(continuação)
Sua importância semiológica é grande e numerosos autores os descreveram no caso da síndrome psico-orgânica. Podemos distinguir os distúrbios do débito verbal e os distúrbios da linguagem propriamente dita.
a. Os distúrbios do débito verbal
_O débito verbal pode estar diminuído
Assim, o mutismo é encontrado na síndrome psico-orgânica, quer o paciente seja afásico, ou bastante confuso, exprimindo estupor e perplexidade, ou ainda muito deteriorado, com uma expressão fixa e inexpressiva. Além disso, observa-se uma lentidão anormal, com diminuição da espontaneidade verbal, que reflete, na maioria das vezes, o bradipsiquismo do paciente. É freqüentemente observada no quadro da síndrome orgânica, mas é igualmente observada em outras afecções, como a melancolia ou a esquizofrenia. Descrevem-se igualmente suspensões da linguagem, mas ou menos prolongadas, que devem ser distinguidas dos bloqueios do esquizofrênico e das suspensões do discurso nos delirantes.
– O débito verbal também pode estar acelerado
A logorréia, com enunciados desconexos que vão até a incoerência, é encontrada no doente orgânico, mas também o é em outras afecções, como na mania ou esquizofrenia.
b. Os distúrbios da linguagem
Decorrem de dificuldades em manipular as estruturas semânticas e sintáticas necessárias à expressão das idéias. Podemos distinguir distúrbios não-afásicos e afásicos, no sentido estrito do termo.
– Os distúrbios não-afásicos: são semânticos ou sintáticos.
– – Entre os distúrbios semânticos, descrevem-se no paciente orgânico cerebral: os distúrbios da compreensão dos conjuntos verbais; a dificuldade em encontrar palavras precisas, substituídas por palavras genéricas vagas, por palavras deformadas, inadequadas, ou por neologismos; a ampliação de certos conceitos, a partir da qual o paciente atribui sentidos diferentes a uma mesma palavra. Cabe notar que esse alargamento do campo semântico da palavra é igualmente encontrado no discurso de certos psicóticos.
Da mesma forma, os neologismos podem ser encontrados no discurso de doentes orgânicos ou psicóticos, em particular nos esquizofrênicos catatônicos e hebefreno-catatônicos. Trata-se de palavras novas, inventadas a partir de vários pedaços, ou formadas pela reunião, em uma só palavra, de palavras que representam idéias diferentes, às vezes com contrações. Relata-se ainda uma utilização das palavras em sua significação concreta ou, mais comumente, uma utilização com incapacidade de manipular o pensamento abstrato de maneira bastante análoga, ao menos na superfície, ao esquizofrênico.
Observam-se, por fim, associações verbais feitas, seja por contigüidade (com uma palavra atraindo aquela que lhe é freqüentemente associada), seja por assonância. Esses fenômenos são encontrados na síndrome psico-orgânica, mas também – e, sobretudo – no maníaco e no esquizofrênico. Contudo, enquanto no maníaco o que está em jogo é a excitação, e, no esquizofrênico, certo "corte" da linguagem em relação ao pensamento, no orgânico o que está em questão é a pobreza do pensamento, com liberação de automatismos verbais.
– – Os distúrbios sintáticos consistem em uma fragmentação das proposições, em uma redução elíptica da frase, em uma desordem dos encadeamentos: enfim, em um apragmatismo total. Também eles, são descritos tanto no orgânico quanto no esquizofrênico.
– Os distúrbios afásicos: resultam do desarranjo dos mecanismos psicossensoriomotores que intervêm na percepção e na expressão da linguagem e que são elaborados em uma região limitada do hemisfério dominante. Sendo especificamente neurológicos, tais distúrbios podem associar-se diversamente com desordens cognitivas mais globais.
E. Os distúrbios do pensamento
No paciente orgânico cerebral, o pensamento pode estar alterado em seu desenrolar (distúrbios do curso do pensamento), em seu grau de eficiência (pobreza da ideação) e em suas modalidades, o que confere ao pensamento "orgânico" o que ele tem de mais característico (pensamento digressivo e difluente, mas, também o pensamento alterado em seu fluxo).
a. Os distúrbios do curso do pensamento
Acham-se presentes com freqüência em:
– A excitação psíquica (mentismo) é observada em certos estados orgânicos. Deve ser distinguida da fuga de idéias dos estados maníacos e da excitação ocasionalmente notada em certos estados esquizofrênicos.
– O bradipsiquismo, entretanto, é muito mais evocador de uma síndrome psico-orgânica, sendo assinalado por todos os autores. O paciente responde lentamente, com demora, suas associações são trabalhosas e a elocução é hesitante e lentificada.
b. O empobrecimento do pensamento
Freqüentemente acompanha o bradipsiquismo e se traduz por uma expressão verbal vazia de conteúdo, pobre de sentido, com respostas curtas, incompletas e inacabadas; no máximo, traduz-se pela repetição enfadonha e pelos enunciados estereotipados que se observam nos estados demenciais.
