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A Carta – Um ensaio clínico

Mônica releu surpresa e assustada, a car­ta que recebera alguns minutos antes:

– "Minha jovem senhora

Há muito que sei de suas relações ilícitas com Ricardo Sales. Vi-a certa vez entrando na casa de uma travessa da Av. Dr. Arnaldo, para os lados do Pacaembu. Informei-me acerca do morador e tudo descobri. Venho sufocando minha revolta por muitos motivos: ora, penso na dor que seu marido padeceria se tudo soubesse, ora no gênio violento que ele possui e na tragédia que surgiria, ora em sua filha Elisa, a Lili. E, em atenção exclusi­vamente a ele, resolvi calar-me. Entretanto, não posso mais suportar a farsa. Esse segredo terrível me oprime an­gustiosamente. O remorso, a cumplicidade do meu silêncio, tirou-me a paz de espírito. Achei agora a solução. Aproveitando os momentos de ausência de Leopoldo envio-lhe esta carta. Proponho-lhe que rompa, imedia­tamente, com Ricardo Sales, ou contarei tudo a Leopoldo, seu marido."

No papel azul, as letras datilografadas dançavam. Uma sensação de inconsciência: de perda de contato vital com a realidade a invadia. A vertigem giratória cada vez mais intensa desmaio era iminente.

– D. Mônica! D. Mônica!

A voz rouca da cozinheira tirou-lhe daquele estado crepuscular, restituindo-lhe a realidade dos fatos.

Num segundo, recuperou a homeostase psíquica. Levan­tou-se rápida, ajeitou o cabelo, e naquele andar sensual e rítmico, que tantos ensaios lhe custara, dirigiu-se para a cozinha. Atendeu Madalena e voltou para o quarto. Já no domínio de todas suas emoções e o pensar lhe veio.

Então, alguém sabia. Mas quem? Como pu­dera descobrir? Durante estes dois anos tomara todas as pre­cauções possíveis. Só encontrava Ricardo três vezes por semana, após as visitas que fazia à filha, aluna interna do Colégio Sion, no bairro de Higienópolis.

Tomava sempre táxis diferentes para ir até à casa do amante. Tinha o cuidado de voltar de automóvel até as proximidades do Colégio, para só então, dirigir-se para casa. É verdade, que durante as férias de Elisa, tivera de diminuir os encontros amorosos, pois não poderia fazer compras todos os dias. Mas, nessa época tomara ainda mais cuidado. Entretanto, alguém sabia! Mas como, como pudera descobrir? Quem seria? Imaginou, como em um mapa mental, desfilar diante dos olhos, os amigos mais chegados. Seria Isabel? Isabel, desde os tempos de escola amava Leopoldo. Escondera de todos essa paixão, de todos, menos dela, Mônica, que sempre compreendera a ternura com que a amiga olhava para o rosto luminoso de Leopoldo. Mas, se fosse Isabel? Seria seu amor tão grande que per­mitisse o sacrifício de se calar? Ou desejaria, incendiada pelo despeito, ver morta a rival que lhe roubara o amado. Sim, poderia ser Isabel.   

Mas, e Carlos? O cunhado nunca aprovara o casamento. Lembrava-se perfeitamente de quando ele lhe dissera: – "Você é muito bonita Mônica, para fazer Léo feliz. Ele precisa de uma mulher mais feia e menos vaidosa, de uma mulher que possa viver sem o aplauso das mulheres e a cobiça dos homens". Sim, Carlos jamais acreditara na felicidade daquele casamento. Entretanto, sem o saber, contribuíra, com a sua desconfiança para a felici­dade do irmão, porque ela, Mônica, sim, a bela e inteli­gente Mônica, mantivera-se durante longos anos fiel a Leopoldo, exclusivamente porque Carlos ferira seu orgu­lho duvidando que ela pudesse fazer feliz o irmão. E não fora por orgulho que recusara as propostas de Edmundo. Sim, por orgulho, só por orgulho, pois certamente nunca amara Leopoldo.

