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O corpo sem morada: a doença psicossomática como expressão do desfundamento da pessoa humana na sociedade contemporânea

Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável.
Muita coisa importante falta nome. (Guimarães Rosa)

Para pensarmos a questão do corpo como corpo-parágrafo que revela-desvela um fragmento de um texto a partir da questão que a psicossomática nos traz, acreditamos ser necessário, antes, refletirmos sobre o que seja corporeidade, lugar, sustentação e cuidado dentro do cenário contemporâneo.
O diagrama que a pessoa humana faz de sua corporeidade, articulado no tempo e no espaço dá-se o nome de esquema corporal, que é diferente de psique, já que esta é uma aquisição, algo que ocorre ao longo de uma historização. A psique é fruto da elaboração imaginativa do corpo organizada em fantasias. Entendemos elaboração imaginativa como o experienciar imagens, referindo-se a todo campo sensorial. As imagens se abrem nas diferentes partes ou funções corporais e veicula um certo modo de estar presente na vida. A corporeidade é semelhante às zonas erógenas, que apresentam certa maneira de a pessoa humana estar presente frente ao outro. Qualquer dimensão da corporeidade é um certo modo de estar frente à vida. Isso ganha significação na relação mãe – bebê, da sua qualidade recorrente, sendo significadas um pelo corpo do outro. Assim sendo o corpo revela o lugar que uma pessoa ocup a no mundo, sendo este sempre relacional, não individual. Em um gesto está presente a pessoa humana e aqueles que os constituíram. Dessa forma, o corpo tem possibilidade de ser morada e lugar de descanso para o self se esse corpo habita o outro. Safra, ao retomar o conceito winnicottiano de placement, articula-o com o habitar, que é ter um lugar e com o holding, ou seja, haver a oferta de um tempo e de um lugar. Igualmente articula-o com o idioma pessoal de um sujeito humano, sendo este o acolhimento no que é singular nessa pessoa humana, e também com o processo de personalização, que é o corpo ser banhado pela presença do outro, acolhido por um lugar.

Por que trazemos esses conceitos winnicottianos para começar a pensar sobre a dissociação psique-soma na contemporaneidade? Porque acreditamos, a partir da análise da sociedade na qual estamos inseridos, que é exatamente a falta de lugar, de oferta de tempo, de acolhimento e de presença do outro na vida da pessoa humana que faz com que hoje a cisão psique-soma esteja em grande evidência na clínica.

O corpo, hoje, não se constituiu plenamente como morada, como lugar, para muitas crianças e jovens. As funções parentais estão em questão, falhas em seus papéis bio-psico-sociais. Hoje em dia, estamos diante de um mundo mutante, mutável, em que até o nome que podemos dar a ele cria alguma questão.

A família não mais é sólida como padrão, como referência. Tornou-se líquida ou está se liquefazendo. Há uma des-substancialização dos papéis parentais. Zizec acrescenta à idéia de fluidez baumaniana a idéia de perda de substância da contemporaneidade. A desrealização do real, o seu esvaziamento enquanto tal, é mostrado de forma irônica a partir dos produtos que parecem, mas não são, assim como poderíamos dizer que nossa sociedade parece ser algo e no fundo não o é, assim como acreditamos que vemos um ser íntegro em nossa frente e não o temos: a criança, na contemporaneidade, é uma pessoa fragmentada.
Winnicott já nos marcava essa questão quando descrevia a quem pertenceria o bebê. Diz-nos:
O corpo da criança pertence ao pediatra.
Sua alma pertence ao clérigo da religião.
Sua psique pertence à psicologia dinâmica.
Seu intelecto pertence ao psicólogo.
Sua mente, ao filósofo.
A psiquiatria reivindica os distúrbios mentais.
A hereditariedade pertence ao geneticista.
A ecologia exige seus direitos sobre o ambiente social.
As ciências socias estudam a estrutura familiar e suas relações com a sociedade e com a criança.
A economia aborda as tensões e pressões devidas às necessidades conflitantes.
A lei entra em cena para regulamentar e humanizar a vingança pública quando se trata de comportamento anti-social.

Hoje em dia, o que deparamos em nossa prática clinica é com uma fragmentação da pessoa humana que a nós chega. Em que sentido falamos de fragmentação? Recebemos crianças muitas vezes totalmente catalogadas e estudadas em várias áreas, mas sempre com a mesma queixa: apesar de todo o esforço dos pais, eles não sabem o que as fazem não aprender, agredir, adoecer sempre. Ou seja, parafraseando Winnicott, a quem cabe "cuidar" (no sentido de sustentar, de dar holding) da criança hoje em dia?

