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Hospital Psiquiátrico, Comunidades Terapêuticas e CAPS AD, dessemelhança diante do objeto e das idéias; pequenas controvérsias.

Os Hospitais psiquiátricos, as Comunidades Terapêuticas e atualmente os CAPS -ad tratam das questões referentes aos usuários de álcool e drogas. Localizarei neste trabalho pontos que nos permitem ver quão díspares podem ser as concepções sobre o tema. Ilustraremos brevemente com o exemplo da Redução de Danos.
É sabido que as demandas feitas à psiquiatria referem-se ao tratamento dos transtornos que se caracterizam principalmente por alguma espécie de inadequação do sujeito no espaço social. A psiquiatria em sua origem era uma disciplina que preocupava-se sobretudo com o estabelecimento de uma nosologia que permitisse delimitar de forma criteriosa o universo das expressões humanas em uma classificação das espécies (de inspiração botânica), que desse modo concebida, conferia ordenar grupos em similitudes e dessemelhanças. Assim nascida, a nova ciência acolheu as solicitações que lhe eram feitas e consolidou-se na medida em que pode estabelecer uma vasta fenomenologia clínica, que acabou servindo de ponto de referência e amarração, que como uma espécie de ‘esteio para todos’, organiza as condutas individuais e seus desdobramentos e procedimentos sociais, que desse modo enquadrados configuram-se como adequados ou inadequados. Foucault nos conta em sua ‘História da Loucura’ como foram encaminhados aos asilos vários sujeitos tidos em referência à norma social, como desviantes, erráticos, anormais, de algum modo assim se dava condução a todos aqueles que se mostravam estranhos aos ordenamentos que gestam a ordem pública.
           
Após este breve périplo necessário passamos ao panorama atual que compreende uma completa reengenharia no trato da loucura, que tem como conseqüência uma nova configuração para a atenção aos portadores de sofrimento mental. Passados anos negros de exclusão uma nova ótica se faz necessária, pois uma crítica feroz ganhou terreno mundo afora, de modo que as instituições asilares e seu caráter segregatório puderam ser de fato questionadas e assim pôde-se pensar na própria desconstrução do manicômio. No caso brasileiro houve um momento em que o trato da loucura caracterizava-se principalmente pela exclusão que compreendia, não bastasse isto, a doença se convertia ainda em uma mercadoria rentável para hospitais particulares que eram conveniados pela rede pública para o tratamento dos enfermos. Assim na história da loucura tupiniquim, o tratamento traduzia-se regularmente por encaminhamento sumário ao manicômio para longuíssimas internações. Parece necessário destacar um aspecto nefasto que subjazia no nosso caso, pois a loucura não apenas permanecia longe dos olhos, por trás de grandes muros, como ainda configurava-se matéria de escusos interesses pecuniários.

Mas como já dito, uma nova concepção calçada em uma legislação, materializada na forma da lei, reordenou a atenção à Saúde Mental no Brasil a exemplo de vários outros países do mundo. O novo arranjo leva em conta, por assim dizer, para além da clínica também alguns aspectos sociais, considera-se que o tratamento será mais humanitário com a manutenção dos laços sociais, e assim surge a concepção de que ele deve ocorrer de forma comunitária. Redes comunitárias devem cobrir os casos que se encontram sob suas áreas adstritas oferecendo atenção em saúde mental em vários níveis de abrangência. A logística de cada serviço orientar-se-á pelo contingente populacional do município em que ocorre. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são concebidos para resolverem as demandas em saúde mental em sua região de cobertura. Grosso modo a reforma pretende descentralizar o modelo hospitalocêntrico que vigeu por anos a fio como modelo hegemônico, estabelecendo ‘uma psiquiatria de setor’ que cubra os contingentes populacionais em que a demanda ocorrer, preservando o sujeito e seu enlaçamento social.

No caso brasileiro, houve uma preocupação necessária, pois com vistas a contornar a omissão histórica do estado para a questão do uso abusivo de álcool e drogas, a reforma previu a criação de serviços voltados especificamente para a clientela cujos transtornos principais se caracterizariam pelo abuso de substâncias tóxicas, estes serviços foram batizados CAPS AD.