Não fosse a derrocada financeira de seu pai, o seu suicídio inesperado, e não precisaria nunca ter pensado em dinheiro. Leopoldo chegara no momento exato. Ainda, nem o cadáver do pai estivesse frio e rígido, e ela recebera a pro­posta. Enxuga as lágrimas, compusera um sorriso tris­te e agradecido, tudo estava pronto. Em verdade, não só não amara como muitas vezes odiara o marido. Não lhe podia suportar o ar de superioridade. Para ele, Mô­nica, sim, a bela e inteligente Mônica, era apenas uma jovem desamparada que precisava de proteção. E ele, o homem forte e protetor, devia agasalhá-Ia. Como Leo­poldo era ridículo, crendo-se tão amado. Julgava-se in­substituível em seu coração e jamais estivera presente. É verdade, que com o passar dos anos já podia suportá-lo sem asco. Além disso, o nascimento de Elisa, a Lili, aproxi­mara-se um pouco mais dele. Afinal, a menina era car­ne e sangue dos dois. Mas, assim mesmo, nunca o pude­ra amar. E lhe fora fiel tanto tempo.

Durante anos inter­mináveis, quantas cobiças despertara. Tudo em vão. Ela continuava jurando falso, assumindo atitudes mentidas para que o marido pensasse que ela o amava, mas jamais o traíra. Edmundo fora o mais audaz dos admiradores. Debaixo do nariz de Leopoldo dirigira-lhe olhares pro­vocantes. Três vezes chegara a falar-lhe. A agonia durara até aquele negócio duvidoso que Edmundo fizera e Leo­poldo desaprovara. Discutiram e Edmundo deixou de fre­qüentar a casa do amigo. Ainda assim, certa vez, quando a encontrara no Shopping Iguatemi, Edmundo voltara a insistir. Inutilmente. Mantivera-se fiel a Leopoldo e haveria de se manter até… até que encontrou Ricardo.

Sempre com aquele sorriso cínico, aquele brilho de volú­pia nos olhos, as unhas cuidadosamente polidas. E como lhe ficava bem a gola rolê. E os sapatos bran­cos. Era, um amor! Ricardo sim, é que era um verdadeiro homem. Vivia para o prazer, para a paixão. Nada de or­çamentos, de lutas políticas, de atitudes graves. Como Leopoldo desaparecia diante dele. Entretanto, era certo que Leopoldo possuía boas qualidades, que Ricardo não pos­suía; era honesto, trabalhador e além disso, mais gentil. Mas Ricardo, embora não fosse nada disso, era um verda­deiro homem, o homem com quem sempre sonhara: libi­dinoso, cínico, ardente. Poderia parecer estranho, mas era por isso que o amava – por ser cínico, debochado e lasci­vo. Afinal, as mulheres amam por tantos motivos…

Há dois anos que eram amantes e nunca percebera nele a menor frieza ou desinteresse. Como o desejava! Desde aquele seu primeiro gracejo – "Olá, pecado ambulan­te!" – ela o adorava. Desde aquele 14 de julho até hoje, vivera só para ele. Catorze de Julho! O destino tem coin­cidências interessantes. Parecia ver Leopoldo naquela noite, falando-lhe após um escorregão – "Caramba, querida, hoje é o dia das quedas! Caiu a Bastilha e caí eu. Quanta gente não deve ter caído hoje!" – Ele, o espiri­tuoso Leopoldo, se soubesse que ela, também caíra naquela tarde. Ah! A vida era mesmo engraçada! E agora, tudo ruiria, porque alguém sabia, alguém!

Tornou a olhar a carta. Teria sido homem ou mulher? Por vezes a carta era terna, por vezes ríspida. Certamente era alguém íntimo da casa. A familiaridade com que se referia ao marido – tratando-o por Leopoldo – permi­tia concluir isso. Era alguém, que, indubitavelmente, sabia quando ela estava só em casa, pois o mensageiro viera trazer-lhe a carta, duas horas depois que Leopoldo saíra. Felizmente ela própria recebera o mensageiro. E era al­guém cuja caligrafia conhecia, pois a carta era datilogra­fada. Seria homem? Seria mulher? Porque viera a carta em papel azul com flores vermelhas no alto das páginas? O papel era caracteristicamente feminino, mas teria "X" querido apenas despistar, ou se traíra involuntariamente, sendo de fato uma mulher?

