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De que maneira as alterações no mundo do trabalho influenciaram no Séc. XVIII e influenciam ainda hoje a dinâmica familiar?

A mudança para o modo de produção industrial (capitalista) e na própria concepção de trabalho trouxe alterações em relação ao espaço público e privado e em relação à organização familiar.

Na virada do séc. XIX para o séc. XX a rua passa a ser vista como espaço público, de trabalho e da indústria; local onde se realizavam negócios e onde se transitava com objetivos comerciais. A casa que antes abrigava o trabalho dos que nela moravam, agora transforma-se em local de convivência privada; um refúgio para a família nuclear frente às mudanças sociais, políticas e econômicas que estavam acontecendo, como, por exemplo, a diminuição das distâncias hierárquicas, já que a ascensão dava-se não mais através de heranças, mas cada vez mais através de conquistas e o espaço da rua cada vez mais pertencente ao Estado e ao trabalho, o que fez com que a família se voltasse mais e mais para si, se fechando.

A valorização da privacidade da vida fica clara ao se observar às mudanças arquitetônicas da época. Os espaços de uso comum ou utilizados para receber visitas foram deslocados do centro da casa e passaram a não mais ocupar a posição central da organização dos cômodos. Essas mudanças fizeram segundo Riehl com que “a casa se torne mais habitável para o indivíduo, porém mais estreita e pobre para a família.”

Hoje, ao analisarmos a dinâmica domestica das famílias, não é difícil a identificação de atitudes e rotina que valorizam a privacidade e a individualidade de seus membros. O local destinado à convivência está cada vez menos valorizado, as refeições são feitas em horários e em porções individuais, assim como a decoração e organização dos quartos passam a ser hipervalorizada, como forma de respeito ao gosto pessoal e individual. As conversas são escassas e o tempo gasto com a internet e a televisão é infinitamente maior ao tempo gastos nas relações com os membros da família.

De acordo com o Artigo “A família burguesa e a institucionalização de uma privacidade ligada ao público”, com o inicio da distinção entre o público e privado, o Salão antigo foi transformado em quartos privados (antes não tinha portas dividindo os cômodos), o pátio transferido do meio da casa para a parte frontal, deixando assim de existir o pátio no centro da casa, o vestíbulo espaçoso reduz-se à entrada estreita, a cozinha passa a ser vista como um lugar de circulação de empregados. Surge “novo salão” – lugar da sociedade, do “público”.

O Salão de convivência da grande família dá lugar à sala de estar da pequena família, o isolamento no interior da casa passa a ser positivo. Além disso, há a valorização da propriedade privada – substrato da sociedade industrial – domínio do principio de calculabilidade das relações.

Antes da Revolução Industrial, a casa era o local de trabalho da família extensa. Com a Revolução, passa a ser o espaço da família nuclear. Hoje o bem que nós temos de mais privado é a nossa casa. O espaço físico, os bens materiais; estes por sua vez cada vez mais individuais.

A crise na família começa a ocorrer quando esta se vê sobrecarregada e temerosa de sua capacidade para suprir todas as demandas impostas, pois cabia à família acolher, amar, tranqüilizar, mas também preparar para o trabalho e para a vida e manter a harmonia nuclear, ou seja, cabia à família tarefas muito difíceis de serem desempenhadas. Essa crise passou por diversos estágios, mais em nenhum momento a família deixou de ser importante para a socialização do sujeito e para o seu desenvolvimento. A implantação do capitalismo industrial nas capitais, acompanhado por essa crença secular, imprimiu uma força, sem igual, para a privatização familiar, iniciando a desestabilização existente entre as esferas pública e privada.

