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“Tô virando do mal”: reflexões sobre um atendimento de um adolescente com comportamentos anti-sociais .

Todos sabemos que em qualquer escola há indisciplina. Igualmente sabemos que em qualquer escola há regras de disciplina. Todos sabemos que os alunos nem sempre são disciplinados. Todos sabemos…. mas no fundo quem se importa com aqueles que vão para além do suportável, com aqueles que roubam, quebram, destroem, machucam, se machucam, que apáticos igualmente incomodam porque nos mostram o quanto estamos impotentes diante de um caos que se forma a partir de fatos corriqueiros de um dia-a-dia escolar?
O presente trabalho tem como base de discussão a teoria winnicottiana sobre o comportamento anti-social, na qual nos é mostrado o quanto uma criança, com comportamentos fora dos padrões esperados, está a pedir algo mais do que somente atenção: ela pede igualmente contenção. Só que esta contenção não terá efeito se somente for marcada pela punição, posto ser necessário ao limite, amor. O que isso significa? Dentre muitas coisas significa a sobrevivência daquele que se propõe a ajudar, a ouvir o apelo deste ato destrutivo, indisciplinar, e entender que estes atos são tentativas de se falar de algo que, sem palavras, aparece concretamente no meio que circunda esta criança: lápis são quebrados, bolinhas de papel são jogadas, brigas no pátio da escola, canetas que somem, mochilas que se destroem quase que por combustão espontânea.

Além de analisar o que seja sobreviver à indisciplina, o presente trabalho tenta discutir, mesmo que de forma sucinta, o que podemos fazer para lidar com essas crianças que nos demandam, a partir da quebra da disciplina, da norma, da indisciplina, um apelo: você con-fia em mim? Podemos fiar junto (con-fiar) algo que me sustente por um dia, depois por dois, depois por muito mais tempo e esse fio não me faltar nem me sufocar? Será você, que me estende a mão nesse momento, capaz de ter dedos ágeis o bastante para desfazer os nós que já se formaram nessa linha chamada de “minha vida”, mas igualmente dedos fortes para não desistir de tentar desatar nós e fazer, como num laço, re-surgir um abraço, um colo, uma contenção amorosa que os braços maternos antes davam, que os braços paternos antes protegiam e que, de repente, não mais o fizeram?

Essas perguntas são as endereçadas a nós, profissionais. Saberemos não somente respondê-las teoricamente, mas respondê-las em atos em nosso ambiente de trabalho? O presente estudo tenta dar algumas possíveis respostas a elas e assim fiar junto com o ouvinte possibilidades de amorosidade na indisciplina a partir da disciplina que é o ato de escrever.

O que é ser criança e ser adolescente nesse tempo denominado contemporâneo? A divisão infância/ adolescência quase desapareceu, posto que a adolescentificação das crianças faz da adolescência não somente um almejado lugar identificatório para elas mas igualmente para os adultos, os adultescentes ou kids adults: assim, sombreando a infância e eclipsando a adultez, o que temos são adolescentes quase que eternos. Não havendo padrões identificatórios, as crianças ficam a mercê de pares de iguais, não havendo a construção de um espaço simbólico realmente estruturado e consolidado. É a partir da diferenciação que surge a possibilidade de simbolização e de separação. Se pais e filhos se sombreiam, como o espaço do simbolizar pode aparecer sem estar, de certa forma, truncado ou mal constituído? Como podem esses filhos re-conhecerem o seu direito de autoria de pensar e criar?

Para Alicia Fernandez “autoria é um processo e ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de uma produção”. Se um sujeito não se re-conhece autor ele não conseguirá manter a sua autoria, ou seja, não poderá produzi-la nem responder por ela, não poderá se responsabilizar por seu ato criador e criativo.

Há uma imagem desta autora que se articula de forma interessante com o que estou até agora pontuando e a ela juntarei um desenho de um jovem que vocês irão conhecer hoje. Diz-nos Alicia: “o pensar é como um barco e para o navegante existe algo pior do que a tempestade: a calmaria que precede a tempestade. A ausência de ventos”. Se vocês repararem neste desenho alguma coisa que antecede a tempestade está anunciada… Esperem um pouco, logo ela chegará nesta sala.

Para se poder criar sabemos, através do pensamento winnicottiano, que temos de ter tido a oportunidade de poder destruir uma criação para depois poder vê-la ressurgir em um ato de reparação/reconstrução. Temos de ter vivenciado o vento. Na ausência de vento não há criação! Assim, a primeira experiência de autoria é o brincar, trazendo com ela uma agressividade saudável, quando não se pode brincar, não há vento e da mesma forma não há aprendizagem. Para essas crianças não há graça no brincar, e, assim sendo, não há graça no aprender porque aprender advém da possibilidade de se ter podido brincar, um dia, em liberdade, em confiança, na presença de alguém que não desviou seu olhar para outra coisa que não fosse aquela criança que se oferecia como uma coisa ímpar, que oferecia a essa pessoa o seu momento de criação. Mas para eles o olhar foi desviado para bem longe deles. Quando não é possível brincar, aparecem a submissão e o sentimento de vazio: a criança se aborrece, se isola ou fica indiferente.