A carta extravasava ternura por Leopoldo. Mas todos, todos, menos ela, o amavam. Carlos, Isabel, o próprio Edmundo, Luísa… É mesmo, e Luísa? Seria ela? Luísa fora a verdadeira mãe de Leopoldo. Desde a mor­te de D. Georgina, assumira a direção da casa e fora de uma ternura verdadeiramente maternal para com Leo­poldo e Carlos, seus dois irmãos menores. Suspeitava Luísa de alguma coisa? Provavelmente não; não sabia dissimular a indignação. Ou saberia? Como poderia pen­sar que não quando ela própria fingia algo mais difícil, há mais tempo. Ah! E agora se lembrava. Certa vez, Luí­sa lhe falara na melancolia que o Cemitério do Araçá derramava por toda a redondeza que o cercava. E o ce­mitério ficava tão perto da casa de Ricardo…

Que teria Luísa ido fazer ali? Era indubitável; Luísa poderia ter escrito a carta. Talvez, já a observasse desde os tempos de Edmundo, pois lhe confessara um dia, que achava o amigo do irmão, frio, calculista e suspeito. E Edmundo? Teria ele escrito a carta? Não sufocara seu despeito! Ou estimava Leopoldo de fato? Quem o poderia saber? E os outros, Josefina e Odete? E o Dr. Sousa Lima? Teria algum deles escrito a carta? Como saber? Felizmente amanhã encontraria Ricardo e saberia então o que fazer.

Uma dor de cabeça terrível a oprimia, uma fadiga imensa lhe entorpecia os braços e as pernas, um sentimen­to de ansiedade invadia-lhe o coração. Começava a cochilar, quando ouviu estridente, a buzina do carro de Leopoldo que chegava. Era o sinal com que anunciava a chegada to­dos os dias, aquele toque de buzina inconfundível e es­tridente. Mônica levantou-se rapidamente. Abriu a gaveta de roupas íntimas, colocou no meio delas a carta, desceu as escadas correndo, e no instante mesmo em que Leo­poldo abriu a porta, atirou-se ao seu pescoço.          

Leopoldo encaminhou-se com Mônica para uma poltrona da sala de visitas. Mônica tirou-lhe os sapatos e calçou-lhe os chinelos.

– Como passou queridinho? Trabalhou muito?

– Nem calcula Mônica. Hoje a Presidência esteve repleta durante todo o dia.

– Quer dizer que não sentiu saudades da sua mu­lherzinha?

– Muitas, querida. Não deixei de pensar um mo­mento em você. Lembrei-me até que amanhã é dia de visi­ta à Elisa e comprei este livro para que você lhe presenteie, coitadinha, sempre tão só. Se você concordasse gostaria de tirá-la do Colégio no fim deste ano. Sinto-lhe falta. E lembre-se que só a internei porque você achou melhor fazer assim.

– Como você é bom, Leopoldo. Mas, olhe que já estou com ciúmes da Elisa. Antigamente sua preocupação era sua mulherzinha; hoje, é só Lili prá cá, Lili prá lá.

– Não seja injusta, Mônica. Também trouxe um presente para você. Veja se gosta.         

– Como é lindo, querido. Você é mesmo um anjo. Mas, diga-me aqui um segredo, que mulher ajudou você a escolher este broche?

– Nenhuma, meu amor. Você outro dia, falou-­me que queria tanto um broche para usar com seu vesti­do verde e eu resolvi satisfazê-Ia. E as coisas, aqui em casa, como correram?          

– Bem…

– Nenhuma visita? Nada?

– Nada… E você, que novidade me conta?

– Algumas, querida. Tenho de ir ao Rio de Janeiro em negócios da empresa. Embarco daqui a alguns dias.

– Olha, querido, sabe de uma coisa?

– O que?

– Já estou intrigada. Por que você vai tanto ao Rio? Será que não tem nenhuma amante por lá? Os homens, os homens, quem os conhece?

*     *     *

Ora, Mônica, deixe de bobagens. Você sabe quanto eu a amo e que importância dou à felicidade no casamento. Acho que não há pena que possa punir o adultério. Não sei o que faria se não houvesse casado com você. A pers­pectiva de que minha mulher me pudesse trair, era algo que sempre me horrorizava. Ah! Haveria de retalhar-Ihe o corpo. Felizmente, querida, encontrei você e posso ficar tranqüilo. Parece até que Deus se compadeceu de meus receios. Bem mas deixemos de coisas fúnebres. Tenho algo para contar. Hoje o Edmundo procu­rou-me duas vezes na Empresa. Eu saíra para comprar os presentes, e ele não me encontrou. Que será que ele quer?

