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Ciúme romântico: um breve histórico, concepções correlatas e seus desdobramentos para os relacionamentos amorosos.

O que é que se concebe por ciúme? Há uma história para ele? Como sabermos se as pessoas que nos precederam e que empregavam o mesmo termo ‘ciúme’ e que atualmente também aplicamos aos nossos relacionamentos amorosos foram o mesmo ou se o emprego desta palavra por elas difere do nosso? Supondo tal diferença, isto se deve a concepção de que a delas é mais primitiva, ou elas têm algo a nos ensinar a respeito do ciúme?
Um pensamento que ecoa pelo cotidiano é aquele em que se diz que tudo o que é bom dura pouco. Será mesmo verídica a necessidade de se passar à vida toda temendo o fim de um grande amor? Ou que para encontrar e viver um amor de verdade precisamos ser dotados de sorte ou de algum tipo de poder mágico de encantamento? E se perdermos a amada pessoa que nos é tão cara, de modo que ela passe a se interessar por alguma outra pessoa que nos substituirá no mesmo papel que anteriormente representávamos para a vida dela? Ou talvez, precisamos aceitar a idéia de que o amor não é para todos? Por que o ‘eu te amo’ de ontem não vale para hoje? Porque é necessário renovar o amor constantemente em busca de se checar se uma situação de contínuo enamoramento. Claro, porque se teme tal encontro, em potencial, com parceiros mais atraentes e gratificantes, alimenta-se amiúde a insegurança. Conseqüentemente, por se encarar os relacionamentos como empreitadas de alto risco e talvez com não tão significativos benefícios, vive-se em busca de se tirar o melhor de cada um, a cada momento, numa dinâmica contraproducente à qualidade de qualquer relacionamento. Promessas de amor eterno, acordos pré-nupciais entre noivos que prevêem futuras rupturas e abandonos, palavras cada vez de menor valia e afirmativas cada vez rigorosamente mais supervisionadas a fim de serem cumpridas. Estas e muitas outras ruminações mentais a respeito do amor e seus relacionamentos interpessoais afastam mais e mais as pessoas umas das outras, ao invés de as encaminharem para serem felizes juntas e unidas por um mesmo ideal.Dessa forma, o ciúme romântico não somente é um dos mais importantes temas que envolvem os relacionamentos humanos, bem como um desafio para muitos destes.

Uma grande dificuldade ao se estudar o fenômeno do ciúme é o fato de que para muitos ainda, ciúme é uma manifestação de afeto, de zelo ou até de amor que uma pessoa sente por outra. Talvez isto seja mesmo verdade em algumas situações, e provavelmente não em muitas outras. E quem ama mata? Provavelmente não, mas quem sente ciúme sim. E esta morte, embora seja algumas vezes cruelmente real, no íntimo das pessoas ela ocorre de forma bem mais sutil e velada. São as inúmeras mortes imaginárias, que ocorrem por meio de mecanismos não perceptíveis à consciência e que sem as pessoas se darem conta, as afasta mais do que as aproximam. E que esferas cognitivas estão implícitas ao se analisar o ciúme romântico e a infidelidade?Então, para se entender o que se subjaz ao ciúme em relação ao passado, e em compasso com o conhecimento produzido ao longo do tempo, percebemos que as concepções e entendimentos sobre o ciúme foram e ainda são diversos. Desta forma, resgatar os pressupostos sobre os quais se fundamentam algumas das nossas concepções atuais se faz necessário a fim de que relativizemos nossos referenciais etnocêntricos e também tenhamos uma melhor compreensão da dinâmica afetiva em outras situações anteriores a nossa.Aristóteles, no século IV a.C., concebia o ciúme como o desejo de se ter o que uma outra pessoa possui. Era originariamente uma palavra boa e referia-se ao desejo de imitar uma coisa nobre da outra pessoa. Nesta acepção, o filósofo pensava o ciúme em termos de uma nobre ‘inveja’. Alguns séculos depois, Santo Agostinho, no século IV, ainda fundamentado no legado bíblico do rei Salomão que no século X a.C. advertia em seu salmo 109: “O amor é forte como a morte, o ciúme é cruel como o túmulo”, concebia o ciúme como algo desfavorável à boa vivência do amor. Treze séculos depois, portanto no séc XVII, o autor de epigramas, escritor clássico e moralista francês François de la Rochefoucauld reconhecia no ciúme uma tendência egocêntrica ao dizer: "No ciúme, há mais amor-próprio do que amor". O autor ainda identificava o amor como substrato para a gênese do ciúme: "O ciúme nasce sempre com o amor, mas nem sempre morre com ele". E enquanto no século XIX, na Alemanha, o ciúme, na pessoa de Freud, era concebido como um estado emocional Freud (1922/1976), em Paris, por Stendhal tinha uma conotação negativa e estava atrelado à vaidade: “O que torna a dor do ciúme tão aguda é que a vaidade não pode ajudar-nos a suportá-la”.            

