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O "Corpo Psíquico" em Henri Ey

No modelo órgano-dinâmico o processo psicopatológico é a desorganização da ordem psíquica, isto é, das estruturas que compõem o que Henri Ey denomina Corpo Psíquico. Neste artigo tento refletir sobre a existência real de uma atividade psíquica organizada, da qual não se tem consciência, e que é a possibilidade de todos os atos psíquicos conscientes.

Com a denominação de "corpo psíquico", Henri Ey se refere a esta organização caracterizada por atividades funcionais, cuja estruturação desaparece "escondida" pela sua própria atividade. Nossa consciência é inconsciente, não somente do inconsciente dinâmico, no sentido freudiano, mas também, e de modo mais radical, de suas próprias operações.

Quando esta atividade normal caracterizada pela variabilidade se desintegra, é que aparece o que se "esconde" em sua integridade. Pondo ordem na desordem destas aparições, que são os fenômenos psicopatológicos, pode apreender-se o que Ey chama de "estruturas ou invariantes formais do psiquismo". Esta possibilidade que nasce da observação se integra com a intuição de que o psiquismo, organizado ou desorganizado, é sempre uma estrutura arquitetônica.

Desenvolvendo esta intuição ao longo de um permanente trabalho clínico, acrescido por árduas reflexões metafísicas, Ey desenvolveu um paradigma, a que denominou: "Modelo Órgano-Dinâmico".

Este modelo pode ser apresentado muito esquematicamente assinalando suas teses essenciais, e o modo como se articulam entre si. (EY, 1975)

A tese fundamental implica, em primeiro lugar, que o organismo psíquico é uma estrutura hierarquizada, "planejada" e "projetada", e em segundo lugar que esta organização contém virtualmente a desorganização. O psiquismo é essencialmente uma estrutura vulnerável; poderia dizer-se, consonante à teoria geral dos sistemas, que é um sistema em constante tendência ao desequilíbrio, mas que se mantém equilibrado.

Equilibrado porque as forças que o compõe este sistema: pulsões (inconscientes e automáticas) e as forças de controle se integram de tal modo que não anula o conflito, porque precisamente sua realidade é ser esse conflito. Integrado e superado.

O psiquismo como organização normativa

O problema é que para poder ver em que consiste essa integração e em que ela é normal, necessário se faz uma reflexão. Caso esta reflexão não seja alcançada, os sintomas mentais não podem ver-se no que têm de essencial: ser um déficit nessa organização normativa (EY, 1978).

No plano da vida vegetativa, os sintomas saltam aos olhos do profissional psi, porque, evidentemente, o sangue de uma ferida, o tumor que deforma a anatomia do corpo, não seguem a norma, são anormais.

Qual é a norma no caso do psiquismo?

Para poder compreender que o psiquismo é uma construção estratificada, uma organização normativa e evolutiva, H. Ey recorre a exemplos tradicionais.
Entendendo a vida psíquica como sendo uma vida de relação, Ey pontua que:

a) O estudo das espécies animais evidencia que na evolução vão surgindo formas hierarquizadas de vida de relação; que esta hierarquia implica progressivamente em maior margem de indeterminação com respeito ao meio externo, como também com respeito ao programa genético (maior plasticidade) do meio interno (EY, 1968).

O nível evolutivo das espécies se manifesta, sobretudo, pela possibilidade adaptativa que tem cada indivíduo da espécie. O primeiro dado normativo se obtém da História Natural das espécies, que evidencia que as diferentes formas evolutivas de vida de relação têm um sentido: e este sentido é o de dispor de margens crescentes de indeterminação para conseguir adaptar-se.