– Não sei, querido. Certamente, pedir perdão.

– Bem, o Edmundo não é mau rapaz. Desviou-se um pouco naquele caso, mas é dono de um grande coração, cheio de escrúpulos e acima de tudo, um amigo sincero, seria até capaz de dar a camisa do corpo para um amigo, sem levar nada em troca.

– É, você deve ter razão.

– Ah! Outra novidade. Daqui a pouco, Luísa e Carlos estarão aqui. Virão jantar conosco.

– O quê?

– Por que você se espanta?                                       

– O que me espanta é a sua calma. Preciso ir já para a cozinha ajudar a pobre da Madalena.

Mônica levantou-se e saiu. Leopoldo abriu o jornal e começou a ler. Os tipos garrafais alardeavam. "Assassinou a mulher e o amante". Virou a página. No alto, outro cabeçalho gritante: "Morta com cinco facadas". Fechou o jornal, irritado. Que diabo! Só violência e adul­térios.

O jantar transcorreu frio. Carlos e Luísa estavam reser­vados e taciturnos. A tristeza contagiou Mônica. Um receio enorme de que os dois soubessem foi-lhe invadindo. Só Leop­oldo estava alegre. Ria como uma criança. Troçava do aborrecimento dos outros.

– Que diabo! Será que o jantar está tão ruim as­sim, Carlos?

– Não Léo, não é o jantar.

– Que é então?

– Bem, é um segredo…

Mônica sentiu-se empalidecer. Levantou os olhos para Carlos. Carlos estava com um ar absorto estranho.

Um brilho de aço luzia em seus olhos cinzentos.

– Um segredo? Que segredo, ein! Luísa?

– Não é nada, Léo. É um negócio que Carlos fez e em que não foi bem sucedido. Perdemos um bom di­nheiro. Bem, mas deixemos de negócios. 

Mônica respirou aliviada. Resolveu intervir na con­versa.

– Tem se divertido muito, Luísa?

– Um pouco, Mônica. Andei visitando uma amigas. Fui até o Parque Villa-Lobos. É um belo lugar. Estive também no MASP. E anteontem visitei a Lígia.

– Lígia, que Lígia?

– É verdade, você não a conhece…

– É uma velha amiga de Luísa, que mora lá pelos lados do Cemitério do Araçá – esclareceu Leopoldo.

De novo as suspeitas voltaram ao coração de Môni­ca. Que diabo! Quantas coincidências! Por que Luísa e Carlos estavam tristes? Teriam mesmo feito algum negó­cio mal sucedido? Ou tudo era mentira? Estariam em conlu­io contra ela? E por que Luísa fora logo naquela épo­ca visitar a maldita Lígia? E Edmundo? Que dese­jaria com Leopoldo? Deus, quanta confusão? Acabaria ficando louca entre tantas incertezas.

Luísa era psicóloga pela PUC, e nas aulas de Psicopatologia já ouvira falar no Delírio Sensitivo-Paranóide de Auto-Referência, onde tudo era suspeito e lhe dizia respeito, estava perdendo a crítica do razoável e do intencionalmente dito com lucidez.

O jantar animou-se um pouco mais. A conversa tomou vários rumos. Falaram dos escândalos do Governo, da vitória de Obama, das roubalheiras das Empreiteiras, dos pedófilos da Igreja. Cerca de meia-noi­te, Carlos e Luísa retiraram-se e os dois foram dormir.

*     *     *

Mônica ainda dormia, quando Leopoldo saíra. Às dez horas, Madalena acordou-a. Levantou-se preguiço­samente. Mirou-se no espelho. Achou-se bela e bem for­mada. Duas horas depois, já quase pronta, desceu para almoçar. Leopoldo almoçara na cidade mesmo. Mônica fez as refeições sozinha. Ardia de impaciência por ir ter com Ricardo. Queria mostrar-lhe a carta, pedir-lhe conselhos, fazer-lhe carinhos, beijá-Io, abraçá-lo, uma infinidade de coisas.