As famílias pressionadas e receosas por terem que viver agora a partir dos parâmetros do capitalismo passaram a se concentrar cada vez mais na esfera familiar, fazendo com que a família deixasse de ser percebida como um espaço diferenciado do público para se tornar um refúgio idealizado, de segurança e aceitação.Aos poucos, a família foi se tornando um lugar de emancipação psicológica que corresponde à emancipação político-econômica vivida à época. No entanto, a esfera familiar (privada) mantinha uma relação de dependência com a esfera do trabalho (pública). Como fica claro na afirmação de Habermas, J: “Embora a esfera do círculo familiar tivesse a pretensão de se ver como independente, como livre de todos os liames sociais, como reino da pura humanidade, ela está numa relação de dependência para com a esfera do trabalho e da troca de mercadorias (…)” Garantindo a continuidade do individuo na herança da propriedade (a família passa a ter bens) e a mudança nas relações afetivas como, por exemplo, os casamentos com contratos pré-nupciais.

A Família depende da realidade social, onde uma crescente socialização tende a comprimir o elemento natural-espontâneo do ordenamento familiar e como espaço de subjetividade – representação da relação entre os indivíduos e as coisas. Um bom exemplo desse espírito do desenvolvimento da subjetividade é o fato do século XVIII ser considerado o “Século das cartas”, pois escrevendo cartas o indivíduo desenvolvia a sua subjetividade.

Como a família se posicionou com relação à subjetividade? Com um interesse crescente na dupla relação: o individuo mesmo e o outro; a instrospeccao (colocar pra dentro) se unindo ao outro e a subjetividade sendo descoberta no interior das relações da intimidade familiar.Ainda que a família burguesa tenha se pensado como independente do controle externo, o que podemos verificar como algo errôneo, uma vez que, na verdade, sua constituição foi historicamente determinada, tal crença de liberdade ofereceu as bases para a noção de que a família se estrutura a partir de três coordenadas distintas:-O caráter voluntário: as pessoas se unem por vontade própria, revelação plena do individualismo na medida em que as pessoas perdem sua inscrição social e passam a contar individualmente; -O amor natural: fundamento da noção de que aquilo que mantém a união matrimonial é a natureza humana e seus aspectos subjetivos estruturados pelos laços fraternos da paternidade e maternidade sem interesses econômicos;-A educação: a finalidade da família é interna e não externa.

Sendo assim, ao pensarmos na construção da família contemporânea a partir da industrialização das cidades podemos ter como pontos fundamentais algumas características dessa última, como por exemplo, a retirada das atividades de produção da casa, ou seja, do espaço doméstico, a apropriação do conhecimento do trabalhador de seu trabalho e de suas ferramentas a partir da gerência e da administração nas fábricas e talvez o mais importante deles, a perda de sentido do trabalho que cada vez menos é feito como algo que diz respeito a uma herança, tradição e socialização da família. Perde-se esse sentido quando o processo de produção passa a ser feito de modo desmembrado, onde cada trabalhador é responsável por uma etapa da fabricação e não domina mais todo o processo. Mudanças que foram feitas visando agilidade para o aumento de produção e de lucro e que trouxeram conseqüências no núcleo familiar.

Com relação às alterações no mundo do trabalho e sua influencia na dinâmica familiar, existe ainda hoje um conflito entre o trabalho e a família. Porém esse conflito não é somente da ordem da divisão do tempo dedicado a cada um. É mais sutil, a preocupação está no que se deixa de exemplo de trabalho para os filhos, como referência, modelo a ser seguido. Para muitos trabalhadores, o conflito está no fato de que não se pode mais oferecer aos filhos a substância de sua vida de trabalho como exemplos de como eles devem conduzir-se eticamente.

Então, o que define um bom trabalho? O que define um trabalhador? Um pai, uma mãe? O que se deixa de exemplo? O que se carrega de valor? As mudanças arquitetônicas e de organização do espaço privado de moradia, trouxeram conseqüências que podem ser percebidas até os dias atuais. Da mesma forma, as mudanças no trabalho, na forma de produção e de organização também atingiram e influenciaram (e ainda influenciam) as relações familiares, a organização da casa, de seu ambiente, de sua dinâmica. Duas faces de uma mesma moeda, que unidas ou separadas fisicamente, se retroalimentam.

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