b) Os estudos de psicologia genética de Freud na ordem pulsional (desenvolvimento libidinal), e de Piaget na ordem intelectual (níveis operacionais), evidenciam outro dado normativo: que as formas psíquicas são evolutivas e reais. São evolutivas, vale dizer, supõem a integração dos níveis prévios, que não desaparecem, nos níveis atuais, que se convertem por essa razão em níveis progressivos de indeterminação. São reais. Até que essa realidade não se tenha constituído é difícil falar de patologia psíquica. Os clínicos psi da infância sabem a dificuldade que existe em distinguir as condutas como patológicas nos primeiros meses de vida, e como esta dificuldade irá desaparecendo, à medida que, constituída a realidade psíquica, é possível, então, reconhecer formas que são anormais.

c) As variações circadianas de adaptabilidade à realidade. A vida psíquica está organizada em ciclos de sono-vigília, e ambas as organizações são essenciais à sua normalidade, que consiste precisamente em poder passar de uma a outra com facilidade. Mas estas duas estruturas são de diferente valor em relação à existência do indivíduo, porque só se consegue existir e ter uma história caso se atinja o pensamento vigil. Isso não significa que não seja uma necessidade absoluta do dormir/sonhar, ou crer que a vigília é o reino da razão e que o sonhar é o reino do desejo, senão reconhecer um terceiro dado da normatividade do psiquismo: para existir e coexistir há que estar desperto. Esta realidade da vigília supõe uma complexa e estratificada organização que se põe de pé em segundos em cada despertar, e que requer anos de desenvolvimento para chegar ao nível que lhe torna possível sua máxima operatividade.

Vale dizer, que o psiquismo aparece como uma organização evolutiva, estratificada e real, que agrega à vida vegetativa de cada indivíduo a possibilidade de existir.

O psiquismo apreendido através da patologia

Henri Ey guiado pelas diferentes enfermidades mentais considera que o psiquismo em sua ontogenia progressiva, se organiza com a articulação de duas estruturas: o campo da consciência (ter consciência do atual), e a organização da personalidade (ser alguém, único e si-mesmo) (EY, 1954).

1. As psicoses agudas (mania, melancolia, psicoses delirantes agudas e a confusão mental) desvelam a estrutura do campo da consciência. A consciência faz sua aparição em sua forma mais primitiva quando o bebê como sujeito desejante, se enfrenta com um objeto desejável. Enquanto existe uma zona de indeterminação entre estímulo e resposta, pode-se dizer que a conduta é instintiva e, que o primeiro nível de consciência que se constitui é o de uma consciência, que se abre em campo, que "olha", sendo esta "presença", apesar de instantânea e sem ordem, já é uma orientação do campo existencial.

O segundo ato de organização da experiência atual (o segundo modo de atualidade) consiste em uma ordenação do espaço existencial. O mundo de objetos e de desejos começa a confrontar o mundo do subjetivo com o mundo do objetivo. O campo da consciência adquire assim, a dimensão da ''representação'', configurando-se um espaço psíquico interno (não-geográfico, mas existencial), constituído por áreas heterogêneas, onde cada uma tem diferentes componentes de subjetividade e de objetividade. Com o nível de atualidade, que se constitui neste segundo passo, para que um acontecimento ingresse ao campo de minhas vivências, terá que fazê-lo submetendo-se a esta heterogeneidade, que é a representação.

Mas à consciência, mera apresentação ou re-apresentação, lhe falta ainda "estar presente". O bebê que estabeleceu em seu interior uma ordem espacial tem agora que liberar-se também da instantaneidade, impondo ao fluxo de acontecimentos uma ordem de temporalidade. Deve extrair o presente da sucessão de acontecimentos e deve poder "sustentá-lo", torná-los um "para fora" ("un maintenant"). Consegue isso quando pode equilibrar as forças do passado e do futuro que se disputam no momento presente. Isto implica um novo controle do inconsciente que sendo atemporal, pressiona, tentando arrastar o presente, à fatalidade do passado ou à onipotência do futuro.

