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Teoria Psicanalítica – Conceitos Fundantes

1 – Introdução

Ainda que aquilo a que mais habitualmente chamemos de “teoria psicanalítica” consista em um corpo de hipóteses a respeito do funcionamento e do desenvolvimento da mente humana, que se aplica, via de regra, no tratamento de pacientes adoecidos, Brenner (1987) salienta a importância de compreendermos que referida teoria não se volta restritamente ao campo da psicopatologia, sendo também de seu interesse o funcionamento mental considerado como normal.

Não restam dúvidas de que o contexto sócio-cultural do século XIX favoreceu a percepção de Freud quanto à importância da sexualidade infantil para a compreensão dos descompassos da vida adulta.

Observando adultos e crianças inseridos em uma sociedade política e economicamente conflitiva,
desigual e fortemente influenciada pela moralidade vitoriana, o fundador da Psicanálise pode constatar aquilo que referida herança cultural ainda hoje tende a negar aos povos ditos “civilizados”: a percepção das sensações infantis com o corpo e de suas marcas na vida adulta.

"Algumas questões precisam ser entendidas: a sexualidade infantil foi a base da compreensão, para Freud, de comportamentos na infância e na vida adulta, portanto se trata de uma verdadeira teoria, uma trama de idéias a serem utilizadas para a compreensão do ser humano e sua terapêutica, e não de um tratado sobre o comportamento sexual das crianças ou o tratamento das mesmas" (Rocha, 2006: 27).

Ao final das contas, o objeto de investigação freudiana era o inconsciente do adulto e comportamentos a ele relacionados, ou seja, a principal novidade da fascinante teoria colocada por Freud estava, naquele momento, na hipótese do inconsciente e na compreensão da natureza sexual da conduta, sobre as quais passaremos a discorrer.

2- Das duas Hipóteses Fundamentais e dos Impulsos.
 
Considerados como fundamentais para qualquer exposição da teoria psicanalítica, temos o princípio do determinismo psíquico (ou da causalidade), e a crença de que “a consciência seja antes um atributo excepcional do que um atributo comum dos processos psíquicos”, a larga existência e significado, em qualquer ser humano, de processos mentais inconscientes. Assim, de acordo com a lei do determinismo psíquico, nada acontece por acaso, tanto na natureza física que nos cerca quanto na mente, o que equivale a dizer que os fenômenos mentais estão profundamente interligados entre si, formando uma cadeia causal em que cada evento psíquico é determinado por aqueles que antes dele vieram.

Referida hipótese Freudiana, negadora da aparente descontinuidade dos eventos psíquicos, está intimamente relacionada à da existência de processos mentais dos quais o indivíduo não se dá conta. Neste sentido, Brenner (1987: 19) nos explica que

"[…] dificilmente se pode examinar uma, sem suscitar a outra. É exatamente o fato de tantas coisas que acontecem em nossa mente serem inconscientes – isto é, desconhecidas para nós – que responde pelas aparentes descontinuidades em nossa vida mental".

Estudando os fenômenos psíquicos não-conscientes, Freud compreendeu que, na verdade, estes dividem-se em dois grupos: um constituído por elementos que, por um esforço de atenção, são facilmente trazidos à consciência (por ele nominado de pré-consciente) e outro, cujo estudo mais o interessou, constituído por elementos que eram barrados da consciência por uma força considerável, que precisava ser superada antes que eles pudessem tornar-se conscientes (aos quais coube o emprego do termo inconsciente).

Para compreender o esquema da mente oferecido pela teoria psicanalítica se faz necessário o conhecimento dos mecanismos inatos que impelem o indivíduo a ter determinado comportamento ou a reagir de determinada forma até que a ação provocada faça com que o estímulo seja reduzido ou eliminado. É então que temos os impulsos, definidos como “um estímulo da mente, proveniente do corpo” sem que, com isso, consistam propriamente na resposta motora, mas apenas no “estado de excitação central em resposta ao estímulo” (Brenner, 1987:32).

Considerando que são os impulsos que estimulam o indivíduo à atividade, Freud presumiu a existência de uma energia psíquica que constitua ou que pelo menos deles derive, chegando então à noção de catexia, que seria “a quantidade de energia psíquica que se dirige ou se liga à representação mental de uma pessoa ou coisa” (idem: 34).