Crianças e jovens violentos são igualmente crianças e jovens violentados. A eles também foi dirigida uma violência, para a qual eles respondem com igual agressividade. De que violência estou falando? Da violência do abandono, da perda de confiança, da perda de fidedignidade anteriormente tida por essas crianças. Como bem nos marca Winnicott, em Privação e Delinqüência, elas não ficam difíceis à toa. Na maioria das vezes não sabem o que fazem ou por que fazem isso. Suas atuações, em forma de comportamentos anti-sociais, expressa alguma coisa, e nesse expressar devemos aprender qual é a nossa parte nesse latifúndio retalhado e retaliado de suas vidas.

Portanto, a patologia do brincar, ou da transicionalidade, advém principalmente do fator temporal, mais especificamente da falha do tempo de retorno da mãe, já que para que a mãe continue a existir internamente na criança pequenina ou no bebê como imago, esta necessita ser reafirmada pela sua presença real. A patologia do aprender, ao meu ver, igualmente advém do fator temporal, de tentarmos impingir a essas crianças um padrão que não as respeita como sujeito do conhecimento, que não as respeita como pessoa única e a vê como massa a ser guiada pelo mesmo caminho que serviria a todos e, dessa forma, a qualquer um ou a nenhum.

No momento em que chegam na escola, ou em nossos consultórios, o que essas crianças nos pedem é exatamente que sobrevivamos aos seus ataques, que estejamos ali, do lado delas, com elas, fazendo por elas algo que um dia alguém já fez, mas deixou de fazer depois: olhá-las e reconhecê-las como sujeitos autores, escutá-las realmente, ouvindo seus apelos mudos, conversando com elas se as percebemos mudas, silentes e fechadas em um mundo onde a alegria de viver não entra. Por isso “a noite do pânico”.

Acredito que aqui possa trazer para vocês a história de um dos muitos meninos que já passaram pelas minhas mãos com queixa de fracasso escolar e agressividade máxima. Ao menino do desenho darei o nome de Flicts, o mesmo nome do personagem de Ziraldo. Esse menino, igual a esse lápis de cor, não possui lugar na “caixa de lápis” tão supostamente arrumada da nossa sociedade. Flicts chegou a mim no atendimento do CIAP-PUC-Rio, em 2004, quando eu ainda fazia meu doutorado nesta instituição e hoje ele é por mim atendido no NOAP-PUC-Rio. Quem é Flicts? Ele é um adolescente que ninguém quer por perto porque, aos 11 anos, cursando a terceira série de um colégio público, incomoda e bate; matou afogados no tonel os gatinhos que nasceram em sua casa porque podiam tirar o lugar de atenção e carinho que ele recebe de sua mãe adotiva, mãe esta que o pegou para criar quando sua mãe biológica o abandonou em um terreno baldio.

Flitcs na escola é um terror ambulante, nunca termina qualquer tarefa, seu comportamento o faz ser sempre apontado como o responsável por tudo o que de ruim acontece por lá, mesmo que não tenha sido ele quem tenha feito alguma coisa necessariamente. Durante quase um ano e meio, as sessões com Flicts tiveram sempre o mesmo formato: jogávamos dama e de sua vida eu jamais sabia nada. Se perguntava a ele qualquer coisa, dizia: Fale com minha mãe. No início, diante de sua mudez, eu até falava com ela, mas um dia resolvi que não mais falaria com ela para saber dele. Eu lhe disse: “Flitcs, a partir de agora eu saberei de você por você, não por ninguém mais. Você sabe falar, logo eu não preciso ouvir outras pessoas, mesmo que às vezes chame sua mãe ou vá a sua escola”. A mudez continuou, mas às vezes ele me contava alguma coisa. Flicts começou a ter um lugar para ele, começou a acreditar que eu acreditava nele e não precisava de ninguém mais para ser um intermediário na sua história de vida.

Ao longo de um longo tempo, enquanto jogávamos damas, íamos falando de lugares e, como as casas das damas, íamos mudando peças e andando na história desse menino. Quando o tráfico tentou aliciá-lo, eu fiquei muito preocupada e não escondi isso dele. Nesse dia eu soube por ele que ele nascera no meio do tráfico, que um dos traficantes fizera seu parto, que sua mãe e pai biológicos trabalharam para este traficante e que seu pai morrera por lá. Eu lhe perguntei se ele queria seguir essa mesma história tantas vezes já vista por ele. Flicts disse somente não, um não baixo, mas me disse não e me disse igualmente que temia mais minhas broncas que o traficante porque nas minhas broncas eu diziam a ele que gostava dele e me preocupava com ele. Ele não queria me perder.