Esses três níveis organizacionais da consciência: de abertura ao mundo (presença), de ordenamento do espaço (representação) e de controle do afeto (presente) que constituem sua infra-estrutura ou estrutura basal, resultam da integração do inconsciente e o consciente em uma relação permanentemente problemática. Atualizar é pôr ordem e esta ordem é posta contra a desordem do inconsciente. A estruturação do campo da consciência implica o inconsciente, mas também sua exclusão: o inconsciente está sempre presente, mas como "o não percebido" e que, como tal, não pode ser percebido…, mas que influi e ameaça sempre a ordem do presente atual.

2. As psicoses crônicas e as neuroses, as oligofrenias e as demências desvelam a ordem da personalidade. O psiquismo é mais que o armado para um acontecimento dentro de um campo de consciência, porque é também a experiência de ser alguém a quem o acontecimento afeta. Esta consciência de ser alguém, único e si-mesmo, é uma realidade evolutiva, isto é, implica um desenvolvimento genético.

Quando o bebê toma a perspectiva sobre si mesmo, conquista um primeiro grau de liberdade e inicia o desenvolvimento de seu Ego. Este processo de desprendimento vai sucedendo em sua "memória", dando vida ao objeto mais além do tempo presente. À medida que aparece o sentido das relações, os objetos deixam de ser furtivos. Esse sentido, essas significações são o essencial do Ego que constituindo-se, preserva a permanência dessas relações. Assim que o Ego começa a enfrentar-se com o Outro aparece a afirmação do "meu". Essas primeiras afirmações do meu se referem ao próprio corpo. Corpo que se faz à medida que posso refletir sobre o si-mesmo, como objeto de minha própria subjetividade. O que no meu corpo vai sendo descoberto como "conteúdo" de mim mesmo, me torna consciente de ser o "continente" que transcende a situação atual. Assim o bebê se torna sujeito de seu próprio saber com o que se desprende de sua imediatez para projetar-se em um projeto histórico.

O bebê logo constitui seu mundo: suas necessidades, suas emoções, suas idéias lhe proporcionam uma representação, um modelo de seu mundo; de um mundo que sempre vai estar radicalmente unido (como as suas raízes), aos seus desejos, sentimentos, e crenças.

Finalmente, o bebê conquista sua identidade e constitui sua ordem moral. Ser alguém com qualidades, defeitos e um ideal de si.

Estas estruturas, o campo da atualidade, e da personalidade se articulam entre si. O Ego como movimento horizontal para um ideal tem sua história e valores permanentes à sua disposição, todo o qual está presente em cada momento de sua existência, em seu campo de consciência, em seus movimentos verticais para a realidade.

O Ego é a consciência de si mesmo em relação ao campo onde a experiência é vivida. Atuamos nossa história, ao mesmo tempo, que a construímos. A infra-estrutura do campo possibilita a manifestação do Ego, de sua intencionalidade, que toma posse desse campo através de suas operações facultativas, por exemplo, a atitude atenta.

Ser consciente (''to be conscious" e não "a conscious being") é viver uma experiência em sua atualidade, e também é dirigir a existência através de seus sucessivos campos.
Ambas as estruturas mantêm uma dupla e permanente dependência:

a) uma dependência genética da personalidade com respeito ao campo atual. O Ego para construir-se necessita de campos de consciência, mais ou menos, plenos. Toda alteração de campo é em certo sentido uma alteração da consciência de si mesmo; por isso, é que uma psicose aguda vivida com um Ego alterado implica uma interrupção em sua continuidade, o que pode causar danos irreparáveis, e, portanto, a possibilidade de reorganização como transtorno crônico de uma alteração aguda.

b) uma dependência operacional do campo com respeito à personalidade. O grau de plenitude de cada campo atual está determinado pela história pessoal e variará de acordo a esta constituição.

Qual lugar ocupa o inconsciente neste "corpo psíquico"?

