e sua realização ilimitada e sua relação com o nada. São eles, o chocante “A Comilança”((Le Grande Bouffe) de Marco Ferreri(1973) e “Império dos Sentidos” de Nagisa Oshima(1976), de alguma maneira esses filmes encontraram o Inconsciente e manifestaram antes de toda a compreensão sobre nossos tempos, a questão central que iria mobilizar tudo que envolve o desejo humano frente às suas questões de realização ou adiamento. Culminando os dois naquilo que seria a vitória de Thanatos, a morte do organismo vivo.

Há algo disso que nos atravessa todo o tempo na atualidade, e longe de construir um discurso pessimista e derrotista frente ao tema, queremos aqui nesse texto sublinhar sua problemática e talvez resgatar algo de esperançoso diante de tudo isso. Missão impossível? Talvez, quem sabe, mas como diriam muitos , se não ousarmos, se não sonharmos, qual possibilidade de mudança do real poderemos esperar?

"Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar".
(Livro do Desassossego – Fernando Pessoa[Bernardo Soares])

Então fica o aviso ao leitor, embora haja todo um traçado teórico nesse texto, ele não será em nenhum momento a tradução apenas de teorias e muito menos pretende ser um tratado científico sobre a questão. Se isso lhe parecer uma tarefa sem importância sugiro que abandone sua leitura desde já.

Quando Freud analisa a questão dos postulados da cultura para o homem, suas exigências e leis em em textos como “O Mal Estar da Civilização” ou então no magnífico “Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna” já colocava a necessidade de uma certa sublimação para que a cultura avance, assim como a necessidade inscrita em cada aparelho psíquico de adiar para uma maior gratificação. Podemos aí traçar um paralelo com a atividade sexual propriamente dita, onde toda organização parcial que antecede ao ato sexual em si, com sua primazia na genitalidade, se constitui como fundamental para que o ato sexual se traduza ao final como descarga prazerosa.

A pergunta que começa a ser traçada dentro da leitura que fazem muitos teóricos sobre nosso atual momento, chamado e nomeado por muitos como pós-modernidade, seria se essa capacidade de adiar estaria sendo suprimida em nome de um controle social, meio que aos moldes do visionário “soma” na obra “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley (1932), onde o encontro romântico passa a ser a verdadeira transgressão, aquilo que será impedido pela lei. Até onde estaremos transformando desejo em ato de consumir, ligado a toda e qualquer atividade humana e jogando nossas angústias existenciais no mais profundo vazio, ausente de eco e encontro afetivo? Essa tem sido uma das leituras possíveis dos acontecimentos, e com certeza dá conta de grande parte do que vem ocorrendo em relação às angústias e adoecimentos do sujeito frente aos novos modelos de vida. Supomos apenas que essa não será a única leitura possível.

Teremos que pensar que a organização de vínculos que existia antes de todas as transformações que ocorreram alavancadas em mudanças sócio-históricas, econômicas e subjetivas, essas últimas bastante inspiradas pelos constructos da psicanálise, não era assim algo que garantisse uma felicidade, muito pelo contrário, tenhamos como evidência as histéricas de Freud. Toda supressão e demonização da atividade sexual, assim como a forte convicção na manutenção das instituições acima do desejo do sujeito, não eram assim um traçado muito convincente para a realização e gratificação. Isso foi bem visto por inúmeros escritores, teóricos, poetas, filósofos e psicanalistas. A tal família nuclear assentada na instituição casamento mostrou um antagonismo entre essa organização e o ideal romântico. Vivemos a era da falência desse modelo, onde uma nova concepção de família tem tentado questionar a velha e desgastada obrigatoriedade de continuidade a partir do ideal romântico: e foram felizes para sempre. O sujeito psíquico vive hoje uma eterna luta entre seu desejo e seus ideais sociais de aceitação.

Existirá alguma forma de conciliação entre seus pólos? E aos conservadores que culpam a modificação dessas instituições como as que estariam provocando todos os males, não nos caberia perguntar se dá para arrumar armários sem antes bagunçar tudo que está dentro?

