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Da cura (sorge) à cura

Este texto marca o término de uma fase, que teve como intuito  dar concisa sustentação às discussões que envolvem a ontologia heideggeriana e a psicoterapia, e é, igualmente, o começo de outra, voltada a temas freqüentes nos debates sobre o processo psicoterápico.
Todavia, as bases filosóficas do pensamento fenomenológico de Martin Heidegger não se perdem ou tornam-se dispensáveis, mas, ao contrário, mostram-se como impulso para novas temáticas.

Nessa perspectiva, elegeu-se a cura como objeto da presente exposição, que trata de argumentos e pensamentos a propósito do curar-se de algo, de mistura com as noções de cura, circunscritas à filosofia de Heidegger, de acordo com explanações levadas a efeito anteriormente nesta coluna.

O jogo de palavras utilizado no título desta apresentação faz direta referência à noção primeira de psicoterapia, isto é, a aquele que procura o espaço terapêutico na medida em que buscar auxílio psicoterápico, em diversos casos, é encarado como caça a algo que sanará uma condição e/ou um problema, de modo a trazer a cura para um contexto incomodo e fora de determinados padrões tidos de normalidade. Nesse sentido, é possível dizer que uma situação que desagrada e compromete a qualidade de vida e a leveza existencial de um dado indivíduo precisa ser extinta ou pelo menos reduzida a níveis quase imperceptíveis, como no caso de uma dor de cabeça, que impele à procura de um comprimido analgésico, um desconforto do existir vai buscar seu estofo na psicoterapia.

De posse desta premissa, o que o conceito de cura (sorge) tem como ponto de união à busca de alguém pela cura terapêutica? Como pode ser encarada, em uma perspectiva heideggeriana, a noção de cura psicoterapêutica? Com isso, faz-se útil um retorno à ontologia heideggeriana, mais precisamente à breve colocação acerca da cura (sorge). Heidegger propõe a cura como uma pré-ocupação estrutural, no sentido de preceder-se a seu sentido e, também, com relação aos entes que vem à Dasein A cura é a condição estrutural mais fundamental do ser-aí, uma vez que o cuidado para com as coisas é, de certo modo, algo que engloba grande parte da rede de significações contextualizada como mundo. Sendo assim, o ente que nós mesmos somos é aberto ao mundo do mesmo modo que o mundo descortina-se a ele como uma possibilidade aberta, em sua complexidade de infinitudes. Nesta condição, abrir-se-para… implica estar sujeito ao toque das diversas manifestações do ser (Heidegger, 2005a).

Tal manifestação do ser do ser-aí se desdobra em três pontos primordiais de condução existencial: cuidado (sorge), ocupação (bersorgen) e pré-ocupação (fürsoge). Em poucas palavras, é pertinente considerar que o existencial da cura abrange Dasein e seu pro-jecto em todos os âmbitos que este primeiro é inserido no mundo e, simultaneamente, coloca-se à disposição dos chamados do próprio ser (seyn). Isto é, zelando por seu trajeto em meio ao ente intramundano, o ser-aí cuida de seu si-mesmo, próprio ou de experiência impessoal (das Man), daquilo que o circunda no mundo (umwelt) e abre-se ao contato das co-presenças que transitam pelo palco onde se desenrola a história que Dasein conta como personagem principal em condição existencial semelhante (Heidegger, 2005a). Em última análise, somente por ser cuidado, o humano pode dar-se a cuidar e zelar pela integridade de sua existência.

O fato de para um sendo estar em jogo e se tratar de seu ser já pertence, em si mesmo, à constituição originária de seu ser.É por isso que chamo o ser do si-mesmo de o cuidado. Nada a ver com a preocupação excitada com o estado de angústia de doentes mentais. O cuidado é a condição de possibilidade da resolução, prontidão, empenho, trabalho, domínio, heroísmo; e onde há algo assim, lá se dá necessariamente: inocência, agitação, covardia, negociata, escravidão e submissão; e não apenas como concessão lamentável, mas como necessidade essencial (Heidegger, 2007, pg. 301).

Em outras palavras, o cuidado/cura (sorge) é o que abre ao homem a possibilidade de traçar uma linha que perpassa o tempo (zeit) dando movimento à própria história  em conjunto ao mundo, levando ao inevitável estabelecimento da historicidade (geschichtlichkeit), história própria que se conta com independência da história fáctil da historiografia (historie), intransferível de cada qual. Em síntese, somente porque olha por si-mesmo, pelo que o envolve e por aqueles que são, também, como eu, Dasein persegue o cuidado tal como transita no mundo, sendo de início e na maior parte das vezes, já de antemão, colocado em jogo posto que finda.

