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Lacan e a questão do "passe"

A questão do "passe" no que concerne a questão lacaniana relativa à formação de analistas,continua em aberto,passível de críticas e reflexões quanto à sua validação.

É notório através da literatura especializada, que a crise institucional que abalou a “escola” desde a sua fundação, teve a sua origem em várias causas. Historicamente, sabemos que o mestre Lacan se viu sufocado pelos seus discípulos, os quais consideravam que os seus desejos não eram levados em consideração por ele. Entendiam que isso se devia ora pelo próprio Lacan, o qual entendiam reinar na condição de um ditador e, por outro lado, a inércia de uma instituição que não trazia nada de novo quanto aos “critérios de formação”. Os membros da escola encontravam-se irmanados na oposição aos critérios hierárquicos da IPA. Se opunham a um tipo de formação burocratizada, a qual julgavam contrária à eclosão e à manifestação de um desejo real de alguém tornar-se analista. Em contrapartida, os mesmos membros não sabiam como “passar” desse estado de coisas para outro, condizente com o verdadeiro ensino freudiano.

Lacan parece ter sido um legislador admirável, embora não tenha sabido evitar que a nova distribuição de títulos fosse como num passado recente. Entendemos que Lacan fez uma revisão institucional, em função de uma primazia atribuída à ordem teórica. Queremos ressaltar que essa ordem teórica foi deduzida por ele, através da experiência do tratamento enquanto “passagem” pela “castração” e pelo “mito edipiano”.

Citaremos as próprias palavras de Lacan: “partimos de que, a raiz da experiência do campo da psicanálise, única base possível para motivar uma escola, há de ser encontrada na própria experiência psicanalítica, isto é, tomada como intenção: única razão justa a formular sobre a necessidade de uma psicanálise introdutiva para operar nesse campo. No que , portanto, harmonizamo-nos de fato com a condição recebida por toda parte da chamada psicanálise didática”.

A nosso ver, o que aqui deve ficar claro, é que Lacan reivindicou de forma ortodoxa a psicanálise didática. É importante lembrar que assim o fez, a partir de uma visão teorizada da análise pessoal. De qualquer forma, tanto a análise pessoal como a análise didática, estão articuladas ao redor do eixo transferencial. Na visão lacaniana, o tratamento didático realiza a “passagem” do analisando a analista e que tratar-se-ia de um momento crucial e fecundo, além de teorizável, de um possível término da formação didática. A passagem tem a ver com uma posição depressiva, através da qual o analista é situado pelo analisando do lado de um “des-ser”, para então colocar-se ele próprio, na condição de destituição subjetiva. Dessa forma o analista é colocado cada vez mais na condição de um “resto”, a medida em que ocorre a evolução dialética do tratamento. Trata-se da queda do “sujeito-suposto-saber” que Lacan opõe a noção de “liquidação da transferência”.

A bem da verdade, existem três referenciais distribuídos entre os três registros: simbólico, imaginário e real, os quais constituem uma verdadeira “desconstrução crítica”.

Em 1963, na época em que Lacan providencia pessoalmente a sua ex-comunhão, ele acaba por equiparar a comunidade neo-freudiana a uma igreja. Meio ano depois, ele denomina a sua escola de freudiana, tentando um novo “universalismo”, ao qual se referiu como Reconquista. Depois de apagar, num primeiro momento, a falsa separação entre a análise terapêutica e a análise didática, ele efetivou já num segundo momento, uma reformulação ortodoxa da psicanálise didática. Penso que nunca é demais lembrar que Lacan deu a análise didática, o nome de psicanálise pura, a qual ficaria sancionada pela “prova de passe”. Nesse sentido, entendemos que o passe é de uma ordem diferente daquilo que se supõe ser o “procedimento do passe”.

Este, é a tradução institucionalizada de uma experiência concreta e, nesse sentido, não escapa do risco de anulá-la.

Ao se aperceber de uma espécie de espírito libertário, o qual poderia levar a comunidade psicanalítica a derrocada, Lacan fez questão de impor uma estrutura de formação que fosse capaz de manter a essência da mensagem freudiana. Independentemente de como se constituisse a estrutura formal da escola, por tantas vezes debatida, sempre encontramos um Lacan “jogando em todas as posições”: foi presidente do conselho administrativo e do diretório e participou ao mesmo tempo do júri de recepção e de aprovação.

