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A injusta omissão para com a Cibernética

A cibernética de Wiener

A "cibernética" difundiu-se na Europa através do livro de Norbert Wiener, Cybernetics, editado em Paris em 1948. Reparem que a Filosofia da Mente somente é inaugurada em 1949 com a publicação do livro de Gilbert Ryle, The concept of mind, e que os programas da Ciência da Computação, da Inteligência Artificial e da Robótica irão surgir após o artigo de Alan Turing, em 1950, em que ele levanta a questão das máquinas pensarem. Não se encontra em nenhum dos trabalhos iniciais dos movimentos que acabo de referir alguma menção à Cibernética e ao seu criador Norbert Wiener.

A Cibernética é definida como "todo o campo da teoria do comando e da comunicação, tanto na máquina como no animal". Deve-se notar que a palavra "comando" traduz muito precaria­mente o termo "controle", que figura no texto original. Aliás, é realmente em torno desta palavra que gravitam as dúvidas e as controvérsias provocadas pelas idéias de Wiener.

Mais de metade da obra de Wiener é consagrada a uma expo­sição das teorias de física matemática, quase todas pouco conhecidas na Europa, e em cujo desenvolvimento N. Wiener e seus discípulos haviam contribuído grandemente. São elas: a mecânica estatís­tica de Gibbs, a teoria das séries temporais – em que a contri­buição do próprio Wiener é particularmente importante – e a teoria dita "da informação", de Shannon. Estas teorias eram acom­panhadas de críticas à mecânica clássica que as faziam aparecer como a forma na qual deveria inevitavelmente ser moldada a futura concepção das máquinas. Elas expressavam-se, ora através de uma linguagem de divulgação, tendo em vista os leitores de certa cultura geral, ora por meio de uma complicada linguagem matemá­tica. Deviam, portanto, atrair os matemáticos, em busca de inter­pretações em termos de física ou de técnicas extraídas de teorias concebidas pela pura abstração, bem como os leitores menos infor­mados, dispostos a confiar em um autor cujos raciocínios lhes eram impenetráveis.

Os capítulos seguintes são destinados à descrição das seme­lhanças existentes entre estas noções e noções referentes à psicologia, à fisiologia, à psiquiatria e à sociologia. O título de cada um dos capítulos diz bem claramente qual é o seu objetivo: "As máquinas de calcular e o sistema nervoso" ; "A Gestalt e os universais"; "A cibernética e a psicopatologia"; "Informação, linguagem e so­ciedade" .

Um tema tão vasto não se expõe em alguns capítulos. Este livro não poderia conter o desenvolvimento "da" teoria do comando e da comunicação "no animal", mas apenas um delineamento dos contornos "do campo inteiro" desta teoria, exemplos mostrando que era racional criar este "campo" e, portanto, a cibernética.


O pensamento cibernético nas ciências exatas
e a construção mecânica
A primeira parte da obra de Wiener propunha como inte­gradas no espírito cibernético: a mecânica estatística, a teoria da informação de Shannon, a teoria da "retroalimentação" (feed-back) em mecânica.

Era agrupar em um mesmo vocábulo doutrinas bem esta­belecidas que, em seus setores respectivos, já haviam sido expe­rimentadas.

Estas teorias haviam tido um desenvolvimento normal através dos esforços de especialistas e, posteriormente, encontrado aplica­ções novas, muitas vezes espetaculares: a pilotagem automática dos aviões, o telecomando de foguetes, a teoria da medida de uma grandeza física, de Denis Gabor e Léon Brillouin.


O
pensamento cibernético nas ciências do ser vivo
Em Cybernetics, percebia-se claramente que as teorias físico-ma­temáticas do começo da obra eram destinadas à explicação tanto dos fenômenos biológicos, psicobiológicos e mesmo psicológicos observados no ser vivo, como dos fenômenos de comportamento social. Na obra, entende-se por explicação através de uma teoria o estabelecimento de analogias entre os seres em observação e os conceitos relacionados com a teoria. Por exemplo:

– Estrutura em circuitos fechados de elementos do sistema nervoso humano e das memórias de certas máquinas de calcular, para concluir que os circuitos do sistema nervoso são a sede da memória;

– Estrutura do assoalho do IV ventrículo do cérebro e de um aparelho próprio a reconhecer a forma das letras quaisquer que sejam o aspecto e as dimensões, para descobrir a maneira pela qual seria criada a noção de "forma" no cérebro (analogia von Bonin – ­Mac Cullogh);

– Curas obtidas por eletrochoques e reparação de máquina de calcular através de impulsos enviados ao acaso, para concluir pela similaridade entre os circuitos de máquinas de calcular e os circuitos do cérebro.

