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Que culpa tem a mãe?

O destinatário do texto abaixo não é você, profissional da psicologia, mas os seus amigos e parentes. Por favor, distribua-o entre eles.

Quero deixar bem claro, logo de início, que o texto a seguir pretende apenas introduzir certas idéias e iniciar uma discussão, não esgotar o assunto nem apresentá-lo por inteiro.

Escrevi estas linhas depois de ler a carta de um bem intencionado advogado em resposta às igualmente bem intencionadas palavras de uma historiadora sobre as mães do casal envolvido na morte da menina Isabella. Li ambos os textos e decidi que era preciso, neste momento, ir além das boas intenções. Nós psicólogos, profissionais que trabalham todo dia com essas questões, não podemos agir como se não tivéssemos nada a ver com discussões que ocorrem fora dos nossos consultórios. Temos a ver sim, e muito, e vários dentre nossos colegas, mais ou menos famosos, já se manifestaram, com maior ou menor propriedade. A psicologia clínica é, por definição, a disciplina que mais tem a dizer sobre casos como esse, e gostaria de dar a minha contribuição a respeito, agora em relação à formação psicológica do casal envolvido. No texto anterior falei sobre a comoção popular em seguida ao que aconteceu. Agora gostaria de abordar as origens de situações como esta. Pretendo, assim que receber licença dos autores, reproduzir ao final tanto as palavras da historiadora quanto a resposta do advogado acima mencionados. E repito: o que digo abaixo é apenas uma tentativa de iniciar um debate, e não esgota, de modo algum, qualquer dos aspectos do assunto. Há infinitas sutilezas cercando cada uma das idéias abaixo apresentadas, e ficarei contente em responder a quaisquer perguntas a respeito das mesmas.

É velha a querela sobre a culpa das mães na neurose dos filhos. Woody Allen é, nesse aspecto, o grande teórico da culpa materna. No mínimo, o mais famoso.
A mãe não é culpada pelas besteiras dos filhos. Ao menos não sempre. Às vezes é culpada sim, mas nesses casos é muito mais que culpada: é monstruosa mesmo. Mães que emocionalmente matam os filhos há muitas por aí. Mas seria burro dizer que elas são ‘culpadas’. Teríamos que acusá-las de modo muito mais duro e muito mais extenso.

Em termos psicológicos as mães têm, sobre os filhos pequenos, a mesma influência gigantesca que tinham fisicamente sobre o feto em suas entranhas: muitas doenças da mãe são transmitidas ao feto, a AIDS sendo apenas uma delas. No entanto, dizer que elas são ‘culpadas’ disso é errar redondamente o alvo. Se uma mulher grávida morre ou se arrebenta num acidente e o feto sofre conseqüências, isso não faz dela ‘culpada’. Mães que ficam doentes durante a gravidez só muito raramente contraíram a doença por irresponsabilidade ou por auto-destruição. Nesses últimos casos, sim, podemos dizer que são ‘culpadas’, mas esses são, felizmente, casos muito raros.

O que mais acontece é que certas mães sofreram danos ao seu desenvolvimento emocional durante a sua própria infância, e não estavam em condições de criar bebês mais saudáveis psicologicamente do que elas próprias. Nesses casos não se pode falar de ‘culpa’ da mãe. O que podemos é falar de responsabilidade, porque um ser humano geralmente tem (no mínimo) certa consciência de sua dificuldade emocional, e poderia ter (ao menos nos últimos 50 anos) pedido ajuda, ou tratado de evitar filhos. Sabemos, no entanto, que isto seria pedir muito a pessoas que, emocionalmente pobres, imaginavam que o casamento e o nascimento de filhos poderiam redimi-las de suas carências. Certamente a maioria esmagadora dessas pessoas descobriu, cedo ou tarde, que isto não aconteceria, mas ‘cedo ou tarde’ era tarde demais, porque o casamento se consumou e os filhos nasceram, e elas tiveram que se virar com o sabiam e com o que podiam.

Não se pode evitar a idéia de que essas pessoas, embora tenham produzido verdadeiros desastres, fizeram o melhor que podiam para criar os filhos, e se melhor não fizeram, era porque realmente não podiam. E devemos acrescentar que nem sempre tiveram, ou melhor, quase nunca tiveram, consciência do que estavam fazendo de errado. Filhos nasciam e nascem, portanto, de pais e mães incapazes de criá-los direito por melhor que tentassem e tentem. É que, do ponto de vista psicológico, só há muito poucas décadas tornou-se possível entender o que, em matéria de criação de filhos, é certo ou é errado.

A humanidade chafurdou durante milênios no lodaçal da briga entre o Bem e o Mal. Cada sociedade delineava uma fronteira entre as duas coisas, mas essa fronteira nem sempre ficava clara para todos. Além do mais, hoje se sabe, graças à genial bagunça da pós-modernidade, que tal fronteira na verdade não existe, que cada caso é um caso, e o que bom aqui e agora pode não ser nada bom daqui a pouco e ali adiante.

O Bem e o Mal, em termos psicológicos, sofrem ainda de um outro problema: O que é bom numa idade não é bom em outra. Disciplina e comedimento, por exemplo, são ótimos depois dos vinte anos, mas dali para trás são tão piores quanto mais cedo começam a ser impostos. Mas isso só se tornou claro há poucas décadas, de modo que toda mãe com mais de trinta anos de idade aprendeu do jeito antigo, ou seja: O bom comportamento é o melhor que o ser humano tem para apresentar-se à sociedade, e quanto mais cedo ele o aprender, melhor.

