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Escola Suíça de Psiquiatria – parte III

(continuação)

2. Os Distúrbios da Vigilância e da Consciência

Constantes e fundamentais na síndrome psico-orgâ­nica aguda de K. Bonhoeffer, esses distúrbios são ape­nas transitórios e, freqüentemente, estão em segundo plano na síndrome psico-orgânica crônica. Nem por isso deixam de ser um elemento importante nessa sín­drome, e são assinalados pela maior parte dos autores. Esquematicamente, podemos dis­tinguir dentre esses distúrbios a confusão mental, tal como a descreveram Chaslin e Régis, e outros distúr­bios da consciência sem alteração acentuada da vigi­lância, tal como os estados oniróides.

A. A confusão mental

Associa, classicamente, a obnubilação da consciência, a desorientação temporoespacial e a experiência deli­rante e alucinatória, sobretudo visual: o onirismo.

Episódios confusionais mais ou menos intensos e tran­sitórios podem marcar a evolução da síndrome psico-­orgânica e traduzir-se por um recrudescimento dos distúrbios cognitivos e perceptivos, que podem ser tomados como sinais de deterioração (por decréscimo da eficiência intelectual) ou de psicose (pelos distúr­bios do pensamento induzidos pelo estado de obnubi­lação, tais como, por exemplo, as respostas inadap­tadas e o relaxamento das associações de idéias, ou devido a distúrbios perceptivos induzidos pelo decréscimo do nível de vigilância).

B. Os estados oniróides

São estados de subconfusão, com sentimentos de des­realização, estranheza do ambiente e da situação, ele­mentos de despersonalização e alucinações diversas. Descritos principalmente na síndrome psico-orgânica aguda secundária à infecção-neurotóxica, são também encontrados no quadro da síndrome psico-orgânica crô­nica. Nós os aproximaríamos dos estados crepuscula­res epiléticos ou "estados de sonho" (dreamy states):

– estados oniróides paroxísticos por lesão do lobo temporal.
Esses estados oniróides se encontram com igual freqüência sob o título de episódios férteis, notada­mente de primoinvasão esquizofrênica; e, embora o contexto psiquiátrico permita amiúde diferenciar os estados oniróides orgânicos e psicóticos, esse fato clí­nico levou certos autores a integrarem na síndrome psico-orgânica estados a que denominam paranóides, esquizofreniformes ou decididamente esquizofrêni­cos, como veremos no parágrafo dedicado aos distúr­bios afetivos.

3. Os Distúrbios Afetivos e os Distúrbios da Personalidade

A presença às vezes preponderante de distúrbios afe­tivos, em particular nas formas de início de organici­dade cerebral, constitui um dos aspectos clínicos mais interessantes, porém também mais controvertidos, da própria noção de síndrome psico-orgânica crônica.

Assim, a organicidade cerebral parece poder perturbar no ser humano, às vezes de maneira preponde­rante, sua vida afetiva, seu caráter e sua própria per­sonalidade. A pertença dos distúrbios do caráter e da personalidade à síndrome psico-orgânica foi sempre a questão mais fundamental: poderemos ligar – através de vínculos que têm, em maior ou menor grau, um caráter de correlação tendendo à causalidade – a organicidade cerebral e os diversos distúrbios afetivos que expressam uma alte­ração mais ou menos profunda da personalidade? A resposta a essa pergunta varia amplamente, supomos, segundo as posições teóricas adotadas pelos autores, particularmente no que concerne à importância que atribuem aos fatores orgânicos na gênese dos transtornos mentais.

Certos autores só conservam como distúrbios afetivos próprios dessa síndrome os transtornos rela­tivamente elementares, como os do humor, da emoti­vidade e do interesse. Para eles, os distúrbios do caráter e da personali­dade, quando existem, dependem muito mais direta­mente de fatores pré-mórbidos de personalidade que do processo lesional cerebral, cada ser reagindo a ele com seus próprios traços de personalidade. Contu­do, podemos pensar que essa concepção é demasiada­mente restritiva. Como sublinham outros autores, ela só descreve os quadros clínicos próprios das lesões graves, não deixando lugar para as manifestações pre­coces e discretas da síndrome psico-orgânica, sob a forma de distúrbios afetivos, às vezes muito difíceis de diferenciar dos distúrbios ditos funcionais, e cujo desconhecimento pode retardar significativamente o diagnóstico de uma lesão orgânica cerebral.

Outros autores, sem dúvida mais numerosos, adotam uma concepção mais "extensa" da síndrome psico-orgânica e ligam a ela os mais diversos distúr­bios psíquicos (obsessão, conversão, hipocondria, in­terpretações delirantes, alucinações), correndo então o risco de fazer com que a síndrome perca toda a sua especificidade descrita pela Escola Suíça.
Mais adiante, analisaremos, no quadro de nossa discussão clínica, os dados desse debate fundamental, porém, para retomar a nossa descrição semiológica da síndrome psico-orgânica, descreveremos, o conjunto dos distúrbios afetivos que foram relacionados com ela.