Novas analogias entre mecanismos eletrônicos e estruturas cerebrais foram assinaladas, no decorrer do Congresso de 1951 sobre: "As máquinas de calcular e o pensamento humano". Neste Congresso estavam reunidos quase todos os cientistas, de várias disciplinas, que haviam colaborado com Wiener em sua primeira elaboração da cibernética. Ao mesmo tempo, Mac Cullogh e W. Pitts definiam um sistema de elementos mecânicos capaz de rea­lizar as operações de raciocínio, com um simbolismo muito aproxi­mado ao da teoria matemática das redes elétricas. Mais tarde, Mac Cullogh e seus alunos procuraram determinar experimental­mente se a transmissão nervosa verificava a teoria da informação de Shannon. Ainda, Grey Walter e Ross Ashby construíam, um deles suas "tartarugas", o outro o homeostato, enquanto Mac Kay procurava estender a teoria da informação aos fenômenos psicoló­gicos e Mandelbrot ao estudo da estrutura das linguagens. Final­mente, asssociam-se à cibernética as formas de organização do tra­balho, geralmente conhecidas com o nome de "automação", cujas repercussões sociais são profundas.


O
pensamento cibernético e a metafísica
Certos autores chegaram mesmo a colocar sob a capa da ciber­nética toda argumentação em que algumas semelhanças parciais entre sistemas complexos sugeriam aplicar raciocínios que teriam podido ser válidos em outras circunstâncias, especialmente para analogias entre sistemas mecânicos ou entre sistemas mecânicos e sistemas biológicos.

Foi a noção de retroalimentação que mais freqüentemente possibi­litou esta confusão. A retroalimentação é um conceito bem preciso na técnica da regulagem de máquinas; tendo aplicado a um sistema mecânico certas ações físicas calculadas de modo a obter um efeito desejado e tendo a imperfeição dos cálculos ou das construções ma­teriais permitido obter somente um efeito aproximado, mede-se o desvio entre o efeito desejado e o efeito obtido, calcula-se quais as modificações que devem sofrer as ações físicas aplicadas ao sistema para corrigir este desvio e faz-se atuar o próprio sistema na execução desta correção sobre si mesmo. Pode-se descobrir "retroalimentações" em quase todos os comportamentos, tanto físicos como psicológicos, dos seres vivos.

E chegou-se mesmo a descobrir "retroalimentações" no compor­tamento da divindade (!).


Discordâncias
A introdução da cibernética em disciplinas de todo tipo efe­tuou-se de formas diferentes e não foi sempre aceita sem discussões.

Os engenheiros e principalmente os especialistas em máquinas automáticas encontraram, na primeira parte do livro de Wiener, a confirmação de uma evolução no sentido de maior abstração ao expor a sua técnica e tentaram, ou reduzir a cibernética a uma teoria dos mecanismos automáticos, ou, negando sua originalidade, exigir que se ativesse ao termo clássico de "automatismo". No caso geral, eles também adotaram uma posição semelhante em relação ao termo "automação" .

As opiniões dos biólogos são menos uniformes. A pobreza dos mecanismos produzidos pelo homem em confronto com os que a anatomia descobriu nos seres vivos e a multiplicidade de "retroali­mentações" já caracterizadas na fisiologia dos órgãos vivos fizeram­-nos receber com reservas, quando não com ceticismo, as ofertas que fazia a mecânica abstrata de explicar os fenômenos da vida. Paralelamente, uma interpretação demasiado restrita das idéias de ordem filosófica que se acreditava descobrir na obra de Wiener levou certos biologistas a pensar que os ciberneticistas pretendiam ser o pensamento, em sua totalidade, apenas o resultado do funciona­mento de sistemas mecânicos; e outros biologistas encontraram na cibernética elementos novos para o afirmar. Um antigo debate foi, desta forma, reanimado sob uma terminologia nova e livros inteiros foram escritos para provar, ora por parte da mecânica, ora da psicologia – uma psicologia impregnada de metafísica – que era impossível, construir um mecanismo dotado de imaginação cria­dora.