Os impulsos foram classificados, quanto à sua natureza, de diferentes formas ao longo da vida acadêmica de Freud. O pensador, que inicialmente falou de impulsos sexuais e de auto-conservação, depois ponderou que todas as manifestações instintivas eram parte ou derivadas do impulso sexual, até que, se aprofundando no estudo da diversidade de fenômenos psíquicos (em especial o sadismo e o masoquismo), reformulou mais uma vez suas teorias dos impulsos e chegou à classificação dos impulsos em sexual e agressivo [1], os quais, salienta Brenner, “estão regularmente ‘fundidos’, embora não necessariamente em quantidades iguais” (idem: 35).

Convém ainda frisar que a resposta (ação/atividade) de cada indivíduo ao estado de excitação psíquica (ou tensão) produzido pela ação do instinto, ainda que sendo de um modo geral geneticamente determinada pode ser consideravelmente alterada pela experiência individual. Esta ação/atividade levará à cessação da excitação ou tensão ou ainda à gratificação.

O impulso sexual ou erótico relaciona-se à libido, dando origem ao componente erótico das atividades mentais, enquanto o impulso agressivo relaciona-se a uma outra energia psíquica (que não foi nominada especificamente[2]) e da qual se origina o componente destrutivo das atividades mentais.

A seqüência típica da manifestação do impulso sexual desde a infância apresenta fases, que, na realidade, vão se sobrepondo naqueles momentos de passagem de uma para outra ainda que, para fins esquemáticos, apresentam-se na teoria de forma distinta, e não gradual. Temos assim, o desenvolvimento psicossexual da criança dado, processualmente, ao longo de três fases [3]:

A primeira delas, denominada de fase oral, ocorre aproximadamente durante os primeiros 18 meses de vida, momento em que seus contatos mais significativos são feitos através da boca. Assim, além de sua função na alimentação, a boca, os lábios, a língua, se tornarão também a sede principal dos prazeres eróticos da criança.

A segunda fase, chamada de fase anal, se desenvolve aproximadamente ao longo dos 18 meses seguintes, em um momento da vida da criança em que ela experimenta e desenvolve gradativamente o controle sobre suas funções excretoras. Seus interesses se organizam sobretudo em torno da função anal, percebendo a criança, agora, que é capaz de dar e negar (tal como o faz com suas próprias fezes) e de colocar esse controle a serviço das expectativas do meio e de sua necessidade de prazer.

Na terceira fase, ou fase fálica, que tem início aproximado ao final do terceiro ano de vida, a libido concentra-se nos órgão genitais, que passam a ser o objeto de interesse principal da criança. Os conflitos dessa fase estão ligados ao Complexo de Édipo, com o surgimento de desejos incestuosos e seu conseqüente temor à castração, que será abordado logo mais.

Estas três fases do desenvolvimento psicossexual da criança estão relacionadas às três mais importantes modalidades de sexualidade infantil. Estas, entretanto, não são as únicas, sendo o desejo de olhar (geralmente acentuado na fase fálica) e seu equivalente, o desejo de exibir, e o erotismo uretral, exemplos de outros componentes da sexualidade regularmente encontrados na criança.

Se é esperado que a catexia libidinal de um objeto de uma fase anterior, diminua à medida em que se avança na fase seguinte, a persistência de catexia seria compreensível na medida em que não impedisse, no decurso do desenvolvimento psicossexual, um fluxo da libido de objeto para objeto. “À persistência de catexia libidinal de um objeto de tenra infância ou meninice na vida posterior, denominamos de fixação da libido” (Brenner, idem: 41). Esta fixação consiste em uma forma de gratificação geralmente inconsciente.

No decurso do desenvolvimento psicossexual, além do fluxo progressivo da libido, pode ocorrer um refluxo, denominado de regressão, ou, mais precisamente, regressão instintiva, já que a palavra está sendo usada em conexão com um impulso.

Na regressão instintiva, o indivíduo, que retorna a um objeto remoto de gratificação, a uma fase anterior do desenvolvimento, apresenta os padrões comportamentais daquela fase. Este é um processo defensivo que guarda relações íntimas com o processo da fixação, pois ao ocorrer a regressão, habitualmente ela o faz para um objeto ou forma de gratificação em que o sujeito já estava fixado.

