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Comentário sobre artigo do filósofo Bento Prado Jr.: “A imaginação: Fenomenologia e Filosofia Analítica”

Bento Prado Jr. discorre sobre o tema da imaginação em um ensaio sobre a Fenomenologia de Edmund Husserl, Jean-Paul Sartre, Gilbert Ryle, Baruch de Spinoza e René Descartes.
A Filosofia Analítica, entendida com especial atenção dispensada à linguagem, está representada por Gilbert Ryle, principalmente no seu livro The Concept of Mind. A Fenomenologia de Husserl, principalmente na IV Investigação Lógica, que se refere à idéia de uma "gramática lógica". Bento começa o artigo com Ryle: "A Fenomenologia e o Conceito de Mente". Ryle considera seu livro "O Conceito de Mente" como sendo um ensaio de Fenomenologia. Provavelmente, Merleau-Ponty "decidiu ignorar a exposição propriamente metafísica, ultraplatônica e ultracartesiana da Fenomenologia feita por Ryle" (p. 152).

A ambição do texto é traçar o paralelismo apontado pelo próprio Ryle entre sua análise da imaginação e aquela proposta por Sartre, visando sugerir que ambos partilham de certo pressuposto que os condena igualmente a uma concepção cognitivista da Psicologia. O conceito é o de "imaginação". "Imaginar, para Ryle, é interpretar erroneamente como um ato de testemunhar, ato cujos objetos são interiores e acessíveis ao testemunho" (p. 152). Sartre, em seu livro L'Imaginaire: psychologie phenomenologique de l'imagination, desejava, em parte, atacar a mesma concepção equivocada (1940).

O propósito de Bento foi o de verificar, no contraponto entre parágrafos de Ryle e de Sartre, se a cumplicidade não é mais profunda do que a sugerida pelo primeiro. Existe uma ilusão cuja origem é uma espécie de extensão indevida de certas características da visão e da falta de reflexão sobre a natureza de certas expressões de que lançamos mão para descrever o ato de "imaginar". Dessa relação deslizamos inconscientemente na direção de expressões que descrevem as imaginações como réplicas das coisas imaginadas.

Não há dúvida de que imaginar algo é parecido, de algum modo, com o fato de vê-lo: mas essa semelhança não é uma característica localizável numa eventual imagem mental. A ilusão da imagem mental derivaria de uma verdadeira inversão do processo real da percepção e da imaginação. Não são, todavia, apenas essas duas formas de ilusão que se antepõem contra a tentativa da constituição de uma teoria positiva da imaginação.

Na realidade, a tentação de reduzir tal disparidade à idéia da "imagem" ou de um tipo particular de percepção derivariam, segundo Ryle, da passividade dos teóricos diante da tradicional tripartição da mente nos domínios da cognição, da emoção e da volição, bem como da circunscrição da imaginação no primeiro compartimento. Se, de fato, o ato de imaginar é um ato de fingimento, como explicar a auto-ilusão completa, digamos, da alucinação ou do sonho?

Sartre não deixa de enfrentar, por seu lado, em toda sua acuidade: "Tendo assimilado a imagem à sensação, Taine não tem nenhuma dificuldade em explicar a alucinação: com efeito, a percepção é já 'uma alucinação verdadeira'" (p. 191). A alucinação seria assim apenas um grau extremo de fingimento. Paradoxalmente, estaríamos perto de Fernando Pessoa:

"O poeta é um fingidor,
que finge tão completamente,
que acaba por sentir que é dor
a dor que deveras sente."

Ryle chega a formular com mais força ainda: "O fato de que pessoas podem fantasiar que vêem coisas, são perseguidos por ursos…, sem perceber que não há nada senão fantasia é simplesmente parte do fato vulgar e geral de que todas as pessoas são, em todos os momentos, em todas as idades, e em todas as condições, tão judiciosas ou tão críticas como seria de se desejar" (The Concept, pp. 258-259). Neste momento, o leitor não pode impedir-se de manifestar surpresa. O encaminhamento da resposta assim formulada é preparado por uma análise de formas de fingir que culmina tanto numa "gramática" como numa "fenomenologia" do fingimento.