É bem verdade que a confusão involuntária que se faz, principalmente nas obras de divulgação – às vezes conscientemente, para fins publicitários – entre "servo-mecanismos" e "cérebro mecânico" pode induzir ao erro. Entretanto, outros biólogos cons­truíam modelos mecânicos de certos comportamentos dos seres vivos – comportamentos psicossomáticos como no homeostato de Ross Ashby, comportamentos sociais, como nos animais artificiais de Grey Walter – e colocavam seus trabalhos, de espírito essen­cialmente biológico, sob a égide da cibernética.

Por outro lado, a extensão de comportamentos mecanizáveis ao pensamento puro ou ao pensamento místico, encontrou sempre oposição unânime.

Além disso, os exemplos e os argumentos de Wiener eram colo­cados em dúvida ou refutados uns atrás dos outros. Os neurolo­gistas não puderam repetir as experiências descritas por N. Wiener, e a narração que apresentava a analogia MacCullogh – Von Bonin iria ser considerada apócrifa. A aplicação da teoria da informação à demonstração de que o sistema de numeração binária é o mais vantajoso não conseguia fazer a necessária distinção entre a operação de memorização de uma seqüência de números inteiros, em que o sistema binário permite uma enorme redução do material neces­sário (60 por cento em relação ao sistema decimal), e a operação de simbolização de um número isolado, em que o sistema binário é o menos maleável. Quanto à crítica da mecânica clássica, que teria conduzido principalmente aos brinquedos caracterizados pelos robôs de relojoaria de Vaucanson e seus contemporâneos, ela esfacela-se frente à descoberta feita por Liaigre, na literatura da época, de que Vaucanson construíra seus autômatos para estudos de biologia ­- como o fazem os mais ciberneticistas dos biólogos contemporâneos: Grey Walter, Ross Ashby, Sauvan e outros – e frente à constatação de que as coisas cuja propriedade a maioria de nossos contemporâneos atribuía à cibernética não passavam de grandes bonecos com servo­-mecanismos, como o que conduzia os visitantes através da Feira de Paris, ou o grupo de músicos que há pouco animava o chá das cinco de uma Grande Loja. Para completar, a segunda obra de Wiener sobre a cibernética: The human use of human beings (O uso feito pelo homem dos seres humanos) não trazia a edificação racional que a primeira prometia sem realizar.

O leitor psi curioso ou apaixonado, que se dispuser a ler alguns milhares de obras e artigos escritos até o presente sobre cibernética (não incluindo os artigos aparecidos na grande imprensa, coti­diana ou semanal) deverá, portanto, manter-se em guarda contra os entusiasmos ou as críticas excessivas.


Estudos doutrinários posteriores
Após o Congresso Internacional de Paris, em 1951, em que os fundadores da cibernética vieram apresentar os diversos aspectos da doutrina em via de crescimento e despertaram grandes esperanças, outro Congresso Internacional, em Namur, em 1956, tomou por tema uma vasta consulta para investigar o interesse propiciado pelos problemas aventados. Cerca de 900 congressistas, vindos de mais de vinte nações e que intervieram quase todos nos debates, testemunharam que um modo de pensar particular constituía-se na ocasião, e que o termo "cibernética" seria sua bandeira.

A organização de uma "Associação Internacional de Ciber­nética" sancionou os debates; deram-lhe por objetivo a organização e a coordenação dos estudos de cibernética, dentro do espírito de objetividade que caracteriza as sociedades científicas de todos os países. Cerca de mil membros inscritos em um ano, repartidos por trinta e dois países, dão prova de que a cibernética é considerada coisa séria e de que acreditam em sua utilidade.

Em setembro de 1957, reuniu-se um simpósio em Zurique, sob a presidência de Gonseth, com o objetivo de estudar as relações entre "Cibernética e conhecimento".

Em julho de 1962, outro simpósio de confrontação de teorias tinha lugar em Royaumont, sob o patrocínio da Sociedade de Coló­quios Filosóficos Internacionais e com a colaboração de Associação Internacional de Cibernética, sobre "A informação nas Ciências". Neste encontrava-se N. Wiener, ladeado de cientistas e filósofos de numerosos países.

Finalmente, em 1963, criou-se a "Associação de Pedagogia Cibernética" e a "Sociedade Francesa de Cibernética".

Estes estudos doutrinários mostram a preocupação de pen­sadores do mundo inteiro em definir precisamente a natureza deste ser novo que Norbert Wiener engendrou, há vinte anos, num im­pulso de imaginação criadora. Mostram, também, a vitalidade das idéias ligadas a ele e a preocupação de tirar proveito delas.­

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