Além da energia do impulso sexual, a libido possui campos que compreendem a energia do impulso agressivo. As manifestações do impulso agressivo mostram a mesma capacidade de fixação e de regressão, e a mesma transição de oral a anal, e de anal a fálica, descritas para as manifestações do impulso sexual,

"[…] isso que dizer que os impulsos agressivos no bebê muito novo são passíveis de serem descarregados por um tipo de atividade oral como morder. Um pouco mais tarde, evacuar ou reter as fezes tornam-se meios importantes de liberação do impulso agressivo, enquanto que na criança ligeiramente maior o pênis e sua atividade são empregados, ou pelo menos concebidos (usados na fantasia), respectivamente como uma arma e um meio de destruição (Brenner, 1987:43)."

Diferente do que ocorre com o impulso sexual, o relacionamento entre o impulso agressivo e as partes do corpo mencionadas não é tão próximo, da mesma forma como a relação entre impulso agressivo e prazer, não foi explorada teoricamente de modo conclusivo.

3- Do Aparelho Psíquico.

Um dos aspectos mais fascinantes da teoria psicanalítica, é que ela nos oferece uma “imagem” dinâmica da mente, permitindo conhecer e compreender não apenas seu funcionamento amplo, mas as operações de suas diversas partes, incluindo interações e seus conflitos mútuos.

Mas ao longo de sua trajetória, Freud não concebeu um único modelo para explicar o aparelho psíquico. Dentre suas hipóteses do funcionamento da mente são mais conhecidas a hipótese econômica, que concerne essencialmente à quantidade e ao movimento da energia na atividade psíquica; a hipótese topográfica, que tenta localizar a atividade mental em alguma parte do aparelho psíquico, por ele dividido em consciente, pré-consciente e inconsciente; e a hipótese estrutural, na qual a mente é dividida em três instâncias funcionais, o id, o ego e o superego, cada qual com sua função específica.

Na hipótese topográfica temos a representação da mente incluindo duas partes, uma reprimida e outra repressora. Nela, o aparelho psíquico é apresentado a partir de seus três sistemas operacionais mentais, que são o Consciente (Cs), o Pré-Consciente (Pcs) e o Inconsciente (Ics).

Conforme antecipamos ao mencionar a hipótese da ocorrência de conteúdos mentais não-conscientes, podemos dizer, sinteticamente, que o Consciente é a percepção imediata da própria experiência, o Inconsciente são conteúdos e processos psíquicos proibidos de penetrarem na Consciência, e o Pré-Consciente, por sua vez, consiste naqueles conteúdos que podem vir a tornar-se conscientes sem muitos esforços.

Na hipótese estrutural, cada estrutura mental é apresentada como possuindo um relacionamento funcional entre si. Nela aparecem, então, as estruturas nominadas como id, ego e superego.

O id, que compreende os instintos e seus impulsos (como visto, presentes em nossas vidas desde o nascimento), opera em nível inconsciente. Nele estão os impulsos instintivos que se originam na organização somática e ganham expressão psíquica, bem como idéias e recordações que, por serem insuportáveis ao indivíduo, acabam reprimidas.

Sendo considerado como um reservatório de energia – da qual alimenta também as outras duas instâncias (ego e superego) – o id, que é regido pelo princípio do prazer, não possui uma organização comparável à do ego. A busca desregrada da satisfação, de gratificação, pode causar sérios conflitos com o mundo exterior, relacionados à ausência da capacidade de considerar espaço, tempo, limites. Desta feita, geralmente a interação do id com o ego e o superego é conflituosa.

Desenvolvendo-se a partir do id, tal como a parte dele que foi modificada pela influência direta do mundo externo, o ego aparece no momento identificado como narcisismo primário, e é parte organizada desse sistema, representando, de certa forma, a razão. Sob os imperativos do superego e as exigências da realidade, cumpre ao ego, assim, avaliar e controlar os impulsos provindos do id, nem sempre permitindo sua satisfação.