Não é raro que formulemos argumentos "entre parênteses" no sentido acima aludido, pois de um raciocínio hipotético não se pode cobrar categoricidade, nem a responsabilidade de quem o formula. Ao usar palavras como "se", "suponhamos", "admitamos", "digamos", o pensador que assim "simula" opera também uma forma mais sofisticada de pensamento; noutras palavras, o raciocínio hipotético é de segundo grau e pressupõe o raciocínio afirmativo.

Resta-nos (sabendo o que falamos de fato quando falamos que alguém finge) dizer o que significa imaginar. Como já sabemos que a experiência privada da imaginação não consiste na produção de uma imagem visual ou auditiva no espaço interno da mente, resta-nos saber se tal experiência secreta é susceptível de uma determinação positiva. "A imaginação seria uma espécie de quase-sensação" (idem, p. 256).

Depois de desfazer o mito da imagem mental, Ryle procede à destruição de sua sobrevivência "sensualista". E é bem uma teoria intelectualista da imaginação que edifica, sobre as ruínas das teorias tradicionais. De algum modo, depois de partir, junto com Sartre, de uma crítica da teoria de Hume da imaginação, Ryle parece reencontrá-lo, ao termo de seu itinerário, definindo a imaginação como a intenção que visa um objeto na sua ausência.

Talvez não, se conseguimos mostrar que a teoria da má-fé, no "Ser e o Nada", desenvolve uma teoria da simulação que parece antecipar, ponto por ponto, a fenomenologia proposta por Ryle. Tanto mais que, lá também, a teoria da simulação é mobilizada para mostrar que a alucinação não escapa à definição estrita da imaginação. Mas não era essa mesma cisão que Ryle evitava na descrição da simulação, insistindo que a complexidade da descrição não dissolve a unidade do ato? Tanto num caso como no outro, a unidade do ato de imaginação e de simulação é garantia de uma interpretação que relativiza a noção de delírio e de alucinação, para fechar as portas à idéia de inconsciente. A alucinação não passa de um caso particular de simulação. Ter-nos-iam Ryle e Sartre libertado dos equívocos com que a Filosofia clássica envolveu a natureza da imaginação?

Sartre dizia, desde L'Imagination, caracterizando a Filosofia clássica, preparando sua futura desconstrução em L'Imaginaire: "Pode-se muito bem conceber uma síntese ativa que operaria por composição de impressões sensíveis renascentes. É assim que Spinoza e Descartes explicam a ficção. O centauro seria constituído pela síntese espontânea de uma percepção renascente do cavalo e de uma percepção renascente de homem" (p. 157).

Talvez para nosso propósito não nos seja inútil retornar brevemente a esses textos clássicos, para voltar em seguida a Sartre e Ryle. Voltemo-nos para o escólio da proposição XVI do II livro da Ética. A proposição enuncia: "Não há no espírito nenhuma volição, isto é, nenhuma afirmação e negação, além da que envolve a idéia enquanto idéia" e seu corolário é "A vontade e o entendimento são uma e a mesma coisa".

A certeza para Spinoza nada mais é do que a idéia adequada de alguma coisa. "Concedo, pois que ninguém se engana enquanto percebe, isto é, as imaginações do espírito consideradas em si mesmas não envolvem erro; mas nego que um homem não afirme nada enquanto ele percebe". Este texto é tanto mais curioso, na sua contestação da liberdade da vontade, já que recorre à teoria do sonho e da imaginação. Não era, com efeito, o argumento do sonho um argumento cartesiano.

Nas Meditações, embora o argumento da alucinação seja recusado (desde aquela época…), o argumento do sonho é essencial na estratégia da dúvida, como ninguém o ignora. Antes de voltarmos ao texto do escólio, é interessante que nos reportemos às páginas do Imaginário que Sartre consagrou ao argumento cartesiano e, mais geralmente, ao problema do sonho (pp. 205-225).

