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Escola Suíça de Psiquiatria – parte II

(continuação)

D. Os distúrbios da expressão verbal

Sua importância semiológica é grande e numerosos autores os descreveram no caso da síndrome psico-­orgânica. Podemos distin­guir os distúrbios do débito verbal e os distúrbios da linguagem propriamente dita.

a. Os distúrbios do débito verbal

_O débito ver­bal pode estar diminuído

Assim, o mutismo é encon­trado na síndrome psico-orgânica, quer o paciente seja afásico, ou bastante confuso, exprimindo estupor e perplexidade, ou ainda muito deteriorado, com uma expressão fixa e inexpressiva. Além disso, observa-se uma lentidão anormal, com diminuição da espontaneidade verbal, que reflete, na maioria das vezes, o bradipsiquismo do paciente. É freqüentemente observada no quadro da síndrome orgânica, mas é igualmente observada em outras afecções, como a melancolia ou a esquizofrenia. Descrevem-se igualmente suspensões da linguagem, mas ou menos prolongadas, que devem ser distinguidas dos bloqueios do esquizofrênico e das suspensões do discurso nos delirantes.

– O débito verbal também pode estar acelerado

A logorréia, com enunciados desconexos que vão até a incoerência, é encontrada no doente orgânico, mas também o é em outras afecções, como na mania ou esquizofrenia.

b. Os distúrbios da linguagem

Decorrem de dificuldades em manipular as estruturas semânticas e sintáticas necessárias à expressão das idéias. Podemos distinguir distúrbios não-afásicos e afásicos, no sentido estrito do termo.

– Os distúrbios não-afásicos: são semânticos ou sintáticos.

– – Entre os distúrbios semânticos, descrevem-se no paciente orgânico cerebral: os distúrbios da compreensão dos conjuntos verbais; a dificuldade em encontrar palavras precisas, substituídas por palavras genéricas vagas, por palavras deformadas, inadequadas, ou por neologismos; a ampliação de certos conceitos, a partir da qual o paciente atribui sentidos diferentes a uma mesma palavra. Cabe notar que esse alargamento do campo semântico da palavra é igualmente encon­trado no discurso de certos psicóticos.

Da mesma for­ma, os neologismos podem ser encontrados no discur­so de doentes orgânicos ou psicóticos, em particular nos esquizofrênicos catatônicos e hebefreno-catatônicos. Trata-se de palavras novas, inven­tadas a partir de vários pedaços, ou formadas pela reu­nião, em uma só palavra, de palavras que representam idéias diferentes, às vezes com contrações. Relata-se ainda uma utilização das palavras em sua significação concreta ou, mais comumente, uma utilização com incapacidade de manipular o pensamento abstrato de maneira bastante aná­loga, ao menos na superfície, ao esquizofrênico.

Observam-se, por fim, associações verbais feitas, seja por contigüidade (com uma palavra atraindo aquela que lhe é freqüentemente associada), seja por asso­nância. Esses fenômenos são encontrados na síndro­me psico-orgânica, mas também – e, sobretudo – no maníaco e no esquizofrênico. Contudo, enquanto no ma­níaco o que está em jogo é a excitação, e, no esquizo­frênico, certo "corte" da linguagem em relação ao pensamento, no orgânico o que está em questão é a pobreza do pensamento, com liberação de automatis­mos verbais.

– – Os distúrbios sintáticos consistem em uma frag­mentação das proposições, em uma redução elíptica da frase, em uma desordem dos encadeamentos: enfim, em um apragmatismo total. Também eles, são descritos tanto no orgânico quanto no esquizofrênico.

– Os distúrbios afásicos: resultam do desarranjo dos mecanismos psicossensoriomotores que intervêm na percepção e na expressão da linguagem e que são ela­borados em uma região limitada do hemisfério domi­nante. Sendo especificamente neurológicos, tais distúrbios podem associar-se diver­samente com desordens cognitivas mais globais.

E. Os distúrbios do pensamento

No paciente orgânico cerebral, o pensamento pode es­tar alterado em seu desenrolar (distúrbios do curso do pensamento), em seu grau de eficiência (pobreza da ideação) e em suas modalidades, o que confere ao pensamento "orgânico" o que ele tem de mais carac­terístico (pensamento digressivo e difluente, mas, tam­bém o pensamento alterado em seu fluxo).

a. Os distúrbios do curso do pensamento

Acham-se presentes com freqüência em:

– A excitação psíquica (mentismo) é observada em certos estados orgânicos. Deve ser distinguida da fuga de idéias dos estados maníacos e da excitação oca­sionalmente notada em certos estados esquizofrênicos.

– O bradipsiquismo, entretanto, é muito mais evocador de uma síndrome psico-orgânica, sendo assinalado por todos os autores. O paciente responde lenta­mente, com demora, suas associações são trabalhosas e a elocução é hesitante e lentificada.

b. O empobrecimento do pensamento

Freqüentemente acompanha o bradipsiquismo e se traduz por uma ex­pressão verbal vazia de conteúdo, pobre de sentido, com respostas curtas, incompletas e inacabadas; no máximo, traduz-­se pela repetição enfadonha e pelos enunciados este­reotipados que se observam nos estados demenciais.

Mas o sofrimento orgânico cerebral desorganiza o pensamento de maneira muitas vezes menos mani­festa, e os distúrbios intelectuais, mais discretos e muito evocadores da síndrome psico-orgânica, devem ser convenientemente assinalados clinicamente.

c. Pensamento digressivo e difluente

É o que freqüentemente acaba-se encontrando. Caracteriza-se por associações verbais por contigüidade ou assonância, por numerosas digressões, que o sujeito faz a partir dos aspectos periféricos do discurso, e por generalizações freqüentes, que o levam a perder o fio condutor de seus enunciados, que pare­cem então desprovidos de objetivo.

d. O pensamento alterado em seu fluxo

Embora a associação desse distúrbio com o precedente possa afigurar-se paradoxal, ela caracteriza muito especificamente o pensamento prolixo do "orgânico".

A perda de fluidez mental no orgânico caracteri­za-se pela viscosidade mental, pela tendência à perse­veração (repetição), e pela incapacidade de manejar o pensamento abstrato. A viscosidade mental ou aderência já fora descrita no epilético pela Sra. Françoise Minkowska (1923-­1936), esposa de Eugène Minkowski, sob a denominação de gliscroidia (do grego, glia, "cola"). O pensa­mento perde sua maleabilidade, evolui com lentidão e dificuldade e custa a passar de uma idéia a outra e a adaptar-se. Nenhum elemento é supérfluo e cada dado tem necessidade de ser considerado pelo viés orgânico em todas as suas ramificações, com as numerosas digres­sões que isso implica. Isso dá ao discurso um aspecto lentificado, pedante e verborrágico. A perseveração verbal consiste em uma tendência a repetir diversas ve­zes uma palavra ou grupo de palavras. Há um falso detalhismo, ou minuciosidade, que está muito es­treitamente relacionado com a aderência, mas mere­ce ser isolado devido à sua importância semiológica. Sublinhada por numerosos autores como muito evo­cadora de organicidade cerebral, a perseveração chega mesmo a ser considerada por alguns como um sinal patognomônico. Cabe ainda assinalar que a tendência à perseve­ração no orgânico é igualmente encontrada no domí­nio gestual e da práxis.

e. Incapacidade de manejar o pensamento abstrato

O déficit do pensamento con­ceitual e da atitude categorial no orgânico – foi su­blinhado por numerosos autores. O paciente acha-se incapacitado para manejar os conceitos abstratos, as metáforas, e utiliza freqüentemente as palavras em sua acepção mais concreta. Estabelece menos bem e menos rapida­mente as relações entre os conceitos, acha-se pertur­bado nas operações de síntese ou de análise e, com mais razão ainda, é incapaz de enunciar hipóteses, de conceber planos abstratos e virtuais situados dentro do possível. É incapaz de aceder, graças à função simbó­lica, a um grau de abstração suficiente para trabalhar com os signos e com as relações entre os signos.