Por meio de suas funções, o ego tem capacidade de atuar sobre a realidade externa numa tentativa de adaptação, razão pela qual temos sob seu domínio o controle motor sobre a musculatura do esqueleto, várias modalidades de percepções sensoriais, os controles e habilidades para atuar sobre o ambiente, a capacidade de lembrar, comparar e pensar. No âmbito de suas relações com as outras duas instâncias do sistema psíquico, o ego assume o papel de mediador e integrador dos impulsos instintivos do id e das exigências do superego, visando adaptá-los à realidade externa.

Em seu conjunto, as funções do ego vão se desenvolvendo gradualmente, sendo responsáveis por esse desenvolvimento tanto o crescimento geneticamente determinado do sistema nervoso central, quanto dois fatores experienciais: a maturação e a identificação com objetos do ambiente.

Consistindo em um processo no qual o sujeito assimila traços ou atributos de um outro, que lhe sirva de modelo, a identificação exerce sua função no desenvolvimento do ego em mais de um aspecto, sendo parte inerente ao relacionamento do indivíduo com um objeto altamente catexizado (pela libido ou mesmo pela energia agressiva [4]).

Para Freud, além da imitação, outro processo que desempenha papel crucial no processo de identificação, é o de ferida do objeto, num tipo de morte física do objeto (ou uma separação muito prolongada ou permanente em relação ao mesmo), resultando na forte tendência de identificação com a pessoa ou objeto que se tem como perdido.

Finalmente, sendo formado a partir das identificações com os genitores, dos quais ele assimila as ordens e proibições, temos o superego, que consiste na estrutura mental onde os preceitos morais são mais poderosos, assumindo o papel análogo de juiz e vigilante, formando, assim, referida auto-consciência moral.

"[…] o papel que mais tarde é assumido pelo superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pela autoridade dos pais. A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda do amor e se farão temer por essa mesma causa. Essa ansiedade realística é o precursor da ansiedade moral subseqüente. Na medida em que ela é dominante, não há necessidade de falar em superego e consciência. Apenas posteriormente é que se desenvolve a situação secundária (que todos nós com demasiada rapidez havemos de considerar como sendo a situação normal), quando a coerção externa é internalizada, e o superego assume o lugar da instância parental e observa, dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente os pais faziam com a criança” (Freud, S. Conferência XXXI, Obras Completas, Vol. XXII).

Por ser a parte do psiquismo onde ficam nossos valores, o superego assume a função de barrar o que for impróprio, podendo tornar-se desmedidamente severo a ponto de anular as possibilidades de satisfação instintiva e a capacidade de livre escolha do ego. Em casos assim, prossegue o pesquisador:

"[…] o superego parece ter feito uma escolha unilateral e ter ficado apenas com a rigidez e severidade dos pais, com sua função proibidora e punitiva, ao passo que o cuidado carinhoso deles parece não ter sido assimilado e mantido. Se os pais realmente impuseram sua autoridade com severidade, facilmente podemos compreender que a criança desenvolva, em troca, um superego severo. Contrariando nossas expectativas, porém, a experiência mostra que o superego pode adquirir essas mesmas características de severidade inflexível, ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa, e se tenham evitado, na medida do possível, ameaças e punições" (idem).

Como vimos, a metamorfose do relacionamento parental em superego tem por base o processo de identificação com a instância parental, a ação de assemelhar um ego a outro ego, em conseqüência do que o primeiro se comporta como o segundo em determinados aspectos, imitando-o e, em certo sentido, assimilando-o dentro de si, sendo, portanto, uma forma muito importante de vinculação a uma outra pessoa, pois o ego do sujeito modifica-se conforme o modelo do outro ego. É por isso que, conclui Brenner (1987), “essa nova criação de uma instância superior dentro do ego está muito intimamente ligada ao destino do complexo de Édipo”.

Cabe salientar que ao longo do desenvolvimento, o superego assimila também as influências que tomaram o lugar dos pais, como é o caso dos professores e demais pessoas escolhidas como modelos ideais, e assim normalmente se afasta das figuras parentais originais.