Se Sartre recorre ao texto de Descartes é porque coloca dificuldades para sua teoria da imaginação e do imaginário. Sartre reformula o texto de Descartes nos seguintes termos: "Se é verdade que o mundo do sonho se dá como um mundo real e percebido, quando ele é constituído apenas por um imaginário mental, não haveria aí ao menos um caso onde a imagem se dá como percepção…?" (p. 206)
Se a descrição cartesiana da consciência que sonha é correta, será incorreta a descrição que Sartre nos fornece da imagem. Havia-se estabelecido entre as características essenciais da imagem:

1. O fenômeno da quase-observação;

2. O fato de que a consciência imaginante põe seu objeto como um nada;

3. A espontaneidade da intenção imaginante.

Estas três características opõem essencial e radicalmente imaginação e percepção. Isto porque o objeto da percepção é essencialmente observável, posto como positivo (como existente) e como imposto à passividade da consciência. É-lhe, portanto, indispensável encontrar a falácia do argumento cartesiano e teorizar sobre a natureza do sonho. No caso da consciência vigilante que percebe, a reflexão nada lhe acrescenta nem a altera. À contracorrente de Descartes, Sartre diz:

"E, a bem dizer, sua absurdidade não é menor do que aquela proposição: talvez eu não exista, proposição que, justamente para Descartes, é verdadeiramente impensável" (pp. 206-207). Sartre poderá afirmar, a seguir, incluindo pela primeira vez o nome de Spinoza no L'Imaginaire: "Na realidade, a percepção, como a verdade para Spinoza, é index sui e não poderia ser de outra maneira. E o sonho se assemelha também muito ao erro no espinosismo: o erro pode dar-se como verdade, mas basta possuir a verdade para que o erro se dissipe por si mesmo".

O que opõe, portanto, o sonho à percepção para Sartre – o que teria escapado a Descartes – é a fragilidade do sonho, isto é, sua incapacidade de resistir à reflexão (ou, na linguagem de Ryle, de competir com a percepção). Spinoza nos diz: "… e não creio que exista um homem que durante o seu sonho pense ter o livre poder de suspender seu juízo sobre o que ele sonha, e de fazer com que não sonhe o que sonha; e, todavia ocorre que, mesmo nos sonhos, nós suspendemos nosso juízo, quando sonhamos que sonhamos".

A fragilidade do sonho tem exatamente o mesmo sentido em Spinoza e em Sartre. Tanto para um como para o outro, essa fragilidade significa sua incapacidade de "competir" com outras representações – como para o próprio Ryle. Tanto num caso como no outro, a consciência que sonha difere da consciência desperta na medida em que o sonho isola uma representação, enquanto a consciência desperta está voltada para o horizonte do mundo ou da totalidade da experiência. Na linguagem de Husserl, diríamos que toda percepção de uma coisa é indissociável da tese do mundo.

Isolada de suas circunstâncias, a coisa perde sua substância (a "substância" que a percepção lhe atribui, pondo-a como existente) e se desfaz em puro "fantasma".

Perceber uma coisa, perceber sua articulação com as demais, perceber a coisa dentro do mundo, afirmar sua existência, tudo isto é uma e a mesma coisa. Para Spinoza, sonhar é suprimir o mundo ou a sua ordem; ou, ainda, em outros termos que não existe um mundo ou uma ordem do sonho e do imaginário. Como afirma Sartre, explicitamente: "Todavia, essas poucas notas (sobre o sonho) não contradizem essa grande lei da imaginação: não há mundo imaginário. Com efeito, trata-se apenas de um fenômeno de crença."