O prejuízo dessa atitude abstrata categorial é, para cer­tos autores, notadamente K. Goldstein, o aspecto essencial do pensamento do orgânico, que, ligado à experiência imediata do singular, não pode tomar dis­tância em relação ao objeto e se acha como que "en­viscado" (grudado, colado) no concreto. Essa característica é primordial para Goldstein: é por não poder desprender-se, des­centrar-se, para abraçar todo um conjunto de elemen­tos, que o pensamento do orgânico "adere", "cola-­se", "persevera" e "se arrasta".

Esse prejuízo da "função semiótica" pode atingir os diferentes instrumentos verbais e não-verbais que ela comporta, e a linguagem, embora desempenhe um papel particularmente importante nessa função, não é a única a ser afetada. O pensamento abstrato de expressão não-verbal também pode ser alterado e, o que é notável, mostra-se até mesmo muito sensível à deterioração orgânica (é o caso dos testes de desempe­nho que não se mantêm).

Muito embora esses distúrbios pareçam ser característicos do pensamento orgânico, tenho ocasião de observar que os esquizofrênicos poderiam igualmente estar a apresentar um distúrbio do pensamento conceitual, o que já foi proposto por alguns autores como um argumento em favor da origem orgânica da esquizofrenia. Entretanto, essa concepção foi critica­da por numerosos autores para quem os psicóticos não têm uma perda da atitude abstrata em geral, mas antes uma deficiência na direção e na utilização dessa atitude.

F. Os distúrbios das funções intelectuais superiores

O conjunto de distúrbios cognitivos que acabo de descrever tende a perturbar o conjunto das funções intelectuais superiores do indivíduo, tais como a aquisi­ção, o raciocínio e o julgamento-crítico.

a. Déficit na aquisição

O indivíduo acha-se incapacitado para adquirir uma noção nova e aplicá-la. Não consegue adaptar-se às situações novas e tirar partido da experiência que isso traz. Essa falta de adaptabilidade lhe provoca uma tendência a refugiar­ se em seus hábitos e a evitar qualquer fator de mu­dança. Esse déficit é citado por numerosos autores no quadro da síndrome psico-orgânica.

b. Os distúrbios do raciocínio

O paciente tem uma capacidade reduzida de ordenar, com o auxílio de conceitos, uma construção lógica relacionada com um fim, graças a técnicas intelectuais e verbais. Esse déficit parece bastante precoce no orgânico. Tal como ocorre com a aquisição, entretanto, as capacidades de raciocínio do indivíduo podem ser diminuídas por fato­res de ordem puramente afetiva (falta de atenção, de motivação, ansiedade etc.).

c. Os distúrbios do julgamento

São observados pela maior parte dos autores a propósito da síndrome psico-orgânica.

Eles nos parecem constituir um sintoma fundamental, devido à sua freqüência e à diversidade de suas manifesta­ções, que podem às vezes perturbar o diagnóstico. Co­mo sublinha o mestre A. Porot, trata-se, em psiquiatria, de uma noção bastante ampla e um tanto imprecisa, que se aplica à qualidade de qualquer atividade inte­lectual, apreciada sob o ângulo da razão. Meu ex-professor Henri Ey define o julgamento como "o conjunto de valores ló­gicos ou de realidade atribuídos pelo sujeito a uma situação, a um acontecimento, a um conjunto de circunstâncias, a uma opinião e, notadamente, à sua (autocrítica)".