– Madalena! Madalena!

– Que há, D. Mônica?

– Olhe Madalena, hoje é dia de visita a Lili.

Vou sair e volto para jantar mais ou menos às 19 horas.

– Está bem, patroa.

Mônica saiu. Tomou um táxi e dirigiu-se para o Colégio Sion. Permaneceu cerca de hora e meia com a filha. Perto das 15:30 horas estava chegando à casa de Ricardo.

*     *     *

Abriu a porta da rua. Entrou de mansinho. Foi até o quarto do amante. Ricardo dormia ao sono solto. Há anos, desde que se amasiara com a viúva Seixas, só fazia isso: dormir. A viúva, morta há alguns anos, deixara-lhe toda sua fortuna, que ele dissipava tranqüilamente dor­mindo. Mônica aproximou-se pé-ante-pé e fez-lhe cócegas no bigode. Ricardo mexeu-se. Mônica enfiou seu dedo mínimo na orelha esquerda do amante. Ricardo acordou. Piscou algumas vezes e puxou Mônica para os seus braços. Beijou-a prolongadamente. Mônica debateu-se, conseguindo ficar livre.   

– Ricardo, você está amassando meu vestido. E de­pois, como vou explicar em casa? Além disso, aconteceu uma coisa horrível: recebi uma carta anônima.

Ricardo lançou-lhe um olhar voluptuoso. Puxou-a novamente. Novamente Mônica soltou-se.

– Ricardo, já lhe disse que não estou para brincadeiras. Além disso, a carta que recebi…

Mônica estava à beira de uma crise de nervos. A tranqüilidade do amante aborrecia-a. Ricardo perturbou-se, ergueu-se na cama.

– Bem, que diz a carta?                                     

– Alguém sabe de tudo que há entre nós.

Ricardo saltou da cama. Seu rosto refletia um espanto imenso. A máscara do cinismo caiu-lhe da face. Abriram-se os olhos, franziu o cenho.

– Onde está a carta?

Mônica entregou-a. Ricardo leu avidamente.

– Quando você recebeu isto?

– Ontem à tarde, quando Leopoldo saiu.

– E quem a entregou?

– Foi um menino, um mensageiro de cabelos loiros e olhos negros, bastante bonitinho.   

– Mônica, deixe de pilhérias. O caso é sério. Nossas vidas correm perigo e você ainda graceja.

Mônica olhou-o com raiva. Ele então se preocupava com sua vida e não com seu amor. Que miserável!

– Mônica, você suspeita de alguém?

Mônica disse-Ihe tudo que pensara. Descreveu mi­nuciosamente o jantar em que Luísa e Carlos tomaram parte. Ricardo estava visivelmente horrorizado. Pôs-se a andar inquieto de um lado para outro. Fumava nervosa­mente. Afinal falou:

– Mônica, que faremos? Meu amor, o que faremos?

Mônica olhou-o irritada. Então, era ele quem perguntava o que deveriam fazer? Ele que deveria aconselhá-Ia, guiá-Ia, enfrentar sem nenhum temor o perigo… Uma idéia louca passou-lhe pelo cérebro.

– Fujamos, Ricardo!

Ricardo olhou-a demoradamente. Acalmara-se bastan­te.

Mônica já antevia seu sorriso cheio de cinismo. Sim, pensou ela, Ricardo já saíra da surpresa do choque, já voltava a ser o mesmo Ricardo de sempre. É claro, ele não poderia mudar. Ricardo falou enfim. Sua voz grave e pausada caía como marteladas no ouvido de Mônica.

– Vamos esperar um pouco mais, querida. Não posso fugir agora. Investi em um empreendimento que deverá dar-me um bom lucro. Esperemos um pouco. Mônica sorriu tris­temente. Negócios, negócios. Até Ricardo se preocupava agora com eles? Deu alguns passos. Sentou-se na chaise-Iongue. Cruzou as pernas reclinou os seios provocantemente cerrou os olhos.         

– Que belos seios você tem, Mônica!

Mônica sorriu. Gostava que Ricardo elogiasse suas mamas, que havia sido sempre seu maior enlevo. Quando Elisa nasceu custara muito a convencer Leopoldo que arranjasse uma ama de leite para o bebe. Tudo, tudo fa­zia por elas. Ricardo já o elogiara milhares de vezes. Mas como era bom ouvi-Io elogiar mais uma vez.