Mas o sofrimento orgânico cerebral desorganiza o pensamento de maneira muitas vezes menos manifesta, e os distúrbios intelectuais, mais discretos e muito evocadores da síndrome psico-orgânica, devem ser convenientemente assinalados clinicamente.
c. Pensamento digressivo e difluente
É o que freqüentemente acaba-se encontrando. Caracteriza-se por associações verbais por contigüidade ou assonância, por numerosas digressões, que o sujeito faz a partir dos aspectos periféricos do discurso, e por generalizações freqüentes, que o levam a perder o fio condutor de seus enunciados, que parecem então desprovidos de objetivo.
d. O pensamento alterado em seu fluxo
Embora a associação desse distúrbio com o precedente possa afigurar-se paradoxal, ela caracteriza muito especificamente o pensamento prolixo do "orgânico".
A perda de fluidez mental no orgânico caracteriza-se pela viscosidade mental, pela tendência à perseveração (repetição), e pela incapacidade de manejar o pensamento abstrato. A viscosidade mental ou aderência já fora descrita no epilético pela Sra. Françoise Minkowska (1923-1936), esposa de Eugène Minkowski, sob a denominação de gliscroidia (do grego, glia, "cola"). O pensamento perde sua maleabilidade, evolui com lentidão e dificuldade e custa a passar de uma idéia a outra e a adaptar-se. Nenhum elemento é supérfluo e cada dado tem necessidade de ser considerado pelo viés orgânico em todas as suas ramificações, com as numerosas digressões que isso implica. Isso dá ao discurso um aspecto lentificado, pedante e verborrágico. A perseveração verbal consiste em uma tendência a repetir diversas vezes uma palavra ou grupo de palavras. Há um falso detalhismo, ou minuciosidade, que está muito estreitamente relacionado com a aderência, mas merece ser isolado devido à sua importância semiológica. Sublinhada por numerosos autores como muito evocadora de organicidade cerebral, a perseveração chega mesmo a ser considerada por alguns como um sinal patognomônico. Cabe ainda assinalar que a tendência à perseveração no orgânico é igualmente encontrada no domínio gestual e da práxis.
e. Incapacidade de manejar o pensamento abstrato
O déficit do pensamento conceitual e da atitude categorial no orgânico – foi sublinhado por numerosos autores. O paciente acha-se incapacitado para manejar os conceitos abstratos, as metáforas, e utiliza freqüentemente as palavras em sua acepção mais concreta. Estabelece menos bem e menos rapidamente as relações entre os conceitos, acha-se perturbado nas operações de síntese ou de análise e, com mais razão ainda, é incapaz de enunciar hipóteses, de conceber planos abstratos e virtuais situados dentro do possível. É incapaz de aceder, graças à função simbólica, a um grau de abstração suficiente para trabalhar com os signos e com as relações entre os signos.
O prejuízo dessa atitude abstrata categorial é, para certos autores, notadamente K. Goldstein, o aspecto essencial do pensamento do orgânico, que, ligado à experiência imediata do singular, não pode tomar distância em relação ao objeto e se acha como que "enviscado" (grudado, colado) no concreto. Essa característica é primordial para Goldstein: é por não poder desprender-se, descentrar-se, para abraçar todo um conjunto de elementos, que o pensamento do orgânico "adere", "cola-se", "persevera" e "se arrasta".
Esse prejuízo da "função semiótica" pode atingir os diferentes instrumentos verbais e não-verbais que ela comporta, e a linguagem, embora desempenhe um papel particularmente importante nessa função, não é a única a ser afetada. O pensamento abstrato de expressão não-verbal também pode ser alterado e, o que é notável, mostra-se até mesmo muito sensível à deterioração orgânica (é o caso dos testes de desempenho que não se mantêm).
Muito embora esses distúrbios pareçam ser característicos do pensamento orgânico, tenho ocasião de observar que os esquizofrênicos poderiam igualmente estar a apresentar um distúrbio do pensamento conceitual, o que já foi proposto por alguns autores como um argumento em favor da origem orgânica da esquizofrenia. Entretanto, essa concepção foi criticada por numerosos autores para quem os psicóticos não têm uma perda da atitude abstrata em geral, mas antes uma deficiência na direção e na utilização dessa atitude.
F. Os distúrbios das funções intelectuais superiores
O conjunto de distúrbios cognitivos que acabo de descrever tende a perturbar o conjunto das funções intelectuais superiores do indivíduo, tais como a aquisição, o raciocínio e o julgamento-crítico.
a. Déficit na aquisição
O indivíduo acha-se incapacitado para adquirir uma noção nova e aplicá-la. Não consegue adaptar-se às situações novas e tirar partido da experiência que isso traz. Essa falta de adaptabilidade lhe provoca uma tendência a refugiar se em seus hábitos e a evitar qualquer fator de mudança. Esse déficit é citado por numerosos autores no quadro da síndrome psico-orgânica.
b. Os distúrbios do raciocínio
O paciente tem uma capacidade reduzida de ordenar, com o auxílio de conceitos, uma construção lógica relacionada com um fim, graças a técnicas intelectuais e verbais. Esse déficit parece bastante precoce no orgânico. Tal como ocorre com a aquisição, entretanto, as capacidades de raciocínio do indivíduo podem ser diminuídas por fatores de ordem puramente afetiva (falta de atenção, de motivação, ansiedade etc.).
c. Os distúrbios do julgamento
São observados pela maior parte dos autores a propósito da síndrome psico-orgânica.
