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Amor e Paixão em Freud e Winnicott ou para uma Psicanálise 2.0

O tema da paixão, como um fenômeno estreitamente relacionado ao do amor, a ponto de muita gente tomar um pelo outro sem muito refletir, vendo na paixão apenas uma forma mais ‘viva’, mais ‘colorida’, mais ‘cheia de graça’ que o amor, merece mais do que a entusiasmada torcida de um certo grupo de profissionais da psicanálise, movidos que são, justamente, pelo ‘entusiasmo’. Curiosa a presença desse termo neste contexto, já que seu sentido etimológico é ‘possuído por um deus’, em grego. A pergunta ‘o que têm os deuses a ver com isto’ é algo que tentarei explicar mais adiante. Em todo caso, sinto nessa questão o cheiro de mais uma presença: a de um rei, ou imperador, um certo Guilherme, o famoso Wilhelm Reich, o Rei do Orgasmo…

O relacionamento entre duas pessoas pode ter dois objetivos: 1 – uma delas dá apoio à outra. 2 – ambas se apóiam reciprocamente. Nos dois casos podem, a meu ver, acontecer fenômenos geralmente chamados de ‘amor’ ou de ‘paixão’, conforme o caso, e essa já é uma primeira diferença entre as duas classificações. Isto porque o termo ‘paixão’ geralmente implica um envolvimento não só mais intenso, como muitas vezes mais unilateral que o termo ‘amor’, em que não se trata tanto de uma necessidade de receber apoio, quanto de um sentimento mais generoso e menos ligado à idéia de ‘necessidade’.

Um dos aspectos que gostaria de apontar aqui é o de que, quanto a isto, entre ‘amor’ e ‘paixão’ há mais uma diferença de quantidade que de qualidade: em certo sentido, constituem um contínuo. Por um lado, é possível dizer que ‘amor’ implica um fenômeno mais ameno, mais sereno, e por isso mesmo mais duradouro que a ‘paixão’, geralmente mais tempestuosa. Por outro, gostaria de sugerir que nenhum dos dois fenômenos é destituído de ‘necessidade’: tanto a pessoa que ama quanto a pessoa apaixonada necessitam da outra pessoa, mesmo quando se trata de um amor em que uma pessoa adulta cuida de uma criança. Se há amor, há necessidade, este é um dos corolários do que desejo descrever aqui. A diferença, então, seria dada pelo grau dessa necessidade.

Outro aspecto diz respeito a mais uma diferença entre os dois fenômenos. Certa vez me ocorreu a idéia de que o verbo ‘amar’ é, gramaticamente, um verbo transitivo: descreve um movimento dirigido para um objeto. Já o verbo ‘apaixonar-se’ é classificado, gramaticalmente, como ‘reflexivo’, em que é descrito um movimento do sujeito gramatical em direção a si mesmo. Por um lado, talvez esta seja apenas uma característica da língua portuguesa, ou das línguas latinas em geral. Mesmo em hebraico, porém, língua semítica, em que ‘amor’ se diz ‘ahaváh’, ‘amar’ é ‘leehóv’, verbