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Envelhecer é não se adaptar

Não podemos ignorar que o progressivo envelhecimento da população é um dos maiores problemas do mundo contemporâneo. Tal fenômeno pode ser atribuído ao baixo índice de natalidade, especialmente nos países desenvolvidos e ao aumento da expectativa de vida, ocasionada principalmente pelos avanços no campo da alimentação, saneamento básico, prevenção primária e medicina em geral. Se por um lado tal situação se mostra positiva, por outro traz conseqüências não só no âmbito dos sistemas previdenciários e de saúde em geral, mas também no campo social, familiar e pessoal. Para enfrentarmos tais problemas se faz necessário estudar o processo de envelhecimento em todas as suas dimensões.  O objetivo deste breve ensaio não é provocar uma reflexão acerca do envelhecimento humano, enfatizando especialmente a limitação de algumas concepções correntes acerca do processo de envelhecimento.
Não podemos negligenciar que avanços em relação ao problema do envelhecimento têm ocorrido nos campos da medicina, da psicologia, da antropologia e da sociologia. Mas, o que mais nos tem chamado a atenção é a quantidade de teorias e práticas que procuram ou pelo menos prometem ‘retardar o envelhecimento’. O mais interessante é que tais teorias, além de serem extremamente controversas, trazem no seu bojo a concepção de que envelhecer é algo ruim; algo que necessariamente traz conseqüências catastróficas para o ser humano. Até parece que estamos perdendo o direito de envelhecer! Tal ideologia que praticamente coloca o termo ‘envelhecimento’ como sinônimo de doença, de sofrimento é reforçada pelos meios de comunicação. Analisem o estereótipo do idoso apresentado em novelas e programas humorísticos. Normalmente eles retratam os idosos como indivíduos desamparados e, que não raramente são vítimas de abusos, ou como “velhos gagás”, figuras emblemáticas e não raras vezes engraçadas, principalmente em função da perda de memória.

Quando retratados de forma positiva, enfatiza-se a idéia de sabedoria, identificada como experiência, como ‘memória viva’. Comum às duas concepções está uma que para nós é a mais funesta de todas: a de que o idoso não consegue adaptar-se a novas situações. Além disso, partindo das imagens estereotipadas, o envelhecimento saudável seria identificado como a ausência de doença e com a manutenção de uma ‘memória’, ao passo que o envelhecimento patológico seria a situação oposta. Para superarmos tais concepções, temos que primeiramente conceber que o envelhecimento é, em primeiro lugar, um processo natural, que envolve aspectos pessoais, sociais e biológicos. Do ponto de vista biológico, podemos dizer que é um processo caracterizado por mudanças somáticas e psíquicas que aparecem inexoravelmente com o passar do tempo e que afeta não só o indivíduo que envelhece, mas todos que o cercam. Em segundo lugar o processo de envelhecimento não é um fenômeno invariável, ou seja, nem todas as pessoas envelhecem da mesma maneira e, mesmo em um mesmo indivíduo os diferentes sistemas (circulatório, respiratório, nervoso, etc.) não envelhecem na mesma intensidade. Mesmo dentro de um mesmo sistema tal variação ocorre. Por exemplo, o processo de envelhecimento não afeta todas as partes do cérebro com a mesma intensidade. Mesmo em uma mesma região, diferentes tipos de células podem apresentar diferenças. Em terceiro lugar, envelhecimento não é sinônimo de doença. Não é verdade que ficamos doentes em todas as fases da vida e, que talvez uma das mais críticas seja a primeira infância?

