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Ensaio sobre o corpo II – Melancolia e Transtornos Alimentares

Quando falamos em “corpo” em psicanálise, estamos nos referindo ao conceito de “corpo erógeno” ou “corpo do desejo”, onde estariam se manifestando todas aquelas situações simbólicas de conflito, as quais não puderam ser externadas verbalmente. O corpo erógeno se transforma na “arena”, onde serão travadas as batalhas entre o DESEJO e a DEFESA.

Se realizarmos uma pesquisa nos trabalhos psicanalíticos da época de Freud, encontraremos tanto em Karl Abraham como em Freud que: as elaborações do mecanismo fisiológico do mecanismo melancólico e sua base, encontram-se em tendências elementares anal-sádicas e oral-digestivas canibalísticas.

Foi com base nesses pressupostos e também com o conhecimento da análise do ego e seus mecanismos de defesa, que Sandor Radó, em 1.927, pôde se aprofundar sobre a natureza da melancolia. Segundo este autor, o melancólico quando examinado em períodos de "normalidade", apresenta-se como um indivíduo com grandes necessidades narcísicas e, também com uma grande intolerância da mesma ordem. O melancólico estaria na dependência completa dos objetos exteriores, procurando obter de todas as formas o amor dos que o rodeiam.

Faz-se necessário notar que quando consegue o seu intento, muda de conduta em seguida. Sua reação tem o significado de que o amor que ele recebe lhe era devido, não se colocando de forma alguma na posição de quem tem algo a trocar. Tratar-se-ia então do movimento de receber e dar, com o qual gostaria que ficássemos por enquanto.

Quando se dá conta da perda do objeto, é tomado por uma grande agressividade, a qual não o leva a lugar algum produtivo. Vê-se então forçado a mudar novamente de conduta. Na ânsia de recuperar o objeto a ele imprescindível, volta a sua agressividade em relação ao próprio ego, buscando através de remorsos e castigos reparar essa desagradável situação.

Nota Importante:
"deveremos ter em conta que todo esse movimento não se dá em relação aos objetos reais, senão que nessa situação de conflito, o melancólico efetua uma retirada narcísica, buscando o perdão do superego. Dessa forma, afasta-se da realidade exterior, permanecendo todo esse movimento no interior do psiquismo." (A. Garma).

Sabemos que em qualquer indivíduo, a sucessão de fenômenos como culpa-expiação-perdão, encontra-se gravada em seu psiquismo e, se apóia em vivências anteriores e relacionadas com a alimentação. Assim, a falta do alimento desperta na criança, tendências agressivas que posteriormente, mais própriamente no período de latência, acabam sendo englobadas pelo temor à castração. Temos então que a série de vivências análogas e anteriores é: raiva-fome-mamar.

Na criança, o mamar satisfaz conjuntamente as necessidades alimentícias e narcísicas de auto-estima. Entendemos que o ponto de fixação da disposição narcísica encontra-se na situação de perigo de perder o amor, correspondente ao perigo de fome no recém-nascido. Julgamos importante ressaltar que a situação alimentícia da criança, produz seu maior prazer no "orgasmo alimentício", o qual é precursor do orgasmo genital.

Seguindo essa construção que temos percorrido, ressaltamos que o objeto sofre então dois processos de introjeção no indivíduo. Um no superego e o outro no ego, o que pode ficar demonstrado pelo fato do ego castigar-se pelas culpas do objeto e que o castigo seja efetuado pelo superego, também como se fosse o próprio objeto.

Ao seguirmos uma concepção principalmente kleiniana em psicanálise, vamos poder constatar que a criança constrói duas imagens distintas dos seus pais: uma "boa" e outra "má". Assim, suas tendências agressivas vão dirigidas à mãe má, assim como as de amor, à mãe boa. Contudo o ser humano é um ser inserido na cultura e , assim sendo todo o processo educacional leva-o a rechaçar a própria agressão, que situar-se-á no inconsciente, juntamente com a representação da mãe má. No melancólico existe também no inconsciente a representação do objeto mau, assim como a agressividade reativa contra o mesmo, a qual não foi satisfeita.

Gostaríamos agora de retomar o terceiro parágrafo do presente estudo, onde ressaltamos a presença do movimento de receber e dar. Pois bem, se juntarmos esse movimento à existência de objetos bons e maus, assim como da existência de toda uma agressividade inconsciente em relação aos mesmos, penso que poderemos ter uma primeira aproximação com os aspectos da conduta humana que me interessam aqui estudar, como a anorexia e a bulimia, os quais são caracterizados como constituintes dos transtornos alimentares.

Não é fato nada incomum, sobretudo nos dias atuais, recebermos pacientes na clínica, os quais muitas vezes vem indicados pelo seu médico assistente, ou mesmo por uma grande pressão familiar. Ao prestar atenção a esses pacientes e aqui falo de minha experiência pessoal, sempre pude notar de forma quase unânime entre eles que os mesmos quando me falam que fazem "isso" (vômito), não o fazem apresentando conjuntamente um quantum de angústia associado ao fenômeno de que estão tratando. Já cheguei a ouvir algo assim como: "o meu prazer está em comer e comer bem, depois disso a comida vai me engordar, então vomito para que isso não aconteça comigo".
Chega a ser espantoso para quem desse problema não padece, como alguém pode falar de um ato tão desconfortável, de uma forma tão natural como: aí,depois eu chupei um sorvete! Tenho observado também que existe quase que um tipo de "treinamento" para se vomitar, cada vez de forma mais "fácil" : "Eu nem preciso por o dedo na garganta",(…),"As vezes empurro a barriga pra cima".

Da análise do discurso do paciente:

O movimento de dar e receber, muitas vezes aparece no discurso do paciente mas não como comer e vomitar, mas sim de algo que se passa em sua vida pessoal ou profissional. Me ocorre um exemplo assim: "Eu estou muito contente com o meu namoro, mas tenho pensado em terminá-lo, antes que meu namorado o faça". A impressão que temos é da presença de uma grande dificuldade de manter o bom, o prazeiroso, internamente, tendo o mesmo que ser "excretado". Pessoas que não relatam um só motivo pelo qual deixariam um emprego, o qual, pelo contrário, só lhes trás gratificações. Mas, penso que é exatamente aí que reside o maior problema: manter internamente um estado de gratificação, do bom, do prazeiroso, etc.

Pensando numa alternativa de aproximação do mesmo fenômeno, me ocorreu aquilo que Freud relatava sobre o exame clínico que fazia nas suas pacientes que apresentavam uma histeria de conversão. Nos dizia ele algo mais ou menos assim: "ela se queixa de fortes dores nas pernas, mas o curioso é que quando toco em suas pernas, ao contrário do que ocorreria se houvesse algum problema de ordem orgânica, elas expressam fácialmente, mímicamente, quase que uma expressão de prazer". Chega a escrever tudo isso em seu trabalho "Algumas diferenças entre as paralisias motoras orgânicas e histéricas".

Enfim, minha intenção foi a de através de considerações de ordem teórica, conceitual da psicanálise, além de alguns exemplos extraídos da clínica, poder me aproximar de fenômenos pelos quais os seres humanos acabam nos comunicando o seu sofrimento, a sua dor interna e, a importância que se faz de estarmos atentos e preparados para poder decifrar esses verdadeiros códigos de comunicação não-verbal, não explícita.

Quero concluir este trabalho com uma colocação de Freud, a qual espero que possa fazer sentido à todos os leitores desse artigo.

" Quando o indivíduo se cala, ele fala pela ponta dos dedos ".

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