No "corpo psíquico", o inconsciente:

1. "Está por todos os lados" – porque não é pensável nenhum de seus movimentos conscientes sem essa realidade pulsional que exige realização e aparece só simbolicamente;

2. Mas, "não está em lugar algum" se com isto se quer fazer referência a um espaço, ou a uma separação radical com respeito à consciência, pois somente organizando-se esta, é que o inconsciente pode conquistar autonomia.

O "Corpo Psíquico" contém a desorganização

Por outro lado, a organização psíquica que é o "corpo psíquico" contém a desorganização, no duplo sentido: de que a enfermidade mental é virtual na organização (in-tegração) e também de que a controla, no sentido de que a organização é essencialmente neguentrópica, "anti-enfermidade mental".

O conflito constitui uma dialética incessante onde quem consigna o sentido à existência é a atividade consciente. Não como se fora uma instância pontífice, mas como o que é: a "parte" deste ser bipolar que torna possível a existência.

A noção de integração implica o sentido de construção, de sobrepor-se do inferior que é mantido, mas subordinado. Uma ordem que impõe sua lei de organização às instâncias inferiores que controla. O valor, a eficácia de toda integração é sempre um poder de diferenciação, de eleição, de inibição. É a direção de seu movimento, é a corrente de "sentido" que circula entre ambos os pólos: partindo sempre do mais ao menos automático, para tornar possível, assim, ao indivíduo, aqueles movimentos que lhe permitam estar de acordo com as exigências de sua realidade.

Um embrião diferente do embrião somático

Este "corpo psíquico" é um embrião diferente do embrião somático que desaparece à medida que evolui. O embrião psíquico que se desenvolve no tempo, não pode abandonar suas etapas embrionárias que são a possibilidade de seus atos atuais.

O corpo psíquico é, sobretudo, uma organização que não cessa em sua auto-criação, porque constitui um sistema aberto, sem limite superior.

Outras teses do Modelo Órgano-Dinâmico de Henri Ey

Referem-se à enfermidade mental.

1. Toda enfermidade mental é uma desorganização da ordem psíquica, do "corpo psíquico", e a substância psicopatológica de cada nível evolutivo é formada pelos efeitos desta desorganização. A desorganização atualiza a desordem virtual. Quando o corpo psíquico se desorganiza, invertem-se as relações normais e os movimentos psíquicos se tornam heterogêneos comparados com os movimentos normais. Esta heterogeneidade é o que exige que os movimentos patológicos sejam analisados estruturalmente. A desorganização também atualiza as instâncias psíquicas pulsionais normalmente controladas que aparecem, assim, transmutadas simbolicamente. Este modo de apresentar-se é o que exige uma interpretação analítica, para que possa ouvir-se o desejo, o conteúdo latente.

2. As diferentes enfermidades mentais devem ser classificadas em função das estruturas psíquicas que são vulnerabilizadas. Este modo natural de classificação afirma claramente que as síndromes mentais não podem ser classificadas por critérios extrínsecos à sua natureza, por exemplo, pelos fatores etiológicos. E, também afirma que as espécies assim distinguíveis como "fisionomias evolutivas" não são entidades estáticas e irreversíveis, mas sim, que refletem certa constância, que é o fundamento do diagnóstico e das possibilidades prognósticas e terapêuticas.

Bibliografia consultada

Ey, Henri – Études psychiatriques. III. Structure des psychoses aigues et déstructuration de Ia consciencie. Paris: Desclée de Brouwer, Ét. n. 27, pp. 653-755, 1954.

____ – EI concepto de "psiquiatria animal" (dificultades y interés de su problemática). Em: Brion, A.-B., Ey H., Psiquiatria animal. México: Ed.Siglo XXI, 1968.

____ – Des idées de Jackson à un modéle organo-dynamique en psychiatrie. Toulouse: Ed. E. Privat, 1975.

____ – Défense et iIIustration de Ia psychiatrie (Ia réalité de Ia maladie mentale). Paris: Ed.Masson, 1978.

Mais apontamentos dos cursos dados por Henri Ey durante minha estada em seu Hospital Bonneval em Paris.

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