Com a passagem do tempo, pequenos grupos de orientação lacaniana foram criados em alguns países: Itália, Espanha e Argentina. Lacan já havia conquistado o seu lugar na França, porém ansiava pela reconquista anglo-americana. Nessa época, Lacan já estava com setenta anos de idade, e a escola já contava com uma sede própria, adquirida através das contribuições dos membros mais abastados, como por exemplo, Charles Melman, F. Dolto e o próprio Lacan. Na expansão do movimento lacaniano, depois de passar alguns anos trabalhando no hospital Enfants-Malades, Jenny Aubry formou um grupo de analistas.

Em Estrasburgo, foram Lucien Israel e Moustapha Safouan que asseguraram a presença do lacanismo nas fronteiras da Alemanha.

Em Montpellier, Jean Faure e Pierre Martin também fizeram a sua parte na formação de analistas de orientação lacaniana.

Vale lembrar também, que em determinado momento histórico, a maioria dos “passantes” eram oriundos do divã de Lacan, o qual cada vez mais aceitava em análise os membros de sua escola. O “passe”, que foi inventado por Lacan não pode funcionar sem ele, mas também com ele não pode funcionar. Segundo a psicanalista e historiadora da psicanálise Elisabete Roudinesco, “ essa é a primeira lição a ser retirada do andamento desse processo que terá permitido ao conjunto da “Escola” refletir sobre as condições institucionais “reais” de um “verdadeiro” tornar-se analista”.

Em 1969, os três demissionários da “Escola”, Piera Aulagnier Spairani, F. Perrier e Jean-Paul Valabrega, seguidos por outros membros, em sua maioria mulheres e analisandas de Serge Leclaire, formam uma “escola de mulheres”, assim como uma “filiação” de Leclaire. Esse grupo dissidente, é o Quarto Grupo criado na França após três cisões institucionais. Esses analistas assumem o papel de uma “outra cena”, onde não aparecem nem o pertencimento à IPA e nem a ortodoxia lacaniana. Depois de pouco tempo, o rótulo de “Quarto” já não bastava e seus onze fundadores adicionaram-lhe uma espécie de subtítulo:

“OPLF” – Organização Psicanalítica de Língua Francesa. Essa, opunha-se ao título de freudiana e pretendia-se uma “escola pluralista”.  Acabaram, ainda no dizer de E. Roudinesco, recusando a “monarquia” de um só, assim como a chefia de todos. Os princípios dirigentes foram elaborados por todos, não obstante tenham sido Jean-Paul Moraigne e Jean-Paul Valabrega,os que teorizaram sobre as principais noções a partir das quais o coletivo se movimentaria. Também Robert Castell pertencia a esse grupo, mesmo sendo ele sociólogo por formação. Transcorridos quatro anos, publicou uma obra vultuosa intitulada “Le Psychanalysme”, na qual irá denunciar o caráter sectário e religioso das instituições psicanalíticas na França.

Foi criado também um regimento interno no tocante à formação dos analistas, gestão e relações externas. Essa “nova” instituição iria possuir dois tipos de membros: os efetivos e os agregados. Sómente os “efetivos” tinham direito ao voto e gozavam das prerrogativas institucionais. Já os “agregados” eram membros não reconhecidos na sua condição de analistas, e que para a obtenção do título deveriam obter “o aval de um divã”. Os fundadores preconizavam um sistema flexível, onde não havia nem passe, nem comissão e nem mesmo uma pré-seleção. Adotavam assim a noção de uma Psicanálise Plurirreferencial. Por mais incrível que possa parecer(!), o postulante a analista poderia ser proveniente de um divã externo à Escola, sendo que a base para a sua habilitação ficava por conta da supervisão.

Apesar de todas essas “mudanças”, a OPLF tal como foi concebida, jamais funcionou, mais ainda nesse mesmo ano, Perrier,Valabrega e Aulagnier dedicara-se a redação de artigos relativos à formação, os quais serviram de base para a reformulação do Quarto-Grupo. Novamente foi Jean-Paul Valabrega quem firmou as bases teóricas da “nova orientação”, onde fez uma crítica ferrenha ao “seguidorismo transferencial”. Repetimos as suas próprias palavras: “ o sistema de formação regulado por Lacan é um sistema produtor de analistas – o próprio Lacan os chama de “seus alunos” – que dão de seu mestre uma imagem levada ao extremo da caricatura. Essa imagem se traduz num mimetismo, num seguidorismo verbal sem precedentes”.