É esse processo muitas vezes o que conduz o humano ao conflito e o desestabiliza em face de um contexto até então considerado ideal. Ou seja, por perseguir o dever que é zelar por uma existência em suas amplas considerações, que o ser-aí se sobrecarrega da responsabilidade que é ek-sistir rumo à impossibilidade. Neste sentido, é por uma instabilidade gerada na transitoriedade que é o aí daquele que nós mesmos somos, que a necessidade da pró-cura terapêutica emerge e dá as caras transfigurada naquilo que incomoda (Pompéia, 2000). Em síntese, esta é a primeira relação entre o cuidado heideggeriano (sorge) e cura: por ter que ser e buscar cuidar deste dever, Dasein se desencaminha de seu sentido e considera a ajuda psicoterápica como uma possibilidade de reencontro ao caminho primeiro; original.

Retomando, o existencial da cura abre para Dasein a chance de contar seu existir como uma história que atravessa, se instala no tempo e, assim, dá o estatuto de existente ao ser-aí que ruma à finitude. Neste sentido, o cuidado exercido na existência desencadeia, também, o contrário do que se propõe de saída , isto é, no turbilhão do estar em jogo que é o ter-que-ser de Dasein, o sentido que merece atenção  se descarrila. Em função disso, é buscada a psicoterapia como cura de algo que muitas vezes não se sabe o que é, mas sufoca e ao mesmo tempo é nada. Ou seja:  é buscada a cura pela angústia de existir, e pelo tanto essencial que é determinada tal condição (Heidegger, 2005b).

O modelo de psicoterapia proposto pela orientação fenomenológico-existencial, mais precisamente heideggeriana, admite a relação estabelecida neste espaço privilegiado como um encontro. A prática clínica, confluência entre aberturas capazes de se comprometer em um estabelecimento de zelo mútuo, promove a possibilidade para a discussão do cotidiano. Deste modo, o cotidiano se mostra como estado e/ou circunstância de realização da historicidade do ser-aí, e, por assim dizer, como cenário primordial para o desvelamento da cura (sorge) como “ponto de partida” ao pro-jecto. O trabalho clínico, por se tratar de uma análise do ser-no-mundo – conforme referencial tratado aqui -, se depara, certamente, com o exame daquilo que necessita de ser curado. Ou seja, o vínculo mantido ao longo de uma convivência terapêutica – relação de cuidado e zelo – proporciona àquele que busca um re-exame de sua condição sob outra ótica a possibilidade de estar, novamente, a caminho de um sentido (Heidegger, 2008).

Com isso, o que se apresenta é uma construção de noções conflitantes no que diz respeito às certezas que se fundam, muitas vezes como a prioris dogmáticos e cristalizados, sobre o objetivo e a função de um tratamento psicológico pautado na psicoterapia. Dito em outros termos, em alguns casos considera-se o trato terapêutico algo que deverá sanar problemas presentes e dar certeza de não reincidência; como uma instância em que serão dadas respostas para aquilo entendido como não sabido e por ninguém compreendido, salvo o psicoterapeuta e, por conseqüência, a busca por análise psicoterápica surge como alternativa a uma doença do espírito, psicológica ou existencial. A partir dessa premissa, cabe promover breve discussão sobre o que se dá como cura na perspectiva daseinsanalítica. Afirmar um ponto fixo e uma concretude acerca do que se considera estar curado em sentido heideggeriano é, já de início, contradizer o fluxo concêntrico de sua filosofia.

“[…] a forma do pensamento heideggeriano é concêntrica, possuído certa semelhança com a forma socrática de exposição, onde o pensamento circular não chega propriamente a nenhum lugar derradeiro, porém está sempre e constantemente indo a algum lugar, circundando a questão de maneira a favorecer continuamente novas perspectivas e exigindo do interrogante estar próximo à questão e ser também interrogado por ela.” (REHFELD, 1988, p. 87)

Ou seja: o exercício deste modo de ser amplia a condição que se assemelha ao de se chegar a uma sala onde diversas portas são abertas, mas qualquer delas pode ser fechada ou, ainda, nenhuma das novas incertezas que as sucedem pode ser explorada de modo finito enquanto possibilidade de questionamento e/ou progresso. “[…] Quando a filosofia torna-se prática, ela passa a ser uma nova maneira de existir no mundo […].” (ROOS, 2006, p. 135). Isto é, trazendo ao universo da psicoterapia e sua compreensão do sanar um determinado problema, curar o homem, que é um por-vir em fluxo ininterrupto de incompletude, não se mostra como tarefa de assertiva e, acima de tudo, única pontuação. Dito em outros termos, o caráter concêntrico do pensamento heideggeriano se aplica ao Dasein e também à noção terapêutica. Logo, considerando a busca do encontro de terapia como um fluxo, que não se encerra e nem mesmo se esgota em uma postulação concreta de existência, o respaldo dele decorrente ou originário, da mesma forma, não se pode dar como finito e estagnado em algumas certezas auto-suficientes e/ou na prescrição de uma composição tal qual uma fórmula. Por conseguinte, uma proposta terapêutica pautada na ontologia heideggeriana se completa, ou melhor, tem como desfecho o individual de cada caso, isto é, do caráter constitutivo de seu horizonte (Heidegger, 2009).