A. Modificações do interesse

Observa-se freqüentemente no orgânico-cerebral um enfraquecimento do interesse, com apatia e abulia (falta de iniciativa, ausência de volição) que pode ir até a indiferença, com perda da tendên­cia a interessar-se pelas pessoas do ambiente e por si mesmo.
Esse desinteresse parece ser um sinal precoce e importante da síndrome psico-orgânica, e foi assinala­do por numerosos autores. Ele pode levar a evocar erroneamente um estado depres­sivo ou psicótico. Comumente encontrado nos dependentes do uso de maconha, que leva à "síndrome amotivacional" pelo comprometimeno tóxico-cerebral.

B. Os distúrbios do humor

São relatados por todos os autores que tratam da sín­drome psico-orgânica. Assim, encontramos no indivíduo orgânico-ce­rebral, amiúde e precocemente, distúrbios do humor de tipo depressivo, com redução da auto-estima e autodepreciação, ou de tipo exaltado, de euforia com tendência megalomaníaca.

Os autores insistiram na freqüente dificuldade de se diagnosticar os distúrbios do humor sintomáticos da organicidade. Assim, da mesma forma que certas de­pressões assumem a aparência de uma deterioração or­gânica, outras depressões de origem orgânica assumem a máscara de uma depressão de tipo psicogenético, e poderíamos estabelecer uma correspondência entre a noção de "depressão mascarada" e a de "deteriora­ção mascarada". Em favor da organicidade, podemos reter: uma labilidade do distúrbio do humor que o contrasta com o caráter freqüentemente suspenso e difuso da depressão neurótica ou endógena; a associação de distúrbios cognitivos, distúrbios da memória e da orientação, em particular, sabendo-se que todas as funções cognitivas podem ter sua eficiência reduzida no estado depressivo.

C. Os distúrbios da emotividade

São freqüentemente observados no paciente orgânico-cerebral:

– Ansiedade e angústia

São relatadas pela maio­ria dos autores como um sinal freqüente na síndro­me psico-orgânica. Esse estado pode ir desde a simples ampliação pejorativa da existência e do futuro até uma experiên­cia de desordem, com ou sem agitação psicomotora, em que o indivíduo tem uma sensação de desorganização de suas forças vitais e de impotência.
Essa ansiedade, todavia, é comum a numerosos distúrbios da psiquiatria e é, portanto, pouco significa­tiva, se tomada isoladamente para o diagnóstico de organicidade cerebral. Entretanto, uma angústia espe­cífica da organicidade foi descrita por K. Goldstein sob a denominação de "reação ca­tastrófica". Trata-se, para esse autor, de um estado de pânico, de desordem, de ansiedade profunda ou de raiva incontrolável, que o orgânico experimenta quan­do se vê confrontado com uma situação que não é imediatamente superável, em particular devido à sua inaptidão para tomar distância e para pensar em ter­mos abstratos. Esse sujeito busca proteger-se desse es­tado doloroso de tensão psíquica através do que K. Goldstein denomina "mecanismos de proteção", para diferenciá-Ios dos mecanismos de defesa neuróticos, como evocaremos mais adiante.

– A anemotividade

A anemotividade ou ina­fetividade deve ser cotejada com o estado de desaten­ção e desinteresse em que se encontram os pacientes muito deteriorados. Por vezes, ela é difícil de distin­guir da indiferença dos esquizofrênicos.

– Distúrbios mais específicos da emotividade
Alguns distúrbios se afiguram mais específicos da or­ganicidade cerebral em início de evolução, tais como:

– – o embotamento afetivo: as reações emocionais são diretas, sem nuanças; o paciente parece pouco sensível, vulgar e sem tato;

– – a superficialidade afetiva: as emoções que de­veriam afetar profundamente o paciente quase não o atingem e parecem lábeis e superficiais;

– – enfim, a insuficiência do controle emocional, com má tolerância à frustração, irritabilidade e, por vezes, explosividade, com reações afetivas bruscas, violentas e descontroladas. Essa falta de controle emocional é indicada por muitos autores como um si­nal ao mesmo tempo freqüente e muito precoce da síndrome psico-orgânica, é a "incontinência afetiva".

D. Os distúrbios do caráter

Descreveram-se na síndrome psico-orgânica tanto uma tendência ao voltar-se para si, em que o indivíduo pro­cura evitar provações, confrontos e mudanças, quan­to uma atitude de fuga na hiperatividade; com fre­qüência, observam-se reações emocionais excessivas, algumas vezes com crises nervosas paroxísticas, super­ficialidade das relações, sugestionabilidade e tendên­cia marcante à somatização, que se pode qualificar como traços "histeróides". Além disso, descreveram-se uma rigidez moral com teimosia, até mesmo para praticar atos de alcance irrisório, é uma meticulosida­de e um sentido de ordem pronunciado, que foram aproximados do caráter obsessivo. Pode-se ainda en­contrar uma atitude diante de outrem feita de des­confiança e suspeita, e uma tendência mais ou menos pronunciada às interpretações e à falsidade do julga­mento, que fazem lembrar o caráter paranóico.