Seu corpo pertence ao pediatra, seu brincar (quando há espaço para isso) aos cuidadores especializados, já que desde cedo essas crianças-bebês já estão em creches; seus aprendizados à escola e suas dificuldades de aprendizagem aos psicopedagogos; suas angústias e medos aos psicólogos e psicanalistas, e assim por diante. Fora isso, o tempo que é dado a essa criança que é chacoalhada de um canto a outro, é quase nenhum. Fora a fragmentação de seu corpo temos a fragmentação do seu tempo livre para ser criança e fazer o que uma criança deve fazer – brincar. Ou seja, crianças pequenas possuem agenda de executivos… Se não há espaço para ser ouvido, sentido, tocado, olhado, quem falará por essa criança emudecida? Seu corpo. Este fala através de distúrbios que, para cada um, há um nome e, claro, para cada um há um remédio, um tratamento. Neste processo acaba-se não percebendo que o mais importante não está sendo olhado: essa criança como um ser integral, e esses pais como seres capazes de dar conta de seu filho, já que retiraram a potência dos pais e a colocaram-na nos especialistas que sempre têm algo a dizer a mais sobre como cuidar dos filhos dos outros. Diante dessa realidade esvaziada de sua substância podemos acrescentar às suas características ser "a modernidade ‘fluida' uma época do desengajamento.O que ocorre nesse movimento contemporâneo é o desfundamento, tanto dessa criança quanto desse adulto. Lewkowicz relaciona o desfundamento ou desraizamento da infância à falha ou ao desamparo das instituições sociais vigentes em relação às crianças.

Se muitos têm a falar e a dizer do bebê, o que se cala é a comunicação dos pais com esse bebê, não fundando, a partir de uma comunicação silenciosa, um padrão de confiança, fidedignidade, nem de ritmo e sustentação. Ou seja, aqueles que deveriam ser os responsáveis pelo bebê se encontram em ausência, não exercendo a sua função de pais suficientemente bons, dando a esses bebês um ambiente estável. Desautorizados, como esses pais podem sustentar suas funções subjetivas para com este bebê?

Se repararmos no que nos diz Winnicott em relação às falhas dessas funções, perceberemos que se o ambiente não é suficientemente bom, e sim deletério ou tantalizate, ou excessivamente ruim, o que ocorre são colapsos, agonias impensáveis porque o bebê não possui, em si, condições de lidar com o que está vivendo naquele momento. Belmont enfatiza a figura dessa mãe deletéria ao montar uma imagem contundente para o não acolhimento de um gesto por parte do ambiente maternante: "o esboço do humano dentro do bebê precisa das mãos e do verbo e do olhar humanos para se tornar realidade. Começa na lágrima do bebê – quando não percebida – a estrada que pode levar ao self em diáspora". Maia entende que a lágrima não percebida é o gesto não acolhido pela mãe. O self em diáspora de si mesmo responderia à pergunta: o objeto sobrevive ou reage? Ele reage ou quase não sobrevive. Esse self em diáspora continua tentando ser visto e ser ouvido por meio de uma comunicação que denominaríamos também de comunicação em diáspora.

Interessante aqui colocarmos o que diz Winnicott (1994a) sobre a questão da doença psicossomática e os padrões que podem gerar o aparecimento da mesma. No padrão bom de desenvolvimento uma criança brinca só na presença de alguém. No padrão mau que se encontra na raiz da enfermidade psicossomática, a criança chorou e a mãe não apareceu. (…) O grito que ela esta buscando é o último grito que se dá antes de a esperança ser abandonada. Desde então o gritar não tem mais uso, por falhar em seu propósito. A relevância disso (…), que tem a ver com a interação psicossomática, é que o não acontecimento do não gritar é, em si próprio, uma negação ou expulsão de uma das coisas muito importantes que ligam a psique e o soma, quais sejam, chorar, gritar, berrar, protestar iradamente. (…) "a esse não grito que se acha no caminho, isto é, o temor de não ser ouvida ou a desesperança a respeito de o gritar produzir um efeito".