Consciência sempre pressupõe a não inversão de Dasein. Conhecimento e consciência estão sempre em movimento constante na abertura do aí. Sem tal condição de abertura, nada seria possível. Em sua proposta mais básica, a Daseinsanalyse de Binswanger é uma interpretação ôntica, isto é, existencial da facticidade particular de Dasein. Ao pensar-se historicamente, a relação entre interpretações ônticas e ontologia é sempre uma correlação, na medida em que uma nova existencialidade é descoberta/desvelada a partir da experiência ôntica. A partir desta interpretação da Daseinsanalyse como uma ciência ôntica, esta cunhou-se como uma ciência completamente nova. Ciência significa uma organização sistemática de experiências interpretadas. Cada ciência diz respeito a sua organização sistemática de experiências interpretadas. Cada ciência é rigorosamente determinada em seu tema de domínio, entretanto, nem tudo que é rigoroso envolve exatidão em um senso possível de cálculo. O pólo que unifica, em psicoterapia é o presente ser humano (HEIDEGGER, 2001, p. 207)

Neste sentido, é possível estabelecer mais um ponto de encontro entre cura (sorge) e cura. O próprio humano e sua condição de humanidade é o que proporciona a interação, isto é, a interdependência entre a capacidade de buscar ajuda e a necessidade de zelar pela própria existência da mesma forma que o curador de um museu olha por suas obras. Logo, apenas porque incondicionalmente Dasein cuida do existir que lhe cabe, a precisão de caminhar novamente no sentido que é perseguido rumo à finitude é travestida na ansiedade de se curar do nada que aprisiona e, ao mesmo tempo, é estopim do progresso. Em outras palavras, é a angústia  do ser do ser-aí que o leva ao passo seguinte de sua historicidade, mas, igualmente, consigo traz o nada, um vazio que vem à tona e carece de preenchimento; um desconforto, que tal qual a dor de cabeça mencionada antes, persegue um analgésico.

Por fim, psicoterapia é a cura (sorge) clamando pela cura, ou seja, é o cuidado antecipando-se ao arranhão.

A tarefa da terapia daseinsanalítica é libertar o paciente para a sua tarefa de se aproximar de sua história. Assim, ela não cura, naquele sentido de eliminar um mal; ela trata o paciente, com o propósito de ampliar a liberdade dele para que ele possa fazer a sua própria história. Não o passado, não o presente, não o futuro, não a conduta, não o sintoma, mas a totalidade da sua história […] (Pompéia, 2005, pg. 42).

A Psicoterapia apresenta-se, então, como possibilidade de busca ao todo de um sentido outrora desencaminhado pelo próprio dever de cuidar da existência, dever pesado que, pela sua força, se se faz notar mesmo em meio ao nada da angústia; “[…]Naquilo pelo que se angustia, a angústia abre a pre-sença como ser-possível e, na verdade, como aquilo que,somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se numa singularidade ” (Heidegger, 2005, pg. 251-252)

 
Referências bibliográficas

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução Maria Sá Cavalcanti Schuback. São Paulo: Ed. Vozes, 2008.

______.Que é metafísica?. In: Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2005a.

______. Ser e Tempo. Tradução Maria Sá Cavalcanti Schuback. São Paulo: Ed. Vozes, 2005b.

______. Ser e Verdade. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. São Paulo: Ed. Vozes, 2007.

______. O que quer dizer pensar? In: Ensaios e conferências. Tradução Gilvan Fogel. São Paulo: Ed. Vozes, 2009.

______. Zollikon Seminars: Protocols-Conversations-Letters edited by Medard Boss. Illinois: Northstern Univertisty Press, 2001.

POMPÉIA, J. A. Uma caracterização da psicoterapia. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, n. 9, São Paulo, 2000.

______. Daseinsanalyse e a clínica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, n. 14, São Paulo, 2005.

REHFELD. A. À angústia. In: Vida e Morte. São Paulo: Ed. Companhia Ilimitada, 1988.

ROOS. T. Vitaminas filosóficas. Tradução Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Ed. Casa da Palavra, 2006.

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