Eles nos parecem constituir um sintoma fundamental, devido à sua freqüência e à diversidade de suas manifestações, que podem às vezes perturbar o diagnóstico. Como sublinha o mestre A. Porot, trata-se, em psiquiatria, de uma noção bastante ampla e um tanto imprecisa, que se aplica à qualidade de qualquer atividade intelectual, apreciada sob o ângulo da razão. Meu ex-professor Henri Ey define o julgamento como "o conjunto de valores lógicos ou de realidade atribuídos pelo sujeito a uma situação, a um acontecimento, a um conjunto de circunstâncias, a uma opinião e, notadamente, à sua (autocrítica)".
Convém distinguir as carências de julgamento próprias dos estados orgânicos da falsidade e dos desvios de julgamento que encontramos em diferentes distúrbios afetivos. As carências de julgamento, freqüentemente precoces nas síndromes psico-orgânicas, nem sempre são fáceis de se reconhecer. Podem traduzir-se por: uma ausência de consciência do caráter mórbido dos distúrbios do psiquismo e do comportamento; uma incoerência do pensamento, que perde sua lógica: os discursos do indivíduo apresentam contradições, enunciados inadequados, deslocados, sem continuidade, e respostas descabidas, sem relação com a pergunta formulada. O distúrbio do julgamento pode igualmente acarretar uma apreciação errônea de certos fatos reais, aos quais o indivíduo atribui uma significação que não têm e que às vezes é difícil de distinguir de uma interpretação delirante; uma redução dos valores éticos, com descortesia, embotamento da delicadeza e do humor, trivialidade, impropriedade, impulsos, agressivos ou sexuais, contrastando com o que o indivíduo era anteriormente; uma diminuição do sentido das barreiras sociais e das normas: atos absurdos ou médico-legais, inatividade ou turbulência.
Essa carência de julgamento deve ser diferenciada da falsidade, dos desvios de julgamento, que se encontra em certos distúrbios afetivos, notadamente de tipo psicótico; o julgamento, neste último caso, fica submetido a uma polarização afetiva e, desse modo, torna-se pessoal e passional, em vez de lógico e social. Na prática, todavia, a distinção entre a falta de julgamento no orgânico, e seu desregramento no psicótico nem sempre é fácil, e um estado orgânico pode fazer evocar, erroneamente um estado psicótico, devido à má apreensão do real pelo indivíduo e a sua má adaptação a certas situações, sobretudo no início do ataque orgânico, em que as reações afetivas são ricas e podem ser percebidas como a causa dessa disfunção do julgamento.
G. Distúrbios da imaginação
Ao lado da pobreza imaginativa dos indivíduos deteriorados, somente vou assinalar a fabulação, que, no orgânico, é freqüentemente pobre; repleta de repetições, mistura de fatos errôneos e lembranças esparsas.
H. Prejuízos às funções instrumentais
São especificamente orgânicos. Comportam-se além da afasia já citada, as diferentes apraxias e agnosias, ou a "apraxognosia" (desorganização da habilidade), como propõem J. Barbizet e Ph. Duizabo. Esquematicamente, podemos distinguir aqueles a que estão subjacentes lesões têmporo- parietoccipitais direitas, com distúrbios da habilidade e do saber-olhar (agnosia visual-espacial) por alteração das relações do indivíduo com o espaço que o cerca, e aqueles a que estão subjacentes lesões têmporo-parietoccipitais esquerdas, com distúrbios da habilidade em diferentes atividades, por perda de seu valor semântico e de sua compreensão conceitual (distúrbio da utilização dos objetos, dos gestos com fins relacionais etc.).
A patologia, além disso, ensina-nos a importância do cruzamento têmporo-occipital direito na representação de nosso próprio corpo, podendo ser descritos diferentes distúrbios do esquema corporal resultantes de um dano nessa área: modificação da imagem corporal, com sensação de deformação das proporções anatômicas; perda do esquema corporal, na maioria das vezes hemi-assomatognosia (desconhecimento de metade do seu corpo, associada com uma anosognosia – desconhecimento de estar doente – na síndrome de Anton-Babinski).
A freqüência dos sinais neurológicos associados contribui para o diagnóstico desses distúrbios, que, na maioria dos casos, diferenciam-se facilmente do sentimento xenopático de despossessão ou de transformação corporal de certos esquizofrênicos, ainda que verdadeiros delírios hipocondríacos tenham sido descritos a propósito de tais lesões orgânicas.
Cabe notar, enfim, que as lesões retro-rolândicas direitas podem ser responsáveis por um distúrbio do reconhecimento das fisionomias (prosopo-agnosia) que, para alguns autores, está na base de uma elaboração delirante, tal como a descreveu Capgras (ver nosso artigo sobre Delírio dos Sósias).