O colapso já vivido foi o grito não acolhido, não ouvido, ignorado, ecoado no vazio sem o preencher o outro, ficando o bebê no abismo no qual aquele que ele confiava e despendia em seu desamparo saiu e o deixou ali, sozinho… e ele não sabe como lidar com isso, ele não consegue sequer registrar o que vive… congela esse momento, congela-se… até que algo apareça a denunciar a esperança de ser re-ouvido em seu choro desamparado… grita o corpo sem voz mas jamais calado, buscando sempre alguma coisa para dar sentido ao não sentido do vivido… Esse bebê-criança busca, esperançosamente, uma resposta ao grito que ficou em sua garganta ecoando e não achando um interlocutor. O grito, o choro, o roubo a destruição aparecem como linguagem inter-relacional, mesmo que não entendida pelos que convivem com essa criança. Por isso Winnicott relaciona a doença psicossomática com a questão da dos comportamentos anti-sociais no aspecto da esperança expressa pela criança em relação à privação sofrida. Ela busca, com essas defesas, dar conta do não vivido ou do não experienciado ou, se experienciado, experienciado de tal forma irruptiva que esta experiência teve de ser congelada.

Outro aspecto interessante relacionado a essa intrusão máxima do meio ambiente, é o sentimento de morte e vazio que essas crianças e adolescentes nos trazem. Winnicott entende, e com ele nos concordamos plenamente, que a morte, nesses casos, "é significado, por aquele que não era suficientemente maduro para experienciar essa intrusão, como aniquilamento. É como se desenvolvesse um padrão no qual a continuidade do ser fosse interrompida pelas reações infantis do paciente as intrusões, com estas sendo fatores ambientais que se permitiu invadirem por falhas do meio ambiente facilitador". A questão do vazio que esses clientes trazem-nos vai em outra vertente, ou seja, não podemos pensar que houve traumas mas sim nada acontecendo quando algo poderia muito bem ter acontecido.

Para Winnicott, e mais uma vez com ele concordamos, o vazio é um pré-requisito para o desejo de receber algo dentro de si. Mas se o vazio não é experienciado como tal, desde o começo, ele aparece então como um estado que é temido, mas, contudo, compulsivamente buscado. Assim sendo, a ameaça psíquica é percebida como fisiológica, destruindo-se a associação entre os estados afetivos perturbadores. Portanto, como nos diz Winnicott, o objetivo da doença psicossomática é justamente "conduzir a psique para longe da mente, de volta à associação íntima original com o soma". O sintoma é uma tentativa de resolução infantil da questão de SER. A doença psicossomática tenta solucionar o impasse através de uma resposta dissociada: EU e NÃO EU ficam em suspenso. Ficar atento a detalhes como a autonomia precoce da fala, da marcha, é uma postura vital já que esses fatos nos indicarão um déficit na função materna, mostrando que a criança teve de, prematuramente, estabelecer as diferenças entre ela e a mãe.

Se retomarmos a epígrafe de nosso trabalho veremos o quanto Guimarães Rosa soube nos falar dessa não libidinização do corpo do bebê, ou do ser humano, nesse liquefazer do mundo que nos cerca. Diz-nos: "Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita coisa importante falta nome". Não se ter um lugar para poder descansar dentro de si mesmo, uma zona de manobra, como denomina Winnicott o espaço potencial, não ter em si referências constantes de afeto e de ritmo e fidedignidade desta morada, é entrar em um estado de agonia impensável. Talvez, por isso, diz-nos o poeta que não há o que ser sentido, há somente uma transformação pesável e, por pesável, pesada, insuportável, mas ao mesmo tempo muito importante (lembremos o valor positivo dado por Winnicott à doença psicossomática), falta-nos nome… E o que advém, ao invés de um ser humano em seu going on being, é exatamente o que outro poeta, Mário de Sá Carneiro, nos fala, "um templo prestes a ruir sem deus/ estátua falsa ainda erguida ao ar". Ar quieto, ar com cheiro de morte, ar vazio, vácuo, sem sentido, mas ainda sendo sustentado pela esperança de o grito ser ouvido, por isso ainda o ainda no verso "estátua falsa ainda erguida ao ar". Estátua falsa porque dentro dela há o vazio, ela está prestes a ruir se não atentarmos ao apelo que o corpo nos fala, nos grita…

* Este trabalho foi apresentado no IV Simpósio de Psicossomática Psicanalítica, Sedes Sapientiae, São Paulo, 2007.

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Autoras

MARIA VITÓRIA MAMEDE MAIA. Doutora em Psicologia Clínica(PUC-Rio), Mestre em Literatura Brasileira (PUC-Rio), Psicóloga clínica, Psicopedagoga clínica CEPERJ, Professora da Pós-Graduação do ensino a distância da PUC-Rio – CCEAD, Professora do curso de especialização em Psicopedagogia – CEPERJ, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-RJ).

NADJA NARA BARBOSA PINHEIRO. Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia (UFRJ), Doutora em Psicologia (Puc-Rio), Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Desenvolvimento Humano (NEDHU-UFPR) e do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-RJ).

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