Ainda segundo Stendhal, o ciúme (leia-se: o romântico), é o maior de todos os males, seja ou não verdadeira esta afirmação, a experiência do ciúme é comum nos relacionamentos amorosos. Ele é reconhecido como um complexo de emoções provocado pela percepção de uma ameaça a um relacionamento diádico e exclusivo. Faz-se tal observação tendo em vista que há diferentes tipos de ciúme, e estes, que podem surgir nos mais diversos contextos interpessoais, embora seja comumente associado com os relacionamentos amorosos.O ciúme, enquanto conceito tem uma dimensão pluralística, no sentido que admite a coexistência de vários princípios na tentativa de explicá-lo. Então, uma definição ainda que meramente descritiva na tentativa de se operacionalizar o conceito, torna-se praticamente inviabilizada.Assim, dentre as mais variadas definições, uma das mais aceitas, para o contexto científico, é a de que ele é um: Complexo de pensamentos, sentimentos e ações que se seguem de ameaças para a existência ou a qualidade de um relacionamento, enquanto estas ameaças são geradas pela percepção de uma real ou potencial atração entre um parceiro e um (talvez imaginário) rival (White, 1981, p. 130). Subsidiados por tal definição pode-se discutir o ciúme romântico não só como comportamento, mas enfocar a relação de anterioridade dos sentimentos e pensamentos que o fundamentam. Além disso, vale ressaltar que o ciúme romântico está condicionado a ameaça, ainda que virtual, ou mesmo remota, da infidelidade do parceiro.            

Dadas estas contribuições e outras que não foram citadas, atualmente, alguns teóricos o consideram como um sentimento. Outros ainda, como uma emoção negativa, ou até como uma emoção aversiva. Há os que o ideam como um complexo de pensamentos, emoções e ações. Há ainda aqueles que abordam o ciúme do ponto de vista evolucionário e dizem que ele é uma manifestação biológica inata, a fim de garantir um provedor para a prole, no caso do gênero feminino, e a propagação dos genes e conseqüentemente a perpetuação da espécie, sobretudo para o gênero masculino.            

Além do que foi supracitado, para vários autores existem vários tipos de ciúme, vários graus de ciúme, manifestações de ciúme diferentes por gênero, bem como com relação à mesma pessoa amada pode se sentir mais de um tipo de ciúme. E ainda se faz a ressalva que as pessoas podem ficar mais ciumentas durante períodos de fracasso ou perda. Desta forma, podem-se ter ciúmes de objetos, coisas, animais e pessoas, em diferentes intensidades e com relação ao mesmo objeto valorizado de múltiplas maneiras. Uma ilustração disto seria o caso de um homem casado com uma mulher bonita que sente uma grande intensidade ciumenta de natureza sexual por ela em relação a outros homens, e em grau diminuto ciúme de sua presença por achar que está se dedicando demais aos seus filhos. Provavelmente, se o exemplo fosse uma mulher casada com um homem bonito ter-se-ia uma configuração tal que a mulher não sentiria tanto ciúme sexual, porém um ciúme romântico tentando assegurar a relação afetiva e talvez um ínfimo grau de ciúme da atenção que o marido dispensa aos seus filhos.           

