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Observações sobre o hospital psiquiátrico no contexto da reforma brasileira

Este trabalho faz algumas observações sobre a reforma psiquiátrica brasileira que prevê a desconstrução da instituição manicomial e a criação de serviços substitutivos que substituam tal modalidade de atendimento. O manicômio, que parece na atualidade tão anacrônico, talvez ainda cumpra algumas funções em decorrência da inexistência de cobertura adequada para a saúde mental que cubra satisfatoriamente nossa ampla rede territorial.
Existe hoje no panorama da cultura ocidental um movimento amplo que repensa as práticas relativas à saúde mental e o papel historicamente atribuído ao hospital psiquiátrico. Projetos visando reformas institucionais e ideológicas entraram em curso a partir de interrogações que foram surgindo ao longo do tempo, acerca da eficácia e eficiência do tratamento asilar. Houve um momento não muito distante, em que o manicômio e os campos de concentração encontravam uma estranha e indesejável semelhança. Foi devido a tal sorte de impressões que vários países passaram a questionar acerca da pertinência do próprio lugar do hospital psiquiátrico, e a partir de então assistimos a projetos sanitários de reforma no tratamento da saúde mental.

No caso brasileiro tal reforma foi inspirada naquela que ocorreu na Itália com a implantação das propostas de Franco Basaglia, que concebia o hospício mais como uma instituição arcaica e reprodutora de exclusão, do que um lugar afeito a um tratamento digno para a loucura. A reforma tupiniquim, tal qual seu modelo, propõe por um lado a desconstrução da instituição manicomial, e por outro, a criação de todo um aparato de equipamentos e ferramentas que vão substituí-la. A idéia que subjaz à reforma é a de que deve-se contornar as manifestações da loucura extra-muros, fora do hospital. Entende-se que é melhor para o paciente ser tratado in locco, em um serviço comunitário com a manutenção do sujeito em seu próprio espaço social. Busca-se assim evitar entre outros, por exemplo, os efeitos iatrogênicos que os tratamentos institucionais comportam, busca-se manter o enfermo em contato com a sua comunidade, preservando ao máximo possível o enlaçamento social do sujeito.

Por outro lado, sabemos como o hospital psiquiátrico é por definição o lugar para onde é dirigida a loucura, quando as manifestações de um sujeito não conseguem circunscrever-se de forma adequada no espaço social. Pode-se dizer que a loucura é habitualmente caracterizada por alguma espécie de crise que não pode ser contornada ou mediada no espaço de convivência comum. Este tipo de impressão sobre a loucura nos remete historicamente a própria genealogia do manicômio e permanece ainda hoje passível de ser comprovada, apesar da referida reforma em curso.

É curioso que em meio a esta reengenharia que desloca o eixo paradigmático da questão, na medida em que deixa de privilegiar a doença mental e o tratamento institucionalizado da moléstia, e passa para um viés preventivo que tem como foco a saúde mental e um tratamento extra-muros, ainda tenhamos que considerar sobre a presença do hospital psiquiátrico entre nós. O manicômio nesta acepção impregnada que o termo comporta, configura-se no imaginário contemporâneo uma herança indesejada que merece apenas sua própria desconstrução, e falar dele parece-nos trazer de volta um cadáver insepulto que jazia no armário, parece um deja-vú de uma questão que parecia já ter sido superada.

Um buchicho, porém, ganha a mídia quando surgem questões relativas à pertinência da lei 10.216 (a lei da reforma psiquiátrica brasileira). Manifestações pró e contra surgem com defensores de grande envergadura advogando posições heterogêneas. Ninguém menos que o poeta Ferreira Gullar brada contra o que lhe parece ser um descalabro de lei, ele se ressente e questiona sobre a redução de acesso aos leitos psiquiátricos na rede pública após a implantação da reforma brasileira. Do outro lado psiquiatras militantes e politicamente engajados sentem-se compelidos a falar, ‘Impossível se calar’ é o nome de apenas uma das respostas que foram dirigidas ao poeta.

