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O efeito circular no atendimento clínico individual

Quem já atuou no atendimento de psicologia Clínica, certamente já se deparou com o discurso do paciente em que sempre fala dos relacionamentos familiares, seja este a causa de sua queixa principal ou não. Neste sentido trago através deste artigo a discussão de que, ao fazer terapia individual também não traria efeitos sobre seus familiares ou pessoas de seus relacionamentos. Para isto busco apoio nos conceitos da terapia sistêmica sobre circularidade e um exemplo real de atendimento em minha prática clínica com o intuito apenas de refletirmos sobre os efeitos colaterais do nosso dia-a-dia no trato com nossos clientes de psicologia.
Introdução

O psicoterapeuta que estuda ou já estudou conceitos do atendimento familiar, tende a compreender o cliente de uma forma mais relacional, quando este, traz sua queixa, como uma causa individual.

É comum nos clientes que nos procuram, acreditar que suas dores advêm de suas escolhas não funcionais e não se dão conta de que na verdade seu comportamento está condicionado por outros de sua relação social.(PAPP, 1992, p.49)

Esta afirmação está fundamentada no conceito sistêmico de Circularidade ou Causalidade Circular, ou seja, um evento “A” causa o evento “B”, que por sua vez reforça o evento “A”

Melhor ainda explicando. Uma mãe que critica o filho, quando a avó que não se sente subjugada por sua autoridade , é extremamente permissiva com o neto, protegendo-o e este por sua vez apóia a avó contra a mãe que se torna ainda mais antagônica e crítica com relação ao filho.

Deste modo acredito que a pessoa que procura psicoterapia individual nunca pode ser encarada como alguém com um sintoma ou num processo sintomático, mas sim como um porta voz de um sistema disfuncional.(Zinker, 2001)

A Teoria Geral dos Sistemas veio trazer luz à compreensão do atendimento clínico de casais e de famílias disfuncionais, pois sendo um padrão de relacionamento circular, através desta teoria, o terapeuta vai compreender e indicar à família onde estão seus bloqueios. Esta indicação não é uma coisa determinada hierarquicamente, Terapeuta-Cliente, mas sim construída ao longo de vários encontros com esta família ou casal que nos procura.

O terapeuta atualmente considera os sistemas familiares auto-reguladores em suas homeostases, e propõe, através de técnicas, facilitar a auto-observação dos sistemas por ele atendido, de seus bloqueios funcionais.

Em minha prática clínica chamou-me a atenção o fato que as pessoas sempre traziam, por trás de sua queixa principal,causas circulares no âmbito de sua relação familiar. Até as crianças que atendi, no seu brincar, davam pistas de seus relacionamentos familiares. Isto acontecia mesmo que suas queixas, que na verdade, vinham através de seus responsáveis que as traziam, como a mãe ou a avó, eram de ordem escolares ou alguma forma física de sofrimento.

É claro que se precisa aprofundar mais as pesquisas baseadas nestas observações e neste sentido gostaria de discutir sobre este efeito circular nos atendimentos individuais os quais observei, mas para isto precisamos contextualizar este conceito de circularidade.

Surgimento do conceito de circularidade

O conceito de circularidade surgiu num momento de transição de conceitos da Escola de Milão, quanto aos seus princípios terapêuticos, técnicas e objetivos, onde o terapeuta, em seu trabalho com famílias, deixou de ser um técnico responsável pela “regulação” dos sistemas familiares disfuncionais e passou a ser parte integrante do novo contexto emergido no inter-relacionamento entre ele e a família e o sistema terapêutico.

Os conceitos desenvolvidos no período conhecido como Cibernética de Primeira Ordem influenciaram o modelo de terapia familiar nos primórdios desta prática, supondo que o terapeuta permanecia fora da vida relacional do sistema, buscando a verdade objetiva e mantendo uma posição “desmisturada” da ele. Segundo Esteves de Vasconcellos (1995), o contexto terapêutico se desenvolvia sob a direção do terapeuta para o desenvolvimento. A atividade terapêutica era nitidamente intervencionista, o profissional – como um agente ativo condutor do processo – assumia uma posição hierarquicamente superior no sistema terapêutico e estabelecia um método próprio para cada problema. No dizer dessa autora (ibidem), “a intervenção terapêutica é considerada como uma estratégia, aplicada com vistas à obtenção de certos resultados bem definidos.” (p. 122). A responsabilidade pela condução do processo era do terapeuta, pois ele tinha o “poder” diante do que entendia como realidade familiar.