Correspondendo à funções morais e normativas da personalidade (como auto-estima, auto-elogio, auto-observação crítica, aprovações e desaprovações de ações e desejos, arrependimento e reparação de ações etc.), sua dupla função seria a internalização da lei e a medição do ego por seu ideal. Assim, os mandatos do superego, que surge a partir do complexo de Édipo (do qual falaremos mais tarde), incluem muitos elementos inconscientes, derivados do passado do indivíduo, que podem entrar em conflito com seus valores atuais.

Retomando o âmbito da diferenciação entre o ego e o id, cabe pontuar os modos de funcionamento do aparelho psíquico a que Freud chamou de processo primário e processo secundário, salientando que o uso de referidas expressões na literatura psicanalítica pode fazer referência tanto aos processos, propriamente ditos, quanto à forma de pensamento de um determinado indivíduo.

No processo primário, tem-se a forte tendência à gratificação imediata ou descarga da catexia, e a facilidade de a catexia ser deslocada de seu objeto natural ou método de descarga, enquanto que, no processo secundário, a ênfase é dada exatamente à habilidade/capacidade de retardar a descarga de energia catéxica até que as condições ambientais sejam mais favoráveis, bem como ao maior vínculo com o objeto ou o método de descarga da catexia. Condições que indicam que as diferenças que se colocam entre ambos são mais de ordem quantitativa do que qualitativa.

Quanto às modalidades diferentes de pensamento, também expressadas com as terminologias ora estudadas, pode-se dizer que, enquanto o pensamento de processo secundário é o pensamento consciente, que se pode atribuir ao ego relativamente maduro, o pensamento de processo primário guarda íntimas relações com o pensamento da criança, cujo ego ainda é imaturo, sendo caracterizado, em linhas gerais, pela ausência do emprego de conjunções negativas e condicionais (de forma que só pela totalidade do contexto é que se possa determinar se algo afirmado deve ser determinado no sentido negativo ou positivo, condicional ou optativo), pela coexistência de idéias que se contradizem, pela falta de sentido de tempo, pela tendência a representar idéias de forma não-verbal, pela representação simbólica. Ressalte-se, porém, que ainda que muito evidente em casos de enfermidade mental grave, apenas o predomínio ou a atividade exclusiva desta forma imatura do pensamento é que constituiria condição inteiramente patológica.

É importante apresentar, ainda, os termos deslocamento e condensação, tal como utilizados para designar aspectos relevantes do pensamento de processo primário. O deslocamento faz referência ao deslocamento da catexia, relacionando-se à representação de uma parte pelo todo (e vice-versa) e, de modo geral, à substituição de uma idéia ou imagem por outra, a ela ligada por associação. A condensação, por sua vez, faz alusão a um processo característico do pensamento inconsciente, no qual duas (ou mais) imagens se combinam para formar uma imagem composta, investida do afeto derivado de ambas.

Outro aspecto da teoria da energia do impulso, relacionado à diferenciação do ego a partir do id e seu desenvolvimento subseqüente, é a neutralização da energia do impulso, termo indicativo de um processo gradual em que uma determinada atividade que proporcionava ao sujeito satisfação do impulso (via descarga de catexia) deixa de fazê-lo, ficando acessível ao ego para a execução de diversas tarefas. Conforme Brenner, a mais simples definição para a energia neutralizada que se pode apresentar, seria a de que esta consiste na “energia que foi consideravelmente alterada em seu caráter original, sexual ou agressivo” (1987:68). Assim, concluímos que esta neutralização da energia psíquica derivada dos impulsos desempenha um relevante papel na formação e no funcionamento do ego.

Como podemos depreender desta rápida abordagem das funções do ego, também é dele esperada a capacidade de adquirir conhecimento do ambiente e domínio sobre o mesmo, o que nos leva, agora, a mencionar a função por Freud denominada de prova da realidade, que, nos indivíduos dotados de um adequado sentido de realidade, manifesta-se por uma capacidade do ego, gradualmente desenvolvida, de distinguir os estímulos ou percepções oriundos do mundo externo, daqueles que são originários da atuação do id.