É muito importante perceber a necessidade desta peculiaridade, existem exigências muito específicas em relação a esta clientela. Se todos são passíveis de receber atenção da saúde mental, não se pode deixar escapar que os pacientes que recorrem aos serviços de saúde em função do uso abusivo de produtos tóxicos comumente são diferentes dos pacientes portadores de sofrimento mental clássicos, os chamados neuróticos graves e psicóticos. Historicamente foram enviados todos juntos para os tratamentos disciplinares, mas a prática nos mostra que não se pode aplicar o mesmo tipo de tratamento para todos.

Do ponto de vista da clínica propriamente dita, podemos perceber que os pacientes usuários de álcool e drogas têm suas especificidades. Nos tempos em que a internação psiquiátrica era a única conduta possível aos “desviantes de toda espécie” ficavam nítidas algumas diferenças entre os pacientes psicóticos e os alcoolistas e toxicômanos internados.

Os pacientes usuários de alguma substância estupefaciente pareciam “estranhos no ninho” dentro do hospital psiquiátrico, pois logo que o quadro da intoxicação ou da abstinência tivesse remitido, a maior parte deles apresentava-se rapidamente “restabelecido”. Envoltos em toda sua lucidez muitas vezes serviam de intermediários entre a enfermagem e os outros pacientes na ala psiquiátrica. Esse restabelecimento mais rápido fazia com que eles contrastassem nitidamente dos pacientes psicóticos que habitualmente exigiam um tempo maior de internação. Apesar de sua passagem poder ser mais breve, alcoolistas e toxicômanos eram regularmente vistos no hospital em virtude de suas recaídas constantes.

Importante notar como nestes casos habitualmente costumam ser relevantes as questões pertinentes à clínica médica (do ponto de vista da clínica geral), bem como a própria condução do caso clínico do ponto de vista psiquiátrico, é muitas vezes também diferente. Se existe no imaginário popular alguma piedade ou compaixão em relação ao paciente psicótico pela sua malfadada sorte de adoecer, em relação aos usuários de produtos tóxicos a mesma impressão não se aplica, eles são regularmente considerados causadores de sua doença, gozando de muito pouco prestígio em função disto. Pode-se dizer que por muito tempo foram pensados como sujeitos que pareciam padecer da vontade, seu sintoma era visto como uma incompetência na volição e sua patologia parecia ser uma espécie de frouxidão moral.

Provavelmente o estigma que envolve o manicômio contribuiu de algum modo também para outra situação. No Brasil surgiram vários serviços de benemerência religiosa, cujo foco era o atendimento aos pacientes usuários de produtos tóxicos, quiçá tal ocorrência se deva a pouca atenção que o gestor público deu a estes casos, quiçá deva-se à irrefreável inclinação moral que ronda os guardiões das boas condutas, que viam (assim como o Movimento de Temperança pensava ainda antes da Lei Seca) que os usuários de tóxicos careciam mesmo era de uma rotina reguladora que os afastasse de seus desvios morais. Sob esta ótica um tratamento compreenderia situações de disciplina regrada, um bom aconselhamento e também trabalho que afastasse os viciados do ócio e dos maus costumes que haviam cultivado. Com este tipo de concepção em vista, proliferaram no Brasil as chamadas Comunidades Terapêuticas (CT’s). Um tripé embasa modo geral a filosofia destas instituições: oração, trabalho e abstinência.

Pode-se dizer que as C.T.’s reinaram quase que de forma absoluta e ainda no atual contexto da aplicação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, continuam cobrindo uma gigantesca demanda da qual o estado não se fizera, ou ainda não se faz, suficientemente presente. Aqui vai uma crítica, estando em um estado laico, parece razoável pensar que a condução das questões pertinentes à saúde devam se guiar por princípios técnicos e não religiosos, é bem conhecido o adágio popular que sabiamente diz: A César o que é de César, a Deus o que é de Deus.

As concepções religiosas neste contexto parecem padecer de uma impregnação radical, vendo no sintoma não mais que um desvio que caminha na direção do pecado. Tal sorte de impressão fatalmente obscurecerá aspectos particulares que escapam em virtude de uma visão demasiado ortodoxa, assim apenas reproduzem antigas impressões que demonizam substâncias e sujeitos, ignorando por completo dimensões que subjazem ao que é um quadro clínico e não errância moral ou de conduta, e menos ainda, um pecado.