De todo modo, a verdade é que o hospital psiquiátrico por uma grande sorte de motivos permanece ainda hoje como um lugar comum na vida de muitos pacientes portadores de sofrimento mental. A loucura quando volta ao hospital é exatamente aquela que encontra intolerância no espaço social, é no imaginário coletivo, um destempero refratário ao ordenamento social.

Uma rica fenomenologia clínica pode produzir o reencaminhamento da loucura ao manicômio. Ela caracteriza-se entre outras, pelas formas de desvario que manifestam riso e choro, revelando na mesma face tanto a alegria que não conhece o limite, quanto a dor sem ponto de parada. Surge ainda na forma do desatino, da ausência de crítica, da ausência de pudor, a vergonha também se ausenta, surge a nudez, o desejo sem critérios aflora sem interdição. Não mais lugar para a razão, não mais atenção à lógica, o pensamento repleto de automatismos mentais, mostra-se invadido, publicado, roubado. Juízos falsos criam um mundo próprio que delirante se constrói, a linguagem prolifera em mil novas línguas, o afeto transborda sem sintonia, a memória falseia e trai. Podem ocorrer ainda vozes imperativas que ordenam ao enfermo que produza determinadas ações, que eventualmente (um ainda forte argumento jurídico-legal para interdição ou mesmo internação) podem representar risco para si mesmo ou para terceiros.

Em função de manifestações desta natureza ‘indomada’, e seus elementos geradores de conflito na ordem pública, demandas são feitas ao saber psi e sujeitos são encaminhados para os serviços de saúde mental. Lembremo-nos que ao hospital psiquiátrico e ao saber psi, (irmãos siameses forjados em uma só lavra) foi conferido o papel de normatização nos desvios das condutas sociais.

Dever-se ia pensar que os serviços substitutivos conseguissem sanar estas demandas e resolver os impasses que as crises provocam, rezando desta forma conforme a cartilha que a reforma propõe. Esta não é contudo, a verdade unívoca. Ocorre que muitas vezes, uma grande sorte de atravessamentos conduz novamente os sujeitos aos hospitais, tais ocorrências tão plurais, encontram diversas causalidades. Elas tanto são pertinentes ao que é particular quanto ao que é coletivo, podem ocorrer devido à magnitude das crises, quiçá em função da baixa aderência de alguns pacientes ao tratamento. Pode ser o primeiro surto e o paciente não encontrar-se ainda referenciado em um serviço de saúde mental, pode se tratar da enésima crise e de algum modo o serviço de referência do paciente não consegue servir efetivamente como tal, ou simplesmente pode ocorrer também a ausência de serviços substitutivos que consigam de maneira eficiente responder à demanda. Na verdade é muito plural o quadro da assistência que os municípios podem oferecer aos seus cidadãos e servindo-se de um jargão muito utilizado pelas operadoras de telefonia móvel no Brasil, talvez estejamos autorizados a pensar que existem áreas de sombra, sem a devida cobertura para a assistência a saúde mental em muitos lugares do nosso país.

Ainda em relação ao hospital psiquiátrico, um preceito ético que a reforma prega é de que a internação obedeça estritamente ao tempo em que se fizer realmente necessária. Contornada a urgência, verificada a melhora no caso, tendo ocorrido novo arranjo social (fato que muitas vezes prolonga a permanência de alguns pacientes), tendo sido de algum modo atendida à demanda que conduziu aquele paciente à internação, providenciar-se-á a alta. Novamente a questão da referência ao serviço de origem do enfermo deve considerada no momento de sua saída, buscando-se uma aplicação efetiva da noção de rede que permite construção, sustentação e manutenção dos lugares do sujeito em sua particularidade, no espaço social.

Parece muito razoável pensar que a loucura merece um lugar entre nós, talvez erros históricos nos façam perceber que temos uma espécie de dívida para com a loucura, como se tem em relação a tantos outros excluídos, párias culturais e sociais de várias épocas de nossa história.