Ainda nesse período, a noção de circularidade permitia que o terapeuta observasse os integrantes do sistema familiar em um circuito relacional interligado com recursos próprios, composto por padrões comportamentais vivenciados por seus membros. Nesse momento, questionava-se a linearidade dos eventos que ocorriam com uma família, uma vez que a “responsabilidade” do sintoma recaía sobre o sistema em sua cadeia de interação circular, descartando a idéia de que um único membro da família pudesse ser visto como o problemático.

O terapeuta era considerado como um técnico que pontuava os “defeitos” familiares e apontava os recursos para que eles pudessem “regularizar” e funcionar a partir de um padrão mais equilibrado.

Nessa época, segundo Boscolo e Bertrando (1996), a equipe, a qual o terapeuta constantemente consultava, antes, durante e depois da sessão terapêutica, tinha o papel estratégico de formular uma hipótese sistêmica do funcionamento da família em torno do sintoma e preparar uma intervenção final, que consistia em uma prescrição ou tarefa em forma de ritual. A circularidade aparecia como percepção da organização do sistema familiar e da emergência do sintoma, auxiliando a formulação de hipóteses que tenham a ver com os relacionamentos circulares.

Na década de 80 houve um desenvolvimento no campo da Cibernética que resultou na passagem da Cibernética de Primeira Ordem ou dos Sistemas Observados para a Cibernética de Segunda Ordem ou dos Sistemas Observantes. Ou melhor explicando: O sistema deixa de ser observado de fora pelo observador que passa para uma postura de co-participação na observação do sistema em pleno funcionamento. Assim novas tendências foram incluídas à prática sistêmica,idéia modernista da existência de um “mundo real”, que se conhece através da certeza objetiva, assim como a noção de linguagem como representação deste mundo real,pois era preciso quebrar ou evoluir dos ideais lineares para os circulares.

A principal mudança ocorrida na terapia familiar, a partir da evolução da Cibernética de Primeira Ordem para a Cibernética de Segunda Ordem, diz respeito à compreensão do lugar do terapeuta, que sai de uma condição de detentor do poder, que avalia e diagnostica, para uma posição mais igualitária de co-responsabilidade junto ao cliente, através da realidade co-construída por ambos, pois o terapeuta também traz, introjetados em seus valores, a família e a cultura que usa como parâmetros para se orientar dentro da realidade em que está inserido.

O papel do terapeuta, não mais mitificado como expert, assume a característica de um facilitador do diálogo, que utiliza o seu mundo interno na co-construção da realidade apresentada. O conceito de auto-reflexividade passou a ocupar uma posição central, significando “um diálogo interno do indivíduo consigo mesmo e a tomada de consciência dos próprios preconceitos e teorias através das quais se vê e compreende o outro e o ambiente circundante” (Boscolo & Bertrando, 1996). Esta foi uma importante mudança epistemológica, pois ampliou e aprofundou os efeitos da abertura da “caixa preta”, favorecendo a passagem de uma visão reducionista, baseada na descoberta de padrões comportamentais, para uma visão de maior complexidade e abertura, inclusive em direção ao mundo interno do indivíduo, suas histórias, seus significados e suas emoções.

Essa mudança epistemológica permitiu uma nova compreensão sobre a circularidade, que passou de uma “categoria de observação” para uma “postura terapêutica”, que demanda do terapeuta uma sensibilidade em perceber os comportamentos verbais e não-verbais dos clientes envolvidos no sistema terapêutico, assim como as nuanças de suas próprias respostas nesse contexto interacional, é importante que o terapeuta esteja atento a todos os recursos disponíveis. Segundo Tomm (1987), “quanto mais astuta ou perspicaz é a observação, mais as respostas do terapeuta poderão estar refinadas para perceber as respostas da família, e mais próximos e implicados permanecem o terapeuta e a família”(p. 3). É nesse contexto que ambos se tornam responsáveis, numa atividade de construção conjunta, pela emergência de hipóteses, questionamentos e novos significados, num encontro que agrupa não só as crenças e relações entre os membros familiares, mas os pressupostos e construções do terapeuta advindos de sua própria experiência e dos valores sustentados em suas interações com outros relacionamentos familiares, sociais e culturais. Esta arquitetura lingüística permite a construção de uma ética clínica particular característica deste encontro – terapeuta e cliente. (Penn, 1982 apud Guimarães et all, 2008) define que a circularidade para a Escola de Milão “delineia um processo de produção-informação entre o terapeuta e a família, incluindo uma premissa epistemológica sobre circularidade num nível diferente de um processo descritivo” (p. 3).