Convém distinguir as carências de julgamento próprias dos estados orgânicos da falsidade e dos des­vios de julgamento que encontramos em diferentes distúrbios afetivos. As carências de julgamento, fre­qüentemente precoces nas síndromes psico-orgânicas, nem sempre são fáceis de se reconhecer. Podem tradu­zir-se por: uma ausência de consciência do caráter mórbido dos distúrbios do psiquismo e do comporta­mento; uma incoerência do pensamento, que perde sua lógica: os discursos do indivíduo apresentam contra­dições, enunciados inadequados, deslocados, sem con­tinuidade, e respostas descabidas, sem relação com a pergunta formulada. O distúrbio do julgamento pode igualmente acarretar uma apreciação errônea de cer­tos fatos reais, aos quais o indivíduo atribui uma signifi­cação que não têm e que às vezes é difícil de distin­guir de uma interpretação delirante; uma redução dos valores éticos, com descortesia, embotamento da delicadeza e do humor, trivialidade, impropriedade, im­pulsos, agressivos ou sexuais, contrastando com o que o indivíduo era anteriormente; uma diminuição do sentido das barreiras sociais e das normas: atos absur­dos ou médico-legais, inatividade ou turbulência.

Essa carência de julgamento deve ser diferencia­da da falsidade, dos desvios de julgamento, que se encon­tra em certos distúrbios afetivos, notadamente de tipo psicótico; o julgamento, neste último caso, fica submetido a uma polarização afetiva e, desse modo, torna-se pessoal e passional, em vez de lógico e social. Na prática, todavia, a distinção entre a falta de julga­mento no orgânico, e seu desregramento no psicóti­co nem sempre é fácil, e um estado orgânico pode fa­zer evocar, erroneamente um estado psicótico, devido à má apreensão do real pelo indivíduo e a sua má adap­tação a certas situações, sobretudo no início do ata­que orgânico, em que as reações afetivas são ricas e podem ser percebidas como a causa dessa disfunção do julgamento.

G. Distúrbios da imaginação

Ao lado da pobreza imaginativa dos indivíduos deterio­rados, somente vou assinalar a fabulação, que, no orgânico, é freqüentemente pobre; repleta de repetições, mistura de fatos errôneos e lembranças es­parsas.

H. Prejuízos às funções instrumentais

São especificamente orgânicos. Comportam-se além da afasia já citada, as diferentes apraxias e agnosias, ou a "apraxognosia" (desorganização da habilidade), como propõem J. Barbizet e Ph. Duizabo. Esquematicamente, podemos distinguir aqueles a que estão subjacentes lesões têmporo- parietoccipitais di­reitas, com distúrbios da habilidade e do saber-olhar (agnosia visual-espacial) por alteração das relações do indivíduo com o espaço que o cerca, e aqueles a que es­tão subjacentes lesões têmporo-parietoccipitais es­querdas, com distúrbios da habilidade em diferentes atividades, por perda de seu valor semântico e de sua compreensão conceitual (distúrbio da utilização dos objetos, dos gestos com fins relacionais etc.).

A patologia, além disso, ensina-nos a importân­cia do cruzamento têmporo-occipital direito na representação de nosso próprio corpo, podendo ser descri­tos diferentes distúrbios do esquema corporal resul­tantes de um dano nessa área: modificação da imagem corporal, com sensação de deformação das propor­ções anatômicas; perda do esquema corporal, na maioria das vezes hemi-assomatognosia (desconhecimento de metade do seu corpo, associada com uma anosognosia – desconhecimento de estar doente – na síndrome de Anton-Babinski).

A freqüência dos sinais neurológicos associa­dos contribui para o diagnóstico desses distúrbios, que, na maioria dos casos, diferenciam-se facilmen­te do sentimento xenopático de despossessão ou de transformação corporal de certos esquizofrênicos, ainda que verdadeiros delírios hipocondríacos tenham sido descritos a propósito de tais lesões orgânicas.

Cabe notar, enfim, que as lesões retro-rolândicas direitas podem ser responsáveis por um distúrbio do reconhecimento das fisionomias (prosopo-agnosia) que, para alguns autores, está na base de uma elaboração delirante, tal como a descreveu Capgras (ver nosso artigo sobre Delírio dos Sósias).

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