Por outro lado, a liberdade sexual da qual hoje dispõe grande parte dos habitantes do nosso planeta, não tem levado a uma vivência de satisfação e gratificação suficiente para o aparelhamento psíquico. Vemos surgir novas(ou renomeadas) patologias e uma grande queixa quanto a um vazio existencial que tenta suprir-se naquilo que seria o ato de consumir vorazmente bens, relações, tarefas, ideais etc. Esse vazio tem sido respondido pela indústria farmacêutica com a fabricação cada vez mais insistente dos psicofármacos, temos outro filme para “falar” por nós dessa época que é o “Geração Prozac”. Não estamos dizendo aqui, que não seja importante podermos dispor desses medicamentos, mas sim que talvez seu uso esteja alargando demais a finalidade que deveriam ater-se. Tampar angústias do existir não deve ser, pelo menos para o modelo da psicanálise, um fim em si mesmo. A angústia revela, ou tenta revelar, que algo está fora do lugar, que a economia psíquica precisa ser reencontrada, que há tirania na negociação entre os senhores da nossa felicidade.

“Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que posteriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem – entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir através de uma ação especial”.(1)

Nessa dinâmica se inaugurará todo protótipo da busca humana, de toda movimentação que visa encontrar no outro ou em algo fora do seu mundo interno, ou do auto-erotismo, para gratificação dos incessantes impulsos do id. Se no início tudo era id, não por muito tempo assim permanecerá, logo surgirá aquilo que se formará como ego, para sempre um conciliador entre diferentes impulsos, mediando realidade, o superego que se formará logo adiante e todas as solicitações do id, movido pelo Princípio de Prazer e pelo Além do Princípio de Prazer, o Thanatos que há desde o início, ali aliado sempre como o componente que leva à ação. Esse ego que é antes de tudo corporal.

“A patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental – suas percepções, pensamentos e sentimentos -, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes”(1)

O ego é maleável, flexível e busca sempre adaptar-se, sobreviver, agrega na Pulsão de Vida as pulsões de auto-conservação presentes na dualidade da 1ª teoria pulsional e depois reunidas com as sexuais formando o postulado da Pulsão de Vida que se contrapõe a Pulsão de Morte. Como nos diz o escritor Albert Camus seria da natureza humana adaptar-se a tudo, sobreviver sempre, mesmo nas mais adversas condições.

“Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe”.
(O Mito de Sísifo)(B)

Há Eros e Thanatos, há vida e morte, alento e desespero, amor e ódio, prazer e dor, desejo e frustração; pares que nos movem no dualismo freudiano.

Criamos um mundo que avança em seus ideais de gratificação urgente, em que o tempo corre cada vez mais acelerado, desconhecendo a física e implantando a lógica do psíquico em seu estado atemporal. Mas se há nisso um vazio, deve existir aí também algo de meta da construção da cultura, porque se nos matamos, também é verdade que todo tempo sobrevivemos, até o fim inevitável. A pergunta que podemos nos fazer frente ao tal vazio apregoado pelos novos profetas, pela filosofia contemporânea, seria a de que meta de vida possa haver em tudo isso? Porque com certeza alguma há. É bobagem dizer que o mundo hoje é pior que a velha cela na qual homens e mulheres se encarceravam antes. Caminhamos em um ritmo humano, construindo e desconstruindo como foi sempre, desde tempos imemoráveis.

“Sendo o Inconsciente patrimônio de todo e qualquer ser humano, com tudo o que ele representa de infantil, extemporâneo, atemporal, imutável, esta dimensão vai ter expressão e consequências extremamente amplas nas sociedades e nas culturas humanas”.(Sérgio Telles) (B)

Vivemos hoje um tempo de perguntarmo-nos onde velhos e novos modelos levam o homem ao caos que é o que na verdade provoca toda possibilidade de mudança, negar isso é negar-se a ver toda movimentação viva que faz avançar as relações humanas dentro de um mundo/cultura onde tudo pode e está efetivamente sendo transformado, transmutado. Há um ideograma chinês, comentado por alguns terapeutas alternativos que representa bem esse olhar para os novos tempos, ele diz assim: Crise= Risco+possibilidades. Perdemos muito com os novos tempos, mas ganhamos muito também, não jogamos para perder, disso sabemos.