Tomm (1987), em seu artigo sobre Interventive Interview Part I, comenta que o terapeuta precisa investigar a família, utilizando-se de perguntas, frisando e parafraseando as respostas dos familiares, ao mesmo tempo em que observa a comunicação estabelecida entre eles a fim de identificar suas próprias experiências daquelas do sistema. De acordo com este este autor, “de fato, essa atividade por parte do terapeuta, ali presente, é a maior razão pela qual essa premissa é chamada de ‘circularidade’, e não, simplesmente, de ‘observação’” (p. 4).

A Escola de Milão adota o questionamento circular como uma idéia inovadora onde algumas perguntas podem assumir, de forma mais impactante, um caráter interventivo dentro do contexto relacional da terapia, em um processo de co-construção. Contrapondo-se à postura terapêutica anterior que considerava a terapia como de autoria exclusiva do terapeuta, as perguntas circulares deram margem a que a própria família resolvesse seus problemas e passasse a lidar com seus sintomas, uma vez que estes questionamentos permitiam ativar os próprios recursos latentes desta família.

Deste modo podemos compreender o efeito circular pra que se possa também utilizá-lo no atendimento individual, pois se toda a pessoa traz em si seu modos de relacionamento com seus familiares, então é provável que mudando esta forma de se relacionar internalizado, mudará todo o sistema circundante a esta pessoa.

Efeito Circular

O Efeito Circular é um fenômeno natural do ser humano, um ser grupal, e não se pode entendê-lo separado do grupo e neste sentido existe um alo comunicativo entre seus membros em que um influencia o outro, mesmo que não se tenha intenção de fazê-lo. Segundo José Bleger a família é um grupo primário. É o grupo formador de pessoas. Este autor entende que o grupo familiar contém a parte mais indiferenciada e simbiótica do indivíduo, onde todos se sentem como iguais(Bleger,1984). Ele cita ainda o comportamento de famílias com relações aglutinadas:

Funciona como uma totalidade, na qual os papéis(não as pessoas) se acham em um interjogo de relações e compensações dependentes; a identidade é grupal e há um deficit de identidade individual ou, melhor dito, não há nenhum índice de individuação, pelo qual os indivíduos possam agir como seres independentes, que possam reconhecer os demais integrantes da família como indivíduos distintos de dele mesmo(p.98)

Pode-se deduzir portanto que a pessoa quando fala de outra com grau de parentesco, na verdade está falando de uma parte indiferenciada sua.
Outros autores reforçam este modo de compreender. Telfener diz categoricamente que todos temos a família em nosso interior e devemos levar isto em consideração quando observamos as várias formas de pensar e os valores que cada pessoa tráz.(Telfener ,1991).
Encontramos ainda apoio em cecchin quando ele diz:

“Não se pode deixar de fazer “terapia familiar”, já que a presença de um único indivíduo na terapia tem, seja como for, um grande efeito sobre todo o sistema (Cecchin apud Telfener, 1991)”.

Baseado então no que foi exposto acima, o terapeuta que vai trabalhar no atendimento individual, também vai atuar indiretamente no sistema familiar, agindo de modo a fazer compreender o funcionamento relacional dos membros da família do cliente, causando assim, um redirecionamento circular.

Conclusão

No atendimento individual há um encontro de valores entre o cliente e o terapeuta, que não poderia deixar de ter sua origem nas famílias de ambos ali presentes, defronte um para o outro. Isto de um certo modo tem chamado a atenção para esta “Introjeção Familiar”, que todos carregamos(Monte,2007).

Já existem algumas experiências com técnicas de atendimento familiar no atendimento individual, como a utilização da equipe reflexiva de Tom Andersen(Vidal, 2005).

Assim, o que proponho, é uma adaptação das técnicas utilizadas na terapia familiar ao atendimento individual, como a formulação de perguntas circulares por exemplo, com o claro objetivo de atingir estas relações que se retroalimentam, as quais todas formas programadas em nosso interior. O que quero dizer com isto é que se existe uma disfunção no comportamento de uma pessoa, existe um sistema em desarmonia, e uma vez modificando o indivíduo, todo o sistema a que ele pertence será modificado.