Salvo raras e honrosas exceções, este era o quadro geral da atenção dada aos pacientes usuários de produtos inebriantes. Felizmente a reforma prevê instrumentos e ferramentas para contemplar estes casos de modo a dirimir a omissão e o estado efetivamente tomar posição em seu lugar de gestor da saúde pública, com isto em vista, como já foi dito conceberam-se os CAPS AD.

Levando em conta as particularidades que caracterizam tal clientela, novas ferramentas puderam ser pensadas, entre elas a Redução de Danos (RD). A redução de danos configura-se atualmente como um dos princípios que norteiam a política do Ministério da Saúde para a atenção à saúde mental no que concerne aos casos de usuários de álcool e outras drogas. Longe das controvérsias que pretendem simplesmente regular as condutas, tal concepção tem aspirações sanitárias importantes. É sabido que os pacientes usuários de álcool e drogas acabam por se expor a um leque de riscos consideráveis, que podem ser percebidos em uma enormidade de conseqüências. Tais conseqüências se desdobram, por exemplo, em um alto índice de exposição à violência que se expõe os usuários de Crack ou de contágio por DST’s em virtude de compartilhamento de seringas (caso dos usuários de drogas injetáveis), quanto também a um número considerável de complicações clínicas secundárias (caso dos usuários de etílicos), de todo modo, um grande número de agravos pode ocorrer nessa população, sejam eles sociais, sanitários, legais, clínicos, etc, etc.

Importante destacar que a estratégia de Redução de Danos pode de alguma forma permitir a implicação do sujeito com seu sintoma, de modo a conduzí-lo a percepção sobre sua responsabilidade acerca do que o acomete. Neste caso não se trata de qualquer espécie de doutrinamento moral, mas do que se pode chamar ‘educação para a saúde’, na medida em que permite a oferta de informações e eventualmente insumos para um uso de drogas seguro, contornando outros agravos que implicam em desdobramentos muito mais severos para o paciente e para a saúde pública como um todo.

Uma visada apressada poderia alegar que tal estratégia prolonga o uso de drogas do sujeito, sendo complacente ou eventualmente conivente com a situação. Ledo engano, aqueles que trabalham com a clínica das toxicomanias percebem rapidamente que disciplina, doutrinamento, cerceamentos ou castigos não são mais que medidas paliativas de pouco alcance. É o tempo do sujeito que poderá levá-lo a um posicionamento quanto ao uso nocivo da droga, e isto deve ser uma meta pessoal e jamais uma meta institucional, talvez devamos nos recolher à nossa impotência (como dizem os membros de A.A.) e reconhecer todos os furos em nosso saber, declinarmos da posição de doutrinadores e nos contentar com o que é possível. O tempo é o do sujeito e não o da instituição. A opção pela informação de modo a se produzir conhecimento e a oferta de ferramentas de modo a se produzir proteção, soa como uma estratégia mais efetiva, desse modo uma máxima da psicanálise pode nos mostrar todo seu alcance. Lacan aposta que deve-se responsabilizar o sujeito pelo seu sintoma, na verdade, o psicanalista sustenta que todos são responsáveis por sua posição de sujeitos. A redução de danos segue em um curso próprio, não se apoiando no referencial teórico x ou y no que diz respeito aos campos do saber psi. Mas pensando em uma clínica ampliada e fazendo um raciocínio interdisciplinar, acredito podermos fazer a aproximação que faço entre o acesso a informação e a possibilidade de que um sujeito tome uma posição responsável diante de seus sintomas. Bem ou mal é na vida social que colhemos a dimensão, o alcance e limitação de todos os nossos atos.