Para muitos autores, trata-se quer de uma simples exacerbação dos traços de cará­ter pré-mórbidos, quer de um verdadeiro transborda­mento patológico do caráter, que sofre então uma autêntica transformação. De qualquer modo, a noção de modificação recente do caráter é tão clássica quan­to essencial para o diagnóstico de organicidade cere­bral em início de evolução.

E. Outros distúrbios psíquicos

Mais raramente, no quadro da síndrome psico-orgâni­ca, descreveram-se obsessões, fobias e fenômenos de conversão.

A hipocondria, ao contrário, parece ser parti­cularmente freqüente e precoce. Apresenta-se sob as­pectos múltiplos: preocupação hipocondríaca única, centralizada em um órgão ou função que o doente acre­dita estar prejudicada; queixas hipocondríacas múlti­plas, concernentes tanto ao estado de saúde do corpo quanto do espírito: com efeito, observam-se freqüen­temente reclamações acerca do funcionamento psí­quico e, em particular, intelectual do paciente, e este experimenta um sentimento geral de indisposição, de mal-estar vital, de modificação física e psíquica, com a impressão de não "mais ser ele mesmo", bastante evocadora da síndrome orgânica. Podemos notar ainda idéias delirantes hipocondríacas com tema de negação, transformação ou possessão.
As interpretações delirantes também foram des­critas. Todos os temas podem ser encontrados (ciúme, megalomania, perseguição, reivindicação etc.).

Para alguns autores, essas in­terpretações não são forçosamente acompanhadas por um distúrbio do julgamento, de tal forma que sejam incoerentes e mal sistematizadas, podendo, ao contrá­rio sobrevir em um contexto de ordem e de clareza do pensamento, no estilo de um delírio paranóico. As­sim eles se opõem a numerosos autores para quem o fato de a síndrome desenvolver-se em um sensório cla­ro é um argumento fundamental em favor da base psicodinâmica dessa síndrome. Também foram descritas ilusões sensoriais. Elas podem ser subtendidas, na síndrome psico-orgânica, por uma alteração da vigilância ou por um distúrbio do julgamento.

As alucinações podem igualmente fazer parte da síndrome psico-orgânica. Sendo amiúde visuais, pelo decréscimo do nível de vigilância, ou por prejuízo do lobo occipital ou temporal, ou das vias ópticas; elas podem também ser cenestésicas, nas lesões parietais; olfativas, gustativas ou auditivas, particularmente no caso de prejuízo do lobo temporal, estreitamente li­gado ao sistema límbico, que parece ser a região mais fértil em sintomas psicossensoriais.

As alucinações das síndromes neurológicas são geralmente elementares e não-estruturadas, mas podem também ser complexas, nos ataques à área têmporo-parietoccipital. Ao lado do caráter estésico ou de sensorialidade que todas possuem em maior ou menor grau, as alucinações de origem orgânica, em particular as temporais, assumem um caráter mnésico, e os elementos temáticos são amiúde tomados de empréstimo às aquisições de me­mória anteriores do indivíduo (fenômeno de rememori­zação alucinatória), ao contrário das alucinações dos delírios, cujo conteúdo parece novo.

Ademais, podemos sublinhar a importância do papel desempenhado, nos estados orgânicos, pelo decréscimo do nível de vigilância, pelo obscurecimento da consciência na gê­nese desses fenômenos alucinatórios, facilitando a in­trusão da vida imaginária em um real corretamente per­cebido em outros aspectos. Não saberíamos entrar no debate que opõe os autores para quem esses fenôme­nos alucinatórios são idênticos aos observados nos delirantes e os autores que estabelecem uma distinção total entre as alucinações "neurológicas" (alucinoses) e as alucinações "psiquiátricas" (alucinações, pp. ditas). Não obstante, podemos distinguir clinicamente, como pro­põem J. Ajuriaguerra e H. Hécaen, dois pólos nos fenômenos alucinatórios: um pólo "neurológico", em que o aspecto perceptivo está em primeiro plano e em que o indivíduo reconhece como próprias as suas percepções ligadas às atividades livres do eu (alucinoses, alucinações oníricas), e um pólo "psiquiátrico" (sem prejulgar a natureza orgânica ou psicogenética da etiologia), em que as modificações instintivo-afetivas parecem inundar o aspecto senso­rial, e em que os fenômenos alucinatórios são conside­rados pelo doente como um fenômeno estranho, xe­nopático, que escapa ao livre jogo de sua atividade mental e decorre de uma atividade externa a ele. Este último critério traduz um aspecto fundamental da desestruturação psicótica – a perda dos limites do eu – e pode ser considerado característico de uma ver­dadeira alucinação.

É a partir desses fenômenos alucinatórios, mui­tas vezes incompletamente analisados, associados com as experiências oniróides já citadas, que alguns autores descreveram estados paranóides e esquizofrênicos na síndrome psico-orgânica. Entretanto, como veremos no capítulo dedicado aos fatores de variação da síndrome psico-orgânica, parece que os estados esquizofrênicos ou pseudo-esquizofrênicos mais bem correlacionados com a organicidade cere­bral são, de fato, formas deficitárias de tipo hebefre­no-catatônico.

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