Quanto à genealogia do ciúme o psicólogo David Buss explica que, apesar de suas manifestações potencialmente perigosas, o ciúme teve um imprescindível valor adaptativo. Numa época onde homens e mulheres dependiam exclusivamente uns dos outros para a sobrevivência o ciúme atendia esta função de manutenção do relacionamento estabelecido. Por meio dele, homens ciumentos preservariam com uma maior probabilidade seus valiosos elos afetivos tentando assegurar-se que os filhos daquela relação eram de fato seus, garantindo assim a sua linhagem genética. No que diz respeito às mulheres, o ciúme seria um importante fator diferencial que poderia assegurar-lhes um mantenedor para si e para sua prole. Com isso, a infidelidade representa o desvio parcial de valiosos recursos evolutivos. Logo, acredita-se que a vinculação humana careceu de proteção e cuidados delegados ao ciúme. Naturalmente, estes mecanismos eram e ainda são inconscientes para ambos os sexos. E diferentemente do que se pensam homens e mulheres são eqüitativamente ciumentos, apenas diferindo como foi dito anteriormente na forma como ele se manifesta para os dois gêneros.Tendo em vista o que foi dito a princípio, compete agora partir para caracterizar tal complexo comportamental e cognitivo-sentimental. O ciúme, então, é um conjunto de emoções desencadeadas por sentimentos de alguma ameaça à estabilidade ou qualidade de um relacionamento íntimo valorizado. Como visto, as definições, dadas pelos teóricos, de ciúme são diversas, porém uma mesma tríade conceitual as une:

1) ser uma reação frente a uma ameaça percebida;

2) haver um rival real ou imaginário e;

3) a reação visa eliminar os riscos da perda do objeto amado.            

De qualquer modo, algo somente é rotulado como ciúme se a pessoa em questão possuir um relacionamento valorizado, e em seu entendimento, perceber que este vínculo está sendo ameaçado pela interferência de uma terceira pessoa. Esta é identificada como rival, independentemente do fato desta formulação ser real ou imaginária.            

Deve-se olhar atentamente para as razões colocadas pela pessoa que sente ciúmes, com a finalidade de identificar a lógica de seu raciocínio. Desta forma, ao se tomar como referência à leitura que a mesma faz dos fatos, conclui-se, logicamente, que, em seu lugar, provavelmente qualquer pessoa sentiria o mesmo. Todavia, embora ela esteja em posse de toda a argumentação intelectualmente convincente para justificar seus atos e pensamentos, é bom lembrar que esta estruturação está distorcida de alguma maneira, talvez imperceptivelmente a si próprio, ou a qualquer leigo de sua situação.           

No que tange a avaliação do ciúme pela literatura científica e pelo senso comum, percebe-se que na primeira, há a predominância da conceituação do ciúme enquanto uma relação afetiva negativa frente a uma ameaça ao valorizado relacionamento amoroso. De modo especial, Montreynaud é enfático ao dizer: “o ciúmes não é prova de amor, mas sinal de imaturidade” (Montreynaud, 1994, p. 40). Em contrapartida, para as pessoas do senso comum, como atestam os estudos de Mullen & Martin (1994) estas identificam estreitas relações entre o amor verdadeiro e o ciúme. Mesmo para outros teóricos tais como Ferreira-Santos (1996) há a possibilidade de haver algum aspecto neutro, ou ainda positivo no ciúme, no sentido dele acarretar a aproximação do casal, como uma profícua estratégia de se lidar ante uma situação ameaçadora. Entretanto, tal visão carece de uma maior fundamentação empírica. Já para o senso comum, e, sobretudo, para a cultura brasileira, percebe-se a manutenção de um ambiente favorável às atitudes ciumentas. Isto é, os parceiros se vêem na obrigação de demonstrar ciúme como prova de amor.            

Ao se discorrer sobre a temática do ciúme se faz necessário lembrar que para alguns teóricos, observam que em nossa cultura a infidelidade sexual tem diferentes conotações para homens e mulheres. Como o amor é considerado um pré-requisito para o envolvimento amoroso, para uma mulher, em um relacionamento sexual, isto faz com que a infidelidade sexual feminina seja pensada e implique no fato de que a mesma esteja sexualmente e emocionalmente envolvida com outro parceiro. Outra dúvida suscitada pela temática abordada é a de que se o ciúme seria um comportamento inato ou aprendido. Novamente há controvérsia neste ponto e alguns autores acham que ele é inato, embora as manifestações do mesmo sejam aprendidas. Desta forma, a biologia e a psicologia brinda com esse considerado importante fator adaptativo-evolutivo, mas não aprisiona o ser humano ao sabor das expressões ciumentas.Uma visão que se quer apontar é, seja o ciúme inato ou aprendido, benéfico ou danoso aos relacionamentos amorosos, ele é fundamentalmente egoísta à medida que leva o(a) seu(sua) possuidor(a) a se comportar conforme a conveniência deste e visa com isto tolher os direitos da pessoa a ela vinculada. Isto é, quando o ciúme se manifesta, não se visa proteger o outro, como distorcidamente costuma se pensar, e sim se protege a si mesmo de futuras preocupações que lhe sejam custosas no investimento amoroso realizado. O que mascara esta constatação é o fato de pensar que o ciúme é exercido em nome do amor e de uma “altruística” preocupação com o bem estar do outro de forma que per si parece autorizar a interferir sobre o destino do(a) parceiro(a).           