Quando Mônica saiu, já escurecera. Tomou o carro e às 19:45h estava em casa.

*     *     *

A noite dessa terça-feira decorreu calma. Também a quarta acabou sem novidades. No dia seguinte, Leopoldo saiu, como de costume, bem cedo. Mônica levantou-se tar­de. Almoçou, começou a vestir-se para ir visitar Elisa e depois ir ter com Ricardo. Estava inquieta e nervosa. Pen­sou em Ricardo. Como o amava! É verdade que ele a en­tristecera, não reagindo como ela esperava. Mas depois, os beijos, os carinhos, tudo contribuíra para recolocar o amante no pedestal.

A campainha soou. Mônica foi atender. Abriu a porta. Um rapazinho sardento cumprimentou-a alegremente.

– Carta para D. Mônica de Andrade.

Mônica viu estendido nas mãos do menino, o retângulo de papel azul. Um brilho de satisfação encheu-lhe os olhos. Poderia descobrir agora, o autor das missivas!

– Menino, quem lhe entregou esta carta?

– Foi um mocinho moreno que eu não conheço.

Mônica recuou, despeitada e abatida. Fechou a porta. Nem tinha mais coragem para abrir a carta. Mil pensamentos negros entorpeciam-lhe o raciocínio. Voltou a sentir dor de cabeça. Afinal abriu o envelope, desdobrou o papel azul encimado pelas flores vermelhas, e leu em voz baixa:

"Minha jovem senhora

Como previra não receou minha ameaça. A pessoa a quem encarreguei de vigiá-la, descreveu-me todos os seus passos de terça-feira, de sua casa até à de Ricardo. Aviso-a pela última vez, que se tornar a freqüentar a casa do seu amante, contarei imediatamente tudo a Leopoldo."

"X"

*     *     *

Mônica fechou a carta. Colocou-a no seio e preparou­-se para sair. Com que então alguém a seguira. Ah! Bem se lembrava de ter visto dois carros verdes muito parecidos. Aquela observação, sem importância, pareceu-lhe então de suma gravidade. Era isso sim, no carro verde ia o seu vigia. Não eram dois os carros, mas apenas um; antes o vira perto de sua casa e mais tarde estacionado defronte à casa de Ricardo, do outro lado da rua. Como fora tola! Não eram dois os carros, mas um apenas. Ah! Mas descobriria seu perseguidor.

Dirigiu-se a pé para o centro da cidade. Ao passar, os homens olhavam-na atrevidamente, arriscando propostas. Tomou um automóvel. Visitou a filha e foi para a casa de Ricardo. Havia tomado a decisão de fugir com o amante. EIe não se recusaria a isto, diante daquela segunda carta. Na Av. Dr. Arnaldo desceu. Um carro passou logo após, lentamente. "Lá vai meu perseguidor", pensou Mô­nica.

Abriu a porta e dessa vez, Ricardo já a esperava. Mô­nica aninhou-se em seus braços. Mudamente, estendeu-Ihe a carta. Ricardo leu-a avidamente. Como da primeira vez, estava espantado e nervoso.    

– Mônica, precisamos evitar que seu marido saiba tudo. Não convém que nos arrisquemos tanto. Não nos vejamos por algum tempo. Mônica olhou-o surpresa. Depois encheu-se de raiva.      

– Ricardo, o que você está dizendo? Sem você não posso viver. Será possível que você tem medo de Leopoldo?

-Querida, não confunda prudência com medo. Nes­tes dois dias pensei longamente sobre o caso e cheguei a essa resolução. É melhor para nós dois. Seu marido é violento, Mônica, e você é ainda muito moça. Esperemos al­guns meses. Vou por algum tempo ao Rio Grande do Sul. Sigo amanhã, pois já concluí aquele negócio de que lhe falei. Quando voltar, eu a procuro.

– Ricardo, você está com medo?

– Está bem, se você acha que estou, estou.

Mônica estava dolorosamente decepcionada. Naquele instante Ricardo era para ela o mais ínfimo dos homens, menor ainda que o próprio Leopoldo. Arriscou a última cartada.