Com certeza nossas relações de vínculo estão bastante modificadas, há nisso uma modernidade assustadora, homens se pensam como máquinas e pensam nas máquinas como homens. Época onde muitos buscam a tal AI(Inteligência artificial), onde a religião cada vez mais se aproxima da ilusão da qual Freud falou, a despeito de todo antagonismo que isso provocou à época. Perdidos e assoberbados por mais estímulos do que podemos suportar, buscamos algum momento de silêncio, do nada, da contemplação. Ainda o encontramos, nas raras ocasiões em que nos tocam quase que como por acaso dentro dessa grande rede que o planeta se transformou. Deprimimos porque temos medo, ou simplesmente porque precisamos de um momento de quietude? Paramos acuados frente a um mundo que afinal, foi criado pela capacidade humana, por sua inesgotável sede de conhecimento e domínio sobre as leis da natureza intra e extra-corpórea. Falamos hoje em uma nova postura, nova ecologia, hamonização com o meio-ambiente. Se alguns nos pensam como câncer do planeta, somos também sua vacina. Trazemos morte e vida.

E tudo começa em cada indivíduo, esse sujeito desejante da psicanálise, ser que fala, que traz representações para o mundo simbólico.

“As percepções e concepções regidas pelo princípio da realidade devem se impor sobre aquelas regidas pelo princípio do prazer. A realização alucinatória do desejo, própria do funcionamento do processo primário, deve ser substituida pela procura na realidade da realização do desejo, segundo o processo secundário. O "wishful thinking", o pensamento permeado pela realização de desejo, deve ser substituído pelo pensamento regido pelo reconhecimento possível da realidade. Na linguagem lacaniana, o real é inacessível, e a realidade é o produto resultante da rede simbólica e imaginária jogada sobre o real. Na linguagem freudiana, a realidade será sempre fruto de uma Weltanschauung, uma cosmovisão”.(Sérgio Telles) (B)

E onde entrará aí o objeto desse texto, a frustração? Podemos dizer que cada item que foi tocado até aqui só poderá trazer sentido para nossa reflexão, se entendido desde sua capacidade de frustrar-se, ou de adiar satisfação em estado permanente de busca. Nesse jogo com esse real inacessível temos um ego capaz de suportar essa verdade, de fazer testes de realidade e realizar ou adiar, gratificar ou sublimar. O ego entende que em todo ganho há perda, entre a negociação que estabelece entre seus três senhores: id, superego e realidade. Aquele que não consegue coordenar essa atividade, adoece, paralisa, ou simplesmente desiste da força de Eros, emprestando a Thanatos toda a capacidade de agregar inerente a vida.

Chegamos a nos confrontar com isso na clínica quando “aqueles pacientes que não aceitam serem frustrados, acabam por nos atacar na transferência, muitas vezes regredindo em sintomatologia(ataque indireto), ou mesmo com silêncios, faltas, atrasos, ameaças de interrupção do tratamento etc”. ª

Freud chegou a postular em seu texto “O Mal estar na civilização” que “o sofrimento nos ameaça a partir de três direções”: nosso corpo, o mundo externo e nosso relacionamento com outros homens; e que a “infelicidade é muito menos difícil de experimentar”.

Podemos pensar nossas relações com o mundo a partir dessas premissas, entender que há movimento de avanço e retrocesso, prazer e luto em tudo aquilo que empreendemos esforços. E se hoje se pensa em uma demanda incessante e uma oferta enloquecida, poderemos talvez daí pensar em novos paradigmas para o fazer humano, que ainda resiste e por isso traz melancolia para tudo aquilo que de novo vem surgindo.

Lamentar perda de limites que aprisionavam, chorar por velhas instituições que manipulavam o desejo, buscar um sujeito perdido em arcaicas representações, será mesmo isso algo tão importante? Como um viajante aventureiro, talvez a questão seja fotografar o porto e virar a visão para o além-mar, como os desbravadores sempre fizeram desde que o mundo é mundo, ou que se pôde pensá-lo.

Concluindo:

“Não existe pátria para quem desespera e, quanto a mim, sei que o mar me precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta. Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor, mas isso não é desespero: eles sabem que o amor existe. Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim…”
(Albert Camus – “Do mar bem perto” )

Percebam que nesse presente texto, não há nenhuma oposição a toda construção que tem sido erigida sobre esse novo sujeito e sua subjetividade, ao que muitos chamam do novo quadro, os borderlines. Sem dúvida andamos no limite entre razão e desrazão. Apenas há uma tentativa de resgatar dessa movimentação algo que há no sentido do avançar que é inerente a toda atividade humana. Seria por demais pretensioso pensar independente de tudo que se tem falado sobre esse vazio do consumo estéril que hoje constrói esse sujeito angustiado. O que não é possível é que tenhamos que escolher entre o imobilismo e conservadorismo e a demanda estéril e desejo desenfreado. Freud há muito já nos mostrou o caminho do surto como tentativa de refazer o vínculo com o mundo externo, com essa realidade que mora entre o simbólico e o imaginário.