Infelizmente não é nada disso. As bases da estrutura emocional de uma pessoa se consolidam nos dois ou três primeiros anos de sua vida, e há uma diferença radical, trágica, entre aqueles que aprenderam a se comportar bem nessa época e aqueles que só o fizeram um tanto mais tarde. Os primeiros aprenderam, na verdade, a imitar um bom comportamento, enquanto os segundos tiveram a sorte de entender – como se diz, de dentro para fora – que os atos têm conseqüências e que é melhor não fazer coisas que prejudiquem ou magoem os demais. No primeiro caso, essa aprendizagem gerou um desejo oculto de liberdade total, que um dia e em certas circunstâncias poderá eclodir como um vulcão de tirania ou violência, e no segundo caso esse desejo simplesmente é deixado de lado, como um sonho de infância que não importa mais.

É assim que se explica por que tantas crianças tão ‘boazinhas’ um dia se revelam grandes canalhas, e por que tantas outras, verdadeiros ‘capetinhas’ na infância, acabam se tornando gente boa e cidadãos responsáveis e conscientes.

As mães que trataram de ‘educar’ os filhos desde cedo muitas vezes o fizeram para que eles não fossem como elas: Não fossem ressentidos ou inseguros como elas, não se sentissem inadequados ou rejeitados como elas, e assim por diante. (Claro que tudo isso se refere também aos pais. Estou apenas resumindo as explicações). Já as mães que toleraram certa desordem nos primeiros anos e certa ‘molecagem’ nos anos seguintes deixaram em seus filhos a sensação muito forte de serem realmente amados, permitindo-lhes crescer sentindo-se felizes em serem quem são e em ter os pais que têm, e com isso partiram para a vida adulta com a convicção de que a humanidade vale a pena – e a vida também. (Esse ‘toleraram’ da frase anterior não significa ‘permitiram’: significa apenas ‘castigaram com a suavidade ou a severidade próprias à idade da criança naquele momento’.)

Concluindo: Quanto mais a mãe, com as melhores intenções, e por se sentir mal enquanto ser humano (‘culpa’, então, dos seus pais, em primeiro lugar) trata de ‘educar’ os filhos logo de saída, pior é o resultado. Como dizer que tal mãe seja ‘culpada’ pelas conseqüências? É um grande erro julgá-la dessa forma.
Isso, porém, não resolve o problema. Não será dando de ombros e assumindo a impotência que iremos ‘criar’ mães capazes de criar filhos melhores. O que se pode fazer é distribuir a riqueza: As mães que, de uns trinta anos para cá, entenderam que o bem dos filhos não vem da bronca e da ‘educação’ e sim da compreensão, do apoio e da colocação sábia de limites numa época em que a criança, sentindo-se em primeiro lugar amada e segura, já pode entender o significado do ‘não’, porque primeiro entendeu o ‘sim’, descobriram esse ‘método’ de criação de filhos ou por intuição (por terem sido tratadas de modo semelhante pelos próprios pais), ou por ter tido acesso a informações corretas a esse respeito. No primeiro caso, trata-se de pessoas afortunadas que nasceram em famílias emocionalmente saudáveis. No segundo caso, esse conhecimento veio de fontes culturais das quais elas tomaram conhecimento.

‘Distribuição da riqueza’, aqui, significa então espalhar os conhecimentos sobre o desenvolvimento emocional infantil para muitas mais pessoas, tanto mulheres quanto homens, para que, mesmo não tendo tido pais tão bons, ao menos entendam que certas coisas são prejudiciais e certas outras não, e tenham ao menos a chance de rever seus atos em relação aos filhos e consertar certos gestos que poderiam prejudicá-los. Quando os pais de uma criança não são demasiado doentes para entender certas coisas, será de muito proveito informá-los a respeito. Às vezes é por pura pressão do seu meio ambiente que alguns pais e mães agem como agem, e se sentiriam muito aliviados se recebessem de alguém a ‘licença’ de agirem de forma mais cuidadosa e mais sensível. A sensibilidade nem sempre morre, numa pessoa: às vezes fica apenas escondida, com vergonha de se manifestar.

Por isso, em vez de condenar mães de ‘filhos desnaturados’, como se elas próprias o fossem, ou absolver os pais dos desastres provocados pelos filhos, como se eles pouco ou nada tivessem com isso, é preciso informar, aconselhar, conversar, distribuir essa riqueza, como eu disse antes, uma riqueza infinita que está ao alcance de quem a desejar, mas que infelizmente tem sido muito pouco divulgada.

Culpa dos psicólogos, então? Não, culpa de uma sociedade onde a psicologia ainda é vista como um tipo de ‘lepra’ da qual é melhor manter-se afastado. E quem é o culpado disso? Ninguém. A cultura é essa, e cabe lutar para que mude, ao menos nesse aspecto.

Todos aqueles que se indignam com certos atos cometidos (ou melhor, perpetrados) por gente que trata mal os filhos, ou por filhos que tratam mal os pais, deveriam engajar-se nessa luta: Só quando essa riqueza começar a ser distribuída não apenas por psicólogos é que alguma coisa começará a funcionar melhor em nossa sociedade. Os cidadãos conscientes e preocupados, portanto, estão convocados a se mexer nesse sentido. Os psicólogos (como eu, por exemplo), podem dar as informações. Mas espalhá-las no seio do povo é tarefa de todos.

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