Não é a toa que a loucura já mereceu elogios, Erasmo de Rotterdam, diz sobre a predileção que os reis tinham pelos loucos. Diferentemente dos sábios que tinham duas línguas, uma para dizer a verdade e outra para falar conforme as circunstâncias, aos loucos podia-se tributar sempre a franqueza e a verdade. Talvez exatamente porque o leque de emoções abre-se em um sem fim de variedades, a loucura tenha merecido o elogio do escritor e o entendimento por muitos, de que ali, habitaria algo da verdade do homem.

A loucura em seu volume exacerbado mostra o que habita nos interstícios dos homens comuns. Freud é partidário da idéia que a patologia mostra de modo expandido os mesmos afetos que encontramos abrandados nos homens normais. É assim, por exemplo, que nos mostra que na queixa dos paranóicos de serem vigiados, reside de forma ampliada, aquilo que nos homens normais funcionaria como a voz da consciência.

E porque temos uma consciência que nos vigia conforme notou Freud, e deixando-se levar por ela, provavelmente teremos a percepção que é necessário tratar melhor a loucura.

Parece muito razoável levar em conta o elogio de Erasmo que revela sobre a presença de alguma forma de verdade na loucura, bem como das notações freudianas, que nos advertem sobre o fato de que a qualidade dos afetos é muito semelhante, que loucura e normalidade talvez se diferenciem mais em virtude de suas quantidades do que propriamente de suas qualidades. Considerações como estas resgatam a humanidade que tantas vezes subjaz esmagada pela loucura, fazem-nos lembrar que por traz de toda a nosologia e a fenomenologia clínica existe um sujeito, e que ele deve ser considerado em sua particularidade. Vale lembrar que para além dos nossos saberes, classificações e enquadramentos possíveis, existem sujeitos nas cidades em uma inalienável posição de cidadãos.

Assim devemos louvar a reforma psiquiátrica que assistimos e suas diretrizes sociais que preservam o sujeito e o seu enlaçamento. Devemos perceber definitivamente que é correto pensar que o hospital (no caso da psiquiatria) não pode ser jamais o primeiro recurso, e sim o último, para alguém que precise dele. É muito pertinente sustentar que a saúde e sua promoção como política pública devem ser feitas em nível básico. A reforma está absolutamente correta na medida em que percebe ser mais importante focar na manutenção da saúde mental do que ter que tratar os desalentos produzidos pela doença mental. Mas, para que tal situação assim se proceda, muito há que acontecer ainda. A rede substitutiva ainda precisa ser ampliada. Os municípios devem ter efetivamente um posicionamento ético e político que considere sobre os direitos do cidadão. A loucura que tradicionalmente foi pensada como passível de interdição não deve sufocar os sujeitos que foram por ela seqüestrados, é importante notar que um dos princípios mais importantes desta reforma é o resgate da cidadania que ela proporciona. Não se pode esquecer que o portador de sofrimento mental é um cidadão e como tal, deve ter garantido seu direito à saúde. Mas falta muito para que o hospital psiquiátrico vire peça de museu, na verdade seu papel é ainda crucial, ainda não estamos preparados para sua completa desconstrução. Será somente quando o gestor público fizer aplicar literalmente o ordenamento jurídico que regulamenta sobre a atenção à Saúde Mental em todos os municípios do nosso país é que o panorama da reforma e o destino do hospital psiquiátrico irão realmente tornar-se outros.

Enquanto isto ainda não acontece por completo, podemos ir ocupando-nos com outro tipo de problemas que precisam ser enfrentados e barreiras que precisam ser desconstruídas, barreiras tão sólidas ou mais que os muros institucionais. As verdades que residem na loucura são sem dúvida, estranhas verdades, mas nem por isto menores, Erasmo nos guia quanto a isto. Em um mundo no qual as fronteiras se expandem tanto, parece ter chegado definitivamente o momento da desconstrução necessária de algumas grandes barreiras, existe ainda um grande muro que habita muitos que conseguem ver na loucura não mais que um sujeito sem razão. A fenomenologia a se observar nestes casos seria a cegueira proveniente da intolerância e do preconceito, e neste mundo tão ampliado isto não deveria ocorrer mais, parece um efeito anacrônico impregnado de impressões arcaicas.

Anderson N. Matos

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