Para avançarmos acolhendo essa nova subjetividade, permeada e atravessada hoje por todas as engenhocas tecnológicas que criamos, antes de mais nada para nosso conforto e progresso, teremos que entender que fazemos parte dessa criação, somos seus usuários e criadores, e que há nisso, como dissemos antes, aspectos regressivos e progressivos, saúde e adoecimento, ganhos e perdas.

O navio parte e não dá para pular no mar e regressar ao porto, a aventura da viagem é inevitável.

“Não é arriscado supor que sob o regime de uma moral sexual civilizada a saúde e a eficiência dos indivíduos esteja sujeita a danos, e que tais prejuízos causados pelos sacrifícios que lhes são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que indiretamente cheguem a colocar também em perigo os objetivos culturais”(2)

Esse texto de Freud de 1908, embora ainda não contemple toda a complexidade da questão formulada mais adiante por ele de acordo com o desenvolvimento da teoria psicanalítica, nos chamará definitivamente a atenção para algo de suprema importância para que entendamos tudo que irá relacionar-se aos desejos sempre impulsionando o sujeito psíquico e as barreiras que a cultura que ele forma irá colocar no caminho de sua realização através de suas leis representadas por suas instituições. Se aceitamos a tese do recalcamento, ditada pelo interdito como aquilo que forma a cultura, veremos que essa será sempre uma questão presente para entendermos o porquê realizamos e o porquê de adoecermos. Não é na verdade tão simples assim entendermos toda essa dinâmica, mas com certeza será sempre uma parte muito presente no discurso latente que procura o divã para renegociar em nome de um bem-estar perdido. No caminho da análise muitas vezes o insight será não o realizar o impulso, mas aprender a frustrá-lo, adiá-lo e gratificar de maneira mais completa logo adiante. Outras vezes, o caminho será renegociar impedimentos cruéis ou extemporâneos que impedem um realizar simples de um desejo de felicidade. O que poderemos ver, na prática clínica, é que escolher um caminho ou outro é uma tarefa que sempre demandará grandes esforços, dificuldade de escolha, aceitação de alguma perda e o risco de ser mais um grande equívoco.

“… entretanto, o fato de ter sido um médico americano o primeiro a compreender e a expor os aspectos singulares dessa doença*, devido a uma vasta experiência clínica, revela certamente a íntima conexão entre essa doença e a vida moderna, com sua desenfreada volúpia de bens materiais e seus enormes progressos no campo da tecnologia, que destruíram todos os entraves temporais ou espaciais à intercomunicação”.(2) *neurastenia

De alguma maneira estava lá em Freud uma antevisão do por onde caminharia a humanidade. Onde o traçado do desejo poderia perder-se em seu próprio avanço. Onde hoje se lê como consumo desenfreado e realização ilimitada que levaria a esse abismo existencial que vive hoje o sujeito.

Mas junto a essa desorientação da rota do desejo, hoje temos aquisições como preocupações com o meio-ambiente, uma revolução sexual que permite que se busque formas diversas de fazer pares, aceitação crescente da diversidade sexual, mães e pais que olham e tentam entender o mundo emocional de seus filhos, mulheres donas de seus corpos e das decisões sobre ele, homens que buscam o caminho do afeto e sexo em harmonia e tantos outros olhares diferentes. Pensar que só mudamos para o desafeto, ódio, fragmentação, consumismo etc não é a realidade por inteira. Talvez esteja na hora de olharmos para os dois lados das nossas transformações.

“Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. “O quê, por caminhos tão estreitos?…”. (B)

Bibliografia:

1 – “Mal Estar na Civilização” – vol XXI – Obras Completas Sigmund Freud

2 – “Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna” – Vol XIX – Obras Completas S. Freud

ª – Contribuição do colunista Tovar Tomaselli

Links:

A – Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico – Táki Athanássios Cordás
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832004000400003

B – O Mito de Sísifo Albert Camus

http://filosofocamus.sites.uol.com.br/txtmitosisifo.htm

http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/absurdo.htm

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