– Fujamos, Ricardo, fujamos, meu amor!

Ricardo olhou-a, com olhar oblíquo e dissimulado. Sorriu, depois com certo cinismo:

– Impossível, Mônica, impossível.

Mônica suplicou.

– Mas, Ricardo devo enfrentar sozinha o risco? E se Leopoldo descobrir, que farei?

– Não sei, Mônica. Depois daquela primeira carta, você não devia ter vindo mais aqui!

Mônica olhou-o com os olhos cheios de lágrimas. Um desespero imenso tomava-a por inteira. Estava exasperada. Então, por aquele covarde, arriscara a vida e traíra o marido?

Afinal não se conteve e explodiu.

– Ricardo, você é um ser miserável covarde. Arrepen­do-me de ter pensado que você era meu ideal. Vou-me embora e nunca mais quero vê-lo.

*     *    *

No caminho de volta para casa dá-se conta que sentia o mundo inteiro a observá-la. A humanidade tornara-se a figura e ela o fundo a refletir o julgamento de todos: esposa infiel, sem caráter, leviana, uma verdadeira meretriz.

Bastava alguém do carro ao lado cruzar-lhe um olhar para sentir-se condenada à expiação eterna.

Mônica se defendia dizendo-se: "Mas, tudo que fiz foi por amor." "Estava disposta a me separar para começar vida nova com o homem dos meus sonhos."

Sem mais, entrou em um supermercado. Estacionou o carro. Andando sempre de cabeça baixa para não ler sua sentença de culpada no olhar de todos, dirigiu-se à seção onde sabia que oferecia raticida "chumbinho". Comprou três frascos.

Em casa, na copa, munida de uma garrafa de Coca-Cola, deglutiu a mercadoria fatal.

Era o fim de uma existência malograda.

 

*     *     *

 
Quando, momentos antes, Mônica havia saído de sua casa, Ricardo sorrira.

Estava livre enfim!

Poderia agora ir ter com Liliane lá no Rio Grande do Sul. Liliane era tão sedutora, tão provocante! Iria escrever-lhe agora mesmo. Abriu a gaveta da secretária, tomou a caneta e começou a escrever. De repente parou, sorriu um sorrisozinho insolente e cínico que lhe bailou nos lábios, com seu olhar oblíquo e dissimulado, quando pensou que jamais pudera compreender o porquê preferira sempre aquele tipo de papel de carta – azul com rosas vermelhas…

 

*     *     *

Notas:

1a. – Um conto para mostrar aos nossos alunos de Residência em Psiquiatria e aos psicólogos em Estágio de Psicopatologia Clínica, o quanto a Ansiedade Persecutória pode levar à insuficiência da auto e hétero-crítica (juízo reflexivo), chegando a quadros deliriformes graves.
2a. – Percebam que não importa se há motivos reais ou não, mas sim, os dados objetivos que o transtornado possui e a crítica que deles os faz.
3a. – Um exemplo que se repete com freqüência é o do alcoolista crônico. Provavelmente por estar semi ou impotente, passa a fantasiar, sem um dado comprovável, que a esposa o trai. Muitas das vezes isto é um fato real, porém não elimina a atividade delirante do paciente.
4a. – Recordando: o termo deliriforme (duas raízes latinas, e, portanto, melhor que deliróide, onde há uma raiz latina e um sufixo grego – gregos e romanos nunca se deram bem), refere-se a quando a razão, por catatimia, isto é,  totalmente dominada pela emoção e, portanto, secundariamente, perde a sua lógica interna; o termo técnico delírio se mantém apenas quando o transtorno do juízo – julgamento crítico – for primariamente da razão.
5a. – Reporto aos nossos leitores a "bem bolada" novela de Machado de Assis, "Dom Casmurro", onde Bento constrói um Delírio de Ciúme sobre a conduta de sua esposa Capitu, sem nunca ter possuído dados objetivos, de fato. Qualquer dúvida, leiam nosso artigo "O olhar de Capitu… e a patografia de Bento", neste Site.

6a. Só para completar, este conto mostra também um sedutor psicopata.

Adalberto Tripicchio
Psiquiatra e Logoterapeuta
Site: http://adalbertotripicchio.com
E-mail: [email protected]
São Paulo – SP

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