Passou o ano, Flicts melhorou o comportamento na escola, conversei com a professora e com ela tracei uma forma de lidar com a agressividade dele; impliquei a mãe nas tarefas escolares e me encarreguei de toda semana olhar o seu caderno e apontar para ele o quanto ele havia conseguido fazer coisas, muito mais do que não fazer coisas. Um dia Flicts desenhou para mim, seus desenhos são negros, sempre muito violentos e perguntei a ele o que ele pensava que seria quando fosse homem grande. Ele, que sempre respondera que seria um bandido, disse-me que achava que poderia ser um desenhador, porque a professora tinha dito, e eu também dizia, que ele desenhava bem. Eu sorri e disse que tinha certeza de que ele seria um ótimo desenhista. A partir deste desenho agressivo, “o gato tigre”, propuz a ele um enredo de transformarmos esse gato e assim o gato ganhou bigodes e passou a ser “ o gato francês tigre”. O gato foi ganhando riscos a mais e além de ter virado francês passou a ser um mutante, a poder andar na água porque era “ um gato francês tigre tubarão”. O riso apareceu na sessão, Flicts jamais ria, desta vez gargalhava. Quando esboçou a boca deste gato sorrindo, imediatamente ele colocou um rato sendo comido nesta boca e explicou que o gato comeu o rato porque o rato comeu a barbatana de cima.

Passou o tempo e um dia ele se fechou na sala de atendimento do NOAP e falou para mim: Espera. Esperei e, quando ele disse que eu podia entrar, havia na mesa muitos desenhos, alguns copiados, outros não e ele me falou: este daqui é seu.

Passaram-se 3 sessões e Flicts desenhou de novo para mim Era outro desenho bem difícil de ser encarado. Ele se desenhara virando do mau. Desta vez eu quis colocar “o antes do mau em cena” e perguntei a ele como ele era antes, já que no desenho que ele fizera, ele dissera a mim “ eu to virando”. Apeguei-me no tempo verbal em gerúndio: ainda não era, estava sendo. Flicts diz que estava sendo transformado em alguém muito mau por uma máquina de criar monstros do senhor Máquina. Flicts desenhou o que estava fazendo antes e desenhou-se antes de ser transformado em mau . Eu falei a ele que muitas vezes éramos bons e em outras éramos maus, mas que muitas vezes éramos vistos ou transformados em maus por outros motivos.

Na sessão seguinte Flicts mais uma vez pediu que eu esperasse. Quando eu entrei havia no centro da mesa uma flor e muitos desenhos sem sangue ou morte, mesmo que sem nenhuma cor ainda. Era o último dia do semestre. Flicts, neste dia, sorriu quando se despediu de mim e me abraçou.

Ao voltarmos das férias Flicts outra vez me pediu que eu fechasse meus olhos porque nesse dia de retorno ele queria me fazer uma surpresa. Passei uns 10
minutos com os olhos fechados. Uma hora ele chegou para mim, me colocou de costas e disse “não abre os olhos, eu confio que você não vai abrir”,respondi que não abriria. Ele me rodou e disse: “pronto, para você”. Pela segundavez vi desenhos de Flicts com cor, a primeira foi quando ele soubera que eu não o deixaria quando saísse do CIAP-PUC-Rio, ele pegara a cola colorida e fizera 2 desenhos e um recado “ para a vick do Flicts”, deixara no centro, mais uma vez, uma flor. Eram desenhos violentos ainda, e como não seriam? Mas havia cor e falavam de um coração, provavelmente o dele, diante da suposta necessidade de voltar para a casa de sua mãe biológica, já que a mãe de coração estaria se separando do seu pai. Poderia ser também o coração da mãe de coração tão doído ao ver seu casamento ir se desfazendo e com isso igualmente a vida de Flicts. Nada perguntei diante desses desenhos, ele estava contente de ter descoberto as cores na caixa apesar de estar falando a mim de dores, de suas dores… agora ele falava dele porque confiava em um outro alguém , que nesse momento era representado por mim.

Diante deste recorte acredito ter respondido, de alguma forma, às questões que coloquei no início deste trabalho: o que essas crianças nos pedem é que nós confiemos nelas e que fiemos, no tempo delas, uma outra opção de vida para elas, junto com elas e a partir das possibilidades delas de saírem da situação na qual se encontram. Cabe a nós termos dedos fortes o bastante para dar a elas uma chance que seja de perceberem a alegria de poder criar e ser do jeito que são. Cabe a nós termos dedos fortes para não deixarmos os nós da vida se apertarem tanto que sufoquem, nesses meninos Flicts e em nós mesmos, a esperança de conseguirmos sobreviver à violência da e na infância e adolescência. O personagem de Ziraldo acha o seu lugar na lua, ela é Ficts. Que, ao suportarmos e sobrevivermos à violência deles e a eles dirigida, esses jovens igualmente sobrevivam e estudem e aprendam porque terão re-conquistado a confiança no humano que para eles representaremos e poderão eles mesmos possuir sua própria Lua, um lugar almejado e alcançado seja por um foguete, seja pelo desejo de ser gente como a gente, porque um dia alguém acolheu amorosamente à pergunta formulada tantas vezes em eco: você é capaz de com(fiar) em mim? Desde criança ele fora prometido para ser lata. Mas era merecedor de águas de pedras de árvores de pássaros. Por isso quase alcançou ser mago (Manoel de Barros, 2002)

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