Como exemplo cito o caso de uma jovem senhora de trinta anos. Sua queixa principal era seu relacionamento com o marido, o qual tentou suicídio em várias ocasiões. Tinham uma sociedade de negócios na linha de instalação de internet via rádio, e em função de de seus distúrbios emocionais, ele se esquivava da cobrança de seus clientes, escondendo-se atrás das desculpas de sua esposa, fazendo com que esta se desesperasse, pois se preocupava com as contas para pagar e tentava ajustar-se a esta situação da melhor maneira possível, substituindo seu marido nas decisões que ele deveria tomar ou se posicionar. Isto está de acordo com o comportamento circular, porque seu marido, tendo este comportamento acomodado, afetava esta senhora que tomava seu lugar, retroalimentando o comportamento de seu companheiro.

Ao saírem por algum motivo este homem apresentava um comportamento bastante infantilizado. Gritava aos “quatro cantos” que sua vida era “miserável” e que iria se matar, sempre ao menor sinal de desentendimento entre o casal. Neste momento, esta senhora tentava colocar “panos quentes” na situação quase insuportável que vivia.

Se esta situação fosse narrada por uma terceira pessoa sem que esta distinguisse idade e sexo entre ambos os personagens, pareceria-me que ela estaria se referindo ao homem como uma criança mal-criada ou que os papéis de homem-mulher estariam trocados.

Assim trabalhei durante um tempo com esta senhora o “para que” ela se relacionava com seu marido daquela forma e depois de amadurecida com este discurso, sugeri que o tratasse da mesma forma que ela o entendia.

Depois de algum tempo, a senhora disse que resolveu arriscar uma primeira vez e depois passou a agir sempre assim: todas as vezes que seu marido começava com seus rompantes de ameaças a si mesmo, ela o tratava com ironia ou então começava a falar em voz alta em público, quase como imitando o seu comportamento. Isto fez com que ele tomasse uma atitude mais contida, aumentando a confiança de minha cliente e não mais atendendo de pronto suas demandas de atenção.

Todo este fato narrado acima é real. Fez parte de minha experiência clínica. Eu procurei, a princípio, ouví-la para que ela revisse e se ajustasse de forma consciente em sua maneira de atuar junto ao seu companheiro, e depois procurei atuar de acordo com os princípios da cibernética de primeira ordem, quando sugeri a ela que experimentasse, quando estivesse pronta, atuar como entendia que seu marido se comportava.

O resultado como descrito acima foi como “girasse a roda dos fatos” ao contrário, e isto causou um efeito circular de relacionamento bem sucedido.

Referência Bibliográfica

BLEGER, José; Psico – Higiene e Psicologia Institucional; Porto Alegre; Art Med; 1984.

BOSCOLO,P.; BERTRANDO, P.;Los Tiempos del tiempo:Uma Nueva Perspectiva para la Consulta y La terapia Sistêmicas; Barcelona; Paidós; 1996.

ESTEVES DE VASCONCELOS, M. J.; Terapia Familiar Sistêmica: bases cibernéticas; Campinas; Editorial Psy; 1995.

GUIMARÃES,Nina vasconcelos et all.;Questionamento circular: Instrumento terapêutico para abertura de mundos possíveis; Instituto Humanitas; Disponível em:<http://www.institutohumanitas.com.br/pdf/humanitas_questionamento_circular.pdf>; Acesso em : 16 Abr 2008.

MONTE, Sergio T.; A família Introjetada no Atendimento Clínico Individual;2007; 15 fl.;Artigo de conclusão(Curso de Gestalt-Terapia de Casal e Família; Rio de Janeiro; 2007.
PAPP, Peggy; O Processo terapêutico de mudança:uma abordagem prática à terapia sistêmica de família; Porto Alegre; Artes Médicas; 1992.

TOMM, K.. Interventive Interviewing: Part I. Strategizing as a Fourth Guideline for the Therapist. Family Process, 26, 3 – 13.[1987]; Disponível em: <http://www.familytherapy.org/downloads.html>; acesso em: 25 abril 2008

VIDAL, Ana Carolina Barra; A diferença que fez a diferença: O uso incomum da equipe reflexiva de Tom Andersen; 20 fl.; Trabalho de conclusão de curso (Curso de Formação em Terapia de Casal e Família do Centro de Terapia de Casal e Família – DOMUS); Porto Alegre; 2005.

ZINKER, J.. M.; A busca da elegância em Psicoterapia: Uma abordagem gestáltica com casais; São Paulo; SUMMUS; 2001.

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