Em vários lugares falar em redução de danos parece uma heresia. No caso dos hospitais, a mescla dos quadros clínicos, pouco espaço permite para que se trabalhe de forma pontual a questão, trata-se aqui mais de uma dificuldade institucional propiciada pelo volume das demandas. Outrossim em se pensando na Reforma tal qual reza sua cartilha, a internação deve obedecer ao tempo precípuo de sua necessidade, debelada a crise, o paciente deve ser encaminhado para sua referência, deve voltar ao seio de sua comunidade. Como dito acima, muitos casos que vão parar nos hospitais tem uma permanência relativamente breve quando o diagnóstico é exclusivamente o uso de produtos inebriantes sem quadros psicóticos associados. Assim, passado o susto de uma temporada junto ‘aos loucos de verdade’ é muito comum que os pacientes saiam sem que se tenha tempo hábil ou mesmo condições para se trabalhar suas questões específicas. Diria que no caso do hospital a palavra heresia para a redução de danos não se aplique, talvez o melhor termo seja ‘incompatibilidade temporal’. Não porque não se deva falar disto, mas mais especificamente porque o tempo não permite.

Mas nas CT’s com a abstinência como meta única do tratamento a estratégia de Redução de Danos é comumente pensada como fracasso terapêutico. É necessário interrogar essa posição. Parece mais razoável que os religiosos se ocupem da ação social que não comporte a clínica. Sabemos como no princípio da história do hospital psiquiátrico, religiosos e alienistas se esbarraram em vários momentos até que ficasse claro onde estavam as verdadeiras competências. É necessário perceber que admoestações morais não surtem efeitos terapêuticos, assim sendo, que se deixe a clínica para quem sabe fazer clínica e a catequese para quem está habilitado para tal. Lacan com língua afiada nos adverte: Se Deus fez o homem à sua imagem não se pode escapar da impressão de que certamente o homem pagou na mesma moeda[i].

Resta-nos concluir fazendo algumas considerações sobre os CAPS AD, eles são poucos ainda, sem dúvida. O volume da demanda é incomensuravelmente maior do que a disponibilização dos serviços. O ordenamento jurídico estabelece que os CAPS AD ocorram para municípios com população a partir de 200 mil habitantes ou cenários epidemiológicos importantes que necessitem mais especificamente deste tipo de serviço[ii]. Naturalmente a incidência de uso e abuso de substâncias não leva em conta estatísticas populacionais, o que cria uma lacuna na prestação dos serviços e sugere questionamentos acerca dos critérios que norteiam o estabelecimento de estratégias de intervenção sanitária. Disto decorre que municípios menores acabam simplesmente não oferecendo tal modalidade de atendimento. Sabe-se lá quantos malabarismos são feitos pelas equipes de saúde mental para que as demandas sejam adequadamente atendidas. Haverão casos em que nada será feito e estes pacientes serão encaminhados para grandes centros, hospitais de referência ou ainda para as C.T.’s.

É necessário perceber a magnitude do desafio que a Reforma encontra para implantação de suas políticas bem como as grandes expectativas que a cercam. Para que tudo dê certo é necessário uma grande implicação dos atores que participam dela, pois os profissionais de saúde, mais do que técnicos são também agentes de política pública e como tal, em seu dia a dia apostam e assumem riscos, assim como acontece com os usuários e suas famílias. No que diz respeito a uma política pública que vise atender aos usuários de produtos tóxicos é necessário se afastar da negligência histórica que ocorreu em relação a esta delicada questão. Não se pode mais tolerar o silêncio, a indiferença e o preconceito, pois a omissão do gestor público acabou por oportunizar ações tão bem intencionadas quanto equivocadas, na medida em que tapamos os olhos somos coniventes com o laissez-faire. O tratamento das questões pertinentes ao abuso de drogas não permite nenhum furor curandis e ao mesmo tempo coloca-se como algo diante do qual é impossível recuar. Este é exatamente o tipo de questão que apesar de toda a controvérsia que oferece, nos força necessariamente a percepção de que é o tempo apenas que nos mostrará onde estava a razão.

Anderson Matos
 
[i] Lacan, J. O Seminário, Livro 7 – A ética da Psicanálise (1959-1960), tradução Antônio Quinet, Jorge Zahar editor Ltda., Rio de Janeiro, 1988, p 239

[ii] Delgado, P.G.G, et ali, Reforma Psiquiátrica no Brasil: Política de Saúde Mental do SUS. Epidemiologia da Saúde Mental no Brasil. Mello, M. F., Mello, A. A. F., Kohn, R. (org.) – Porto Alegre, Artmed, 2007 p 62

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