Na sequência, coloca ainda uma importante questão: “quem pretenderá sustentar que a identificação com o analista, operada, fixada e ratificada em sua própria linguagem, possa deixar de ter influência, não certamente formadora, mas antes deformadora no campo analítico em sua essência?”  Daquí derivou a proposta de que o analista não tivesse nenhum poder de habilitação de seus analisandos dentro da instituição. Essas diversas situações convergiram para que na OPLF existissem duas correntes: uma mais libertária e a outra mas seletiva, e ao que tudo indica elas conseguiram se respeitar. As poucas demissões que houveram, foram por questões pontuais ou rivalidades pessoais(quem diria!!!). Uma saída significativa foi a de F.Perrier, depois de ter sido fundador e presidente da OPLF. Esse que foi reconhecido como um grande clínico da histeria, teria continuado durante os próximos seis anos a se considerar como um chefe numa sociedade sem mestres, além do que foram as mulheres que ocuparam os cargos chave. Sabe-se que Perrier sentiu-se destronado pelo grupo e pelo conjunto de uma população feminina que ele denominou vulgarmente de “Sindicato dos Ovários”. Chegou a escrever um livro com as suas memórias, o qual segundo muitos autores, não foi exatamente condizente com a realidade dos fatos. Julgamos importante retratar as palavras de Perrier: “Senhoras inimigas e amigas tomaram o Quarto Grupo(…)Finalmente acabaram apresentando um pedido de filiação à IPA. Meu nome foi cuidadosamente silenciado(…) Piera, uma grande mestra,não perdoava o meu linguajar franco. Meu amigo Valabrega, amargurado e solitário, tinha mais amiúde um espírito de crítica do que um espírito crítico. Quanto a mim, por força da minha notoriedade, já não estava arriscando grande coisa(…)”.

De fato, a OPLF não solicitou a sua filiação à IPA, e essa afirmação de F. Perrier ficou por conta dos inúmeros “boatos psicanalíticos”. Depois de ter instaurado uma espécie de contra-escola freudiana, o Quarto Grupo tornou-se  uma sociedade do pós-lacanismo.

Depois de termos tecido essa série de considerações de caráter histórico, passaremos agora,com o intuito de finalizarmos esse trabalho, à colocação de algumas poucas questões que nos possibilitem uma reflexão à respeito. Sabemos que embora tenhamos tocado nos pontos principais da questão lacaniana sobre o “passe”, não esgotamos a questão em toda a sua complexidade. Sugiro que possamos ter em mente, duas afirmações feitas pelo próprio Lacan:

= “Um analista só se autoriza por si mesmo”.
= “Se vocês quiserem podem ser lacanianos,eu de minha parte
   sou freudiano”.

Eu acrescento a seguinte questão: o que, de fato, significa ser uma analista lacaniano?
Creio que pode facilmente ser inferido pelas considerações anteriores, que para chegarmos a ser um analista X ou um analista Y, temos que “ser” tantas coisas antes: efetivos, agregados, passantes, provenientes de um divã assim-assado, que corremos o sério risco de “sermos tudo isso, menos nós mesmos. Outra questão que me ocorre, é sobre de que si mesmo Lacan nos fala, quando nos fala que nós só vamos nos autorizar por nós mesmos?. Será que teremos que nos identificar e introjetar todas as figuras, como analista, supervisor, enfim o divã que nos autoriza, para que possamos nos autorizar? Do ponto de vista institucional podemos, depois de tudo isso, nos autorizar “de direito”, mas será que também “de fato”?

Se nos debruçarmos cuidadosamente sobre a “proposta”(=ditatorial) que nos é feita para que possamos nos reconhecer como analistas, vamos ter que começar a acreditar em vida após a  morte, uma vez que uma só vida não dará conta de cumprirmos com todos os pré-requisitos que nos são colocados. Clara a minha posição deve ficar: sem sombra de dúvida, algum tipo de mediação deve haver para aqueles que se proponham a “cuidar” de pessoas. Contudo, não me parece plausível que tenhamos que nos haver com tantas variáveis intervenientes na questão.  Sempre acreditei e quero continuar acreditando que a proposta inicial de J. Lacan, no seu próprio dizer, foi o de realizar um “Retorno a Freud”. Porém, com o “andar da carruagem”, me parece que Lacan depois de um certo tempo, acabou propondo na verdade “Uma ida sem volta a Lacan”. Assim, a questão me parece que continua em aberto: somos passantes?, já passamos? ou ainda iremos passar? QUEM PODERÁ DIZER?!!!

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