Por fim, envelhecimento também não é sinônimo de deterioração intelectual e, consequentemente de perda de memória. Não é verdade que encontramos indivíduos com 80 anos de idade ou mais em plena atividade intelectual e, com excelente memória, inclusive para fatos recentes? Em relação à memória, podemos dizer que a sua perda ou falha pode decorrer de diversos fatores, entre os quais podemos citar o stress, a depressão, efeito de medicação e, também em decorrência de patologias degenerativas do sistema nervoso central, mais conhecidas como demências, como por exemplo, a demência de Alzheimer, demência de Corpus de Lewy, demência vascular, demência de Parkinson, demência fronto-temporal, etc. Cabe salientar que as demências podem ser causadas por cerca de 70 tipos de doenças diversas, ocorrendo primariamente em fases mais tardias da vida, com prevalência de 1% aos 60 anos, dobrando a cada cinco anos até atingir 30% a 40% aos 85 anos e que a perda de memória não é o único indicativo de quadro demencial. O comprometimento envolve, além da memória, outras áreas cognitivas (linguagem, orientação, habilidades construtivas, pensamento abstrato, resolução de problemas e praxias) e deve ser severo o suficiente para interferir no desempenho profissional ou social ou ambos, ou seja, deve causar prejuízo funcional. Mas, tais quadros, como já vimos são decorrentes do envelhecimento patológico. Não podem ser tomados como regra.

O que deve ser tomado como regra é o fato de que o envelhecimento, patológico ou não, pressupõe mudanças. Tais mudanças, não necessariamente negativas, ocorrem tanto em termos de estrutura como em termos de função. Aliás, tais mudanças ocorrem durante toda a vida e envolvem todas as dimensões do ser humano, ou seja, envolve o organismo como um todo. No que se refere aos estados patológicos é fundamental considerar que estes não devem ser concebidos como um transtorno restrito a uma função localizada em partes isoladas do organismo. Tais estados, como por exemplo, as patologias degenerativas do sistema nervoso, envolvem o organismo como um todo e tem um impacto direto na personalidade do indivíduo; indivíduo este inserido em um contexto e que procura adaptar-se à nova situação. Esse processo de adaptação é acompanhado, sem dúvida alguma de forte conteúdo emocional, o qual de maneira nenhuma deve ser ignorado. O termo ‘adaptação’ se mostra aqui essencial.

Acreditamos que o principal sintoma do envelhecimento patológico é a impossibilidade do indivíduo em adaptar-se, não só a sobrecargas do ambiente, mas também às novas situações da vida. Ora, sabemos que da não adaptação do organismo segue a sua extinção. Por isso, o ambiente enriquecido é essencial para a manutenção da saúde em geral. Nesse sentido, podemos afirmar que a melhor terapia é além de nos mantermos ativos, continuarmos permeáveis às mudanças. Tal permeabilidade é que garante a plasticidade neural e mental nas diversas etapas do desenvolvimento humano.  Se considerarmos isso, podemos explicar, por exemplo, o fato de existirem indivíduos cronologicamente jovens, mas patologicamente velhos e vice-versa. Essas considerações devem ser levadas em conta quando pensamos em processos terapêuticos, principalmente para superarmos a idéia; aliás, contrária às evidências experimentais com modelos animais e humanos, de que o idoso, quando submetido a novas situações fica sujeito a stress e depressão.

Quadros de stress e depressão podem ser decorrentes, além do estado patológico em si, também quando o processo terapêutico, além de considerar a patologia como uma falta ou falha em relação ao ‘normal’, trata o distúrbio como algo restrito, sem considerar o organismo como um todo, inserido em um contexto. Quando isso acontece, a terapia seja ela de qual tipo for, se restringir a uma simples estimulação pontual, descontextualizada, que visa à ‘restituição de um estado normal’, que pode levar àquilo que Kurt Goldstein, denominou de “comportamento catastrófico”, ou seja, a uma situação na qual o indivíduo literalmente desmorona emocionalmente. É nesse sentido que as terapias devem objetivar a adaptação do idoso ao seu meio. Entretanto, tal processo da adaptação não pode levar em consideração apenas aspectos neurobiológicos. Deve-se levar em conta, como vimos, o ser humano como um todo, ou seja, considerar aspectos sociais, histórios, religiosos e psicológicos. Só assim poderemos chegar próximos a um processo terapêutico mais efetivo.

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