E dado o seu polimorfismo, percebe-se que o ciúme exibe as características de cada época, de cada cultura, o que torna difícil diagnosticá-lo como uma doença, por não ter um padrão fixo para se revelar. Todavia, o sofrimento é o que fundamenta e anuncia quando o ciúme deixa de estar no limite da normalidade e avança causando mal-estar, repetindo-se obsessivamente e compulsivamente, até que provavelmente, arruíne a vida das partes envolvidas.Espero que esta leitura, haja vista, os problemas com que me deparo cotidianamente no setting psicoterapêutico, um pouco mais para o entendimento deste fenômeno chamado ciúme. Porque se não nos dermos o trabalho de refletir a respeito desta temática, talvez estejamos perdendo uma preciosa oportunidade para otimizar a qualidade dos nossos relacionamentos amorosos os quais tanto valorizamos e os quais queremos preservar por meio dos mecanismos do ciúme. E se assim, quer como vítimas ou como algozes se não o admitirmos em nosso cotidiano, podemos deixar de recuperar o que realmente nos é tão caro ou o outro, que pode ser vítima de nosso desassossego e, sobretudo, recuperar parte de nós mesmos que esteja se perdendo para um fenômeno que faz de nós marionetes de nossas próprias emoções. 

Notas: A perspectiva evolucionária do ciúme é largamente discutida por um outro enfoque teórico denominado sociobiológico, no qual se propõe que o ciúme está inteiramente atrelado a cultura e especificamente à socialização no que diz respeito a ameaças nos relacionamentos íntimos e as diferenças de ciúme para os componentes dos dois gêneros resulta de uma socialização específica que afeta a percepção de tais ameaças (HUPKA; BANK, 1996)ii Muito embora um crescente corpo teórico sugere que as pistas que desencadeiam o ciúme são diferentes para homens e mulheres.iii Contudo, para as relações românticas de natureza homossexual os resultados apresentam-se de forma reversa comparados aos achados em relacionamentos heterossexuais ainda que experimentem níveis de ciúme similares a esses. As homossexuais femininas sentem como mais aflitiva a infidelidade sexual, ao passo que os homossexuais masculinos padecem emocionalmente mais quando imaginam que o parceiro pode estar comprometido afetivamente com outra pessoa, como advogam os teóricos Bailey et al. (1994) e Bringle (1995). 

Referências bibliográficas consultadas
 
BAILEY, J. M., GAULIN, S., AGYEI, Y.; GLADUE, B. A. Effects of gender and sexual orientation on evolutionary relevant aspects of human mating. Journal of Personality and Social Psychology, 66, 1081-1093, 1994.

BRINGLE, R. G. Sexual jealousy in the relationships of homosexual and heterosexual men: 1980 and 1992. Personal Relationships, 2, 313-325, 1995b.

BUSS, D. A paixão perigosa – Por que o ciúme é tão necessário quanto o amor e o sexo. Tradução de M. Campelo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

FERREIRA-SANTOS, E. Ciúme, o medo da perda. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998.

FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 18, Rio de Janeiro: Imago, p. 271-281, 1922/1976.

HUPKA, R. B.; BANK, A. L. Sex differences in jealousy: Evolution or social construction? Cross-Cultural Research, 30, 24-59, 1996.

MONTREYNAUD, F. O que é amar?: Respostas simples a perguntas não tão simples. São Paulo: Scipione, 1994.     

MULLEN, P. E.; MARTIN, J. Jealousy: A community study. British Journal of Psychiatry, 164, 35-43, 1994.RAMOS, A. L. M. Ciúme romântico: Teoria e medida psicológicas. São Paulo: Stiliano, 2000.SHEETS, V. L.; WOLFE, M. D. Sexual jealousy in heterosexuals, lesbians, and gays. Sex Roles: A Journal of Research, 44, 255-276, 2001.

WHITE, G. L. Some correlates of romantic jealousy. Journal of Personality, 49, 129-147, 1981.
 

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