Esta intermediação feita pelo ego, entre o id e o ambiente, torna relevante, também, a questão de meios pelos quais o ego consegue certo grau de controle e supremacia sobre o id adiando ou mesmo “combatendo” a descarga da energia do impulso. Vemos assim que, embora o ego seja e continue sendo o executor do id, este começa a exercer um grau crescente de controle sobre o id, a ponto de combater certas aspirações e mesmo de entrar em conflito declarado com elas. É assim que, “de servo obediente e prestativo do id” sob vários aspectos, o ego “torna-se de certo modo seu antagonista, quando não senhor” (Brenner, 1987:77).

Além dos processos de identificação e de neutralização da energia dos impulsos, o processo de gratificação fantasiosa também contribui de maneira relevante para a formação e o funcionamento do ego, pois, através desta gratificação, um impulso do id pode aproximar-se tanto da satisfação que o ego consegue mais facilmente exercer controle sobre ele.

Uma última condição para que o ego se torne até certo ponto o “senhor do id”, está em sua relação com o princípio do prazer, segundo o qual, a mente tenderia a atuar de tal modo que o prazer fosse determinado e sua antítese impedida. Para descrever a antítese do prazer, Freud fez uso, na verdade, da palavra unlust, que expressa dor ou sofrimentos que não são de ordem física, podendo, neste contexto, ser traduzida como desprazer.

O princípio do prazer ocupa também uma importante posição na teoria psicanalítica da ansiedade. Inicialmente Freud aventou que, ao contrário do temor a um perigo externo reconhecido, a ansiedade consistia em uma manifestação patológica da energia dos impulsos, provocada por uma descarga de libido represada. Esta hipótese foi mais tarde abandonada, e o autor desenvolveu uma nova teoria em que relacionava o aparecimento da ansiedade com situações de perigo ou com “situações traumáticas”, nas quais os estímulos são demasiado poderosos para que o ego os domine ou descarregue.

A base da ansiedade é vista, pois, como biológica. Desde o nascimento, o organismo humano já seria dotado de uma capacidade, com forte valor de sobrevivência, de reagir por meio de manifestações físicas ou psicológicas. Consistiria a ansiedade, assim, em um mecanismo automático de defesa, que seria acionado pelo ego naquelas ocasiões em que a psique não conseguisse dominar ou descarregar uma profusão de estímulos externos e internos (mais frequentemente provenientes do id).

Em outras palavras, visto que ao longo de seu desenvolvimento o ego adquire a capacidade de produzir ansiedade frente a uma situação de perigo e, depois, antecipando mesmo o perigo, será por meio da ação do princípio do prazer que essa ansiedade de alarme permitirá ao ego, em uma situação de perigo, controlar ou inibir os impulsos do id. O ego produz a ansiedade como um sinal de perigo, conquistando o auxílio do princípio do prazer e tornado-se capaz de combater a emergência dos impulsos perigosos.

Este combate, assim como qualquer outra atitude do ego no mesmo sentido, é chamado de defesa, ou atividade defensiva do ego. Existem processos do ego que se referem especificamente à suas defesas contra o id, contra a pressão excessiva dos impulsos e desejos inconscientes, os quais Anna Freud nominou como mecanismos de defesa. Sendo formas simbólicas e fantasiosas de resolver os conflitos psicológicos e reduzir a ansiedade, são vários os mecanismos de defesa, alguns mais eficientes que outros, alguns que exigem menos dispêndio de energia para funcionar a contento, mas todos requerendo gastos de energia psíquica.

Dentre eles, citamos os mecanismos de: repressão, que tenciona fazer desaparecer da consciência conteúdos que o ego não suporta (por considerá-los desagradáveis ou inoportunos), separando-os funcionalmente e tornando-os parte do id; formação reativa, em que conteúdos indesejáveis são mantidos inconscientes graças a uma forte adesão ao seu contrário; isolamento, que em sua forma mais comum relaciona-se à apartação de emoções dolorosas que fazem parte de uma lembrança à qual o consciente pode acessar, e, em sua forma mais rara, diz respeito ao bloqueio pela consciência de sentimentos e emoções em geral; anulação, que é uma ação elaborada no sentido de anular os danos que o sujeito imagina que seus desejos possam causar; negação, que consiste no não reconhecimento do desprazer como tentativa de expulsar da consciência aquilo que causa dor ou angústia; projeção, processo pelo qual o indivíduo tenta livrar-se de um desejo ou impulso que não aceita, atribuindo-o a outra pessoa, o que, se acionado recorrentemente, poderá afetar o senso da realidade externa, a capacidade do sujeito perceber adequadamente o mundo exterior; voltar-se contra si próprio, em que o indivíduo volta a si mesmo um impulso que não ousa expressar contra o objeto a que originalmente se destinaria; introjeção (incorporação), que se relaciona com a fantasia inconsciente de união pela ingestão com outra pessoa com quem se identifica; regressão, em que o ego foge de situações conflitivas atuais por meio do recuo a um estágio anterior. Teríamos, ainda, a sublimação, que consiste em um processo no qual uma pulsão não é apenas substituída, mas sublimada, sendo dirigida para um novo objeto que vise objetivos socialmente valorizados e permita um desejável grau de satisfação do ego.