Para Ryle, também, sabemos quão frágil é o imaginário, incapaz de competir com a percepção (embora ao fazer dele, entre outras coisas, uma antecipação da percepção, complique um pouco a clara oposição), como sabemos que reduz a alucinação ao erro ou à falha de juízo. Deixe-se claro que não queremos sugerir algo como um desvio congênito da Metafísica Ocidental, de sua origem até hoje, que a condena a errar por esquecer a natureza da imaginação. Estamos de acordo com Ryle, quando afirma que só se pode pensar a imaginação, deslocando-a da esfera do conhecimento e, a fortiori, da ontologia.

Descrição de essência ou análise de linguagem não poderia, em princípio, conflitar com a descrição do mundo. A não ser que só reconheçamos como Psicologia aquela de inspiração cognitivista – que está a um passo do mentalismo substancialista que Ryle quer destruir, ele, que se considera "behaviorista". De qualquer maneira, a Psicanálise e a Análise Experimental do Comportamento são banidos do campo da ciência por estas filosofias da Psicologia.

O filósofo crítico ou o epistemólogo da Psicologia não podem recuar, diante da análise psicológica (Psicanálise, por exemplo), como o faz, aqui, o imaginário romancista-moralista, que hesita em abandonar a oposição clássica entre o real e o imaginário.

Legado

Alguns dados biográficos de Bento Ferraz de Almeida Prado Júnior, por Adalberto Tripicchio:

Bento Prado Jr., como era conhecido o Professor Emérito da USP, nasceu em 21 de Agosto de 1937. Em Jaú, Estado de São Paulo. Faleceu em São Carlos, em 12 de Janeiro de 2007, aos 69 anos bem vividos. Como dizia Fernando Pessoa na sua Autobiografia: "Nasci e morrerei. Entre essas duas datas, todos os dias são meus". Assim, falaremos apenas um pouco da vida acadêmica de Bento, pois os demais dias lhe pertencem.

Entrou no Departamento de Filosofia da USP em 1956 e saiu formado em 1959. Casou-se com Lúcia Prado, companheira de turma e de vida até o fim, antes de estar formado, com quem teve três filhos. Necessitou ficar, pela 2ª vez, em França de 1969 a 1974. Dizia que a "Filosofia sempre renasce, é uma doença incurável, e o mais interessante é que o remédio é da mesma natureza da doença (como na Homeopatia, na qual ele apostava). Isto seguramente não é uma filosofia do senso comum".

Sua tese de Livre-Docência, em 1965 na USP, "Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividade em Bergson", editada pela Edusp – ainda hoje em catálogo – é considerada um dos quatro livros mais importantes sobre o filósofo francês Bergson do planeta. Recebeu na França prêmio de honra em função de ter sido reconhecido como um de seus maiores intérpretes. Dada a xenofobia do francês, este prêmio tem mais valor ainda.

No dia 21 de agosto próximo, data de seu aniversário de nascimento, será lançado um número da Revista "Olhar", da UFSCar, na sua íntegra em homenagem a Bento. O texto sobre Rousseau, que começou a escrever depois da tese de Livre-Docência, está no prelo pela Editora Cosac Naify. Houve em junho passado o Congresso Internacional de Bergson na Universidade Federal de São Carlos em homenagem a Bento Prado. O Prof., Livre-Docente, Luiz Roberto Monzani e a Prof.ª
Dra. Débora Morato Pinto estão organizando um Festschrift também em homenagem a Bento Prado. Bento foi articulista da Folha de São Paulo, e esta empresa publicará nos próximos meses um livro com a coletânea de artigos seus.
Sempre pertenceu à USP, tanto que foi seu Professor Emérito; criou o Curso de Fundamentos de Filosofia e Psicanálise na UNICAMP-SP, e foi igualmente criador da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar-SP. Deixou inúmeros artigos e livros publicados. E amigos…, que lhe sentem falta.

Referências bibliográficas

Husserl, E. – Investigaciones logicas. Madri: Alianza Ed., 1982.

Prado Jr., B. (org.) – A imaginação: Fenomenologia e Filosofia Analítica, em Filosofia e comportamento. São Paulo: Ed. Brasiliense,1982.

Ryle, G. – The concept of mind. Londres: Peguin,1949.

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