Enquanto, na literatura psicanalítica, o termo objeto é utilizado para designar pessoas e coisas do ambiente externo que sejam psicologicamente significativas para determinado indivíduo, a expressão relações de objeto faz referência à atitude e o comportamento do indivíduo para com estes.

Nos estágios iniciais da vida, num momento em que a criança ainda não está apta a distinguir sua própria pessoa dos objetos, as condições ali colocadas fazem com que se manifeste um estado de libido auto-dirigida, por Freud denominado narcisismo, sendo este um termo que, em relação a adultos, é utilizado para indicar uma hipercatexia do eu, uma hipocatexia dos objetos do ambiente, e uma relação patologicamente imatura com esses objetos.

No começo da vida, as primeiras relações de objeto, que são de suma importância para o desenvolvimento do ego, caracterizam-se por um alto grau de ambivalência dos sentimentos que se tem pelo objeto (que de certa forma permanece por toda a vida, ainda que sua manifestação diminua consideravelmente) e pela identificação com o objeto.

Quando a criança passa do estágio anal para o fálico, seu ego apresenta-se melhor desenvolvido e mais integrado, e suas relações com o objeto já não são parciais, mostrando-se contínuas e estáveis, estabelecem-se relações que geralmente se convertem nas mais decisivas da vida da pessoa. Dentre outros fatores, trata-se de um estágio do desenvolvimento do ego da criança que torna possíveis todas as relações de objeto que se comparam às da última infância ou da idade adulta, ainda que delas diferindo sob todos os aspectos.

Freud estabeleceu que as relações de objeto mais importantes na fase fálica, decisivas tanto para o desenvolvimento mental normal, como para o patológico, são as que se agrupam sob o complexo de Édipo, pelo qual se desenvolvem intensos sentimentos de amor incestuoso pelo genitor do sexo oposto, a quem se quer com exclusividade, e de hostilidade e ciúme pelo do próprio sexo. Trata-se de sentimentos que são vividos com grande intensidade e ambivalência, pois, embora se rivalize com aquele genitor que obstacularizaria a realização do desejo pelo outro, também se tem por ele amor e admiração, resultando por um lado em medo de ser punido, e por outro em culpa.

Do medo de ser punido por seus desejos edipianos, temos, no menino, o medo da castração, da perda de seu próprio órgão genital em represália aos desejos pela mãe, o que fará com que tais desejos sejam repudiados, sendo parte abandonados, parte relegados ao inconsciente. Este medo se complica quando o menino, que se sentindo rejeitado pela mãe desenvolve por ela raiva ciumenta, deseja dela livrar-se para poder ser amado com exclusividade pelo pai, porém, se apercebe que as mulheres (como aquela que é amada pelo pai) são ausentes de pênis. Do temor pela integridade do seu órgão sexual, advém a repressão dos seus desejos.

Já no caso da menina, a repressão e a renúncia aos desejos incestuosos não se daria pelo medo da castração, mas pela percepção da rejeição de seu desejo de ser o único objeto sexual do pai, em uma situação da qual fazem parte a inveja do pênis (que acarretaria sentimentos de inferioridade, ciúme e raiva contra a mãe por ter permitido que nascesse assim) e o medo da lesão genital decorrente do desejo de ser penetrada e fecundada pelo pai.

Brenner enfatiza que, ainda que as fantasias edipianas originais sejam reprimidas, mas que restem versões disfarçadas das mesmas na consciência, este não é o único meio pelo qual o complexo edipiano influencia a vida futura do indivíduo, tendo ainda uma conseqüência específica e de grande importância na vida mental subseqüente, que é, como mencionado há pouco, a formação do superego: uma força que nos leva a agir de acordo com as atitudes gerais de nossa sociedade, atuando, assim, por meio de ansiedade e culpa.

"A medida em que repudia os desejos incestuosos e homicidas que constituem o complexo edipiano, as relações da criança com os objetos desses desejos transformam-se, em grande parte, em identificações com os mesmos. Em vez de amar e odiar os pais, que, segundo crê, se oporiam a esses desejos e os puniriam, ela se torna igual a eles no repúdio a seus desejos. Assim, o núcleo original das proibições do superego é constituído pela exigência de que o indivíduo repudie os desejos incestuosos e hostis que compunham seu complexo edipiano" (Brenner, 1987:126).

Desta feita, num primeiro momento, o superego é representado pela autoridade parental que dá ritmo à evolução da criança, alternando demonstrações de amor e punições que geram angústia. Mais tarde, no momento em que a criança renuncia à satisfação edipiana, é que as proibições externas são internalizadas e, por meio de um processo de identificação, o superego finalmente passa a substituir a instância parental.

Terminada a fase edipiana, estas identificações que formam o superego são, do ponto de vista da defesa, muito oportunas ao ego, que passa a melhor controlar os impulsos do id. Contudo, do ponto de vista da independência e da liberdade para gozar da gratificação instintiva, teríamos nas identificações do superego uma desvantagem, considerando que o ego perde parte de sua liberdade de ação e passa, desde então, a estar sujeito aos domínios não de um aliado, mas de um senhor.

A atividade do superego possui duas características, geralmente inconscientes na vida adulta e diretamente relacionadas aos processos mentais da infância, às quais Freud chama de Lei de Talião, em que temos as punições inconscientes que são impostas ao indivíduo por ações reprovadas pelo superego (envolvendo um conceito de justiça primitivo, comum nas crianças pequenas e nas sociedades arcaicas); e a falta de discriminação entre desejo e ação, que seria o lugar comum que o superego ameaça castigar tão severamente tanto o impulso, quanto a ação dele decorrente.

Considerando que uma outra característica da atividade inconsciente do superego é que ela pode resultar em uma necessidade inconsciente de expiação ou punição, podendo mesmo transformar-se em uma ameaça ao sujeito, do ponto de vista do ego, é fácil compreender que, nestes casos, o ego possa vir a empregar contra o superego mecanismos defensivos, análogos àqueles comumente empregados em relação ao id.

Notas:

[1] Ou impulsos de vida e de morte, que corresponderiam, grosso modo, aos processos de anabolismo e catabolismo.

[2] No passado foi sugerido que referida energia psíquica fosse nominada de “destruto” (idem).

[3] Brenner menciona a existência de uma fase adulta, a que chamará de fase genital (idem:39).

[4] Convém lembrar que Anna Freud chama essa forma de identificação de “identificação com o agressor” (1936).

[5] Mesmo sabendo que para os povos da Antiguidade clássica, por exemplo, os sonhos eram instrumentos divinatórios já que se relacionariam com os deuses e demônios dos quais seríamos meros títeres, em duas de suas obrar Aristóteles já deixa “pistas” da possibilidade de tornar os sonhos um objeto de estudo não do mundo dos Deuses, mas antes daquele homem (como indivíduo) que sonha.

Referências:

BRENNER, Charles. Noções Básicas de Psicanálise: introdução à teoria psicanalítica, São Paulo:
EDUSP, 1987.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos (1900). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. IV.

______. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. VI.

______. Conferência XXXI – A dissecção da personalidade psíquica. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XXII.

______. Conferência XXIX – Revisão da teoria dos sonhos. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XXII.

ROCHA, Fernando. Afinal, existe uma sexualidade infantil? Psique: Ciência & Vida, Ano I, no.6, 2006, pp.28-39.

TELLES, Rômulo Vieira. Roteiros de Estudos. Escola de Psicanálise Clínica do Rio de Janeiro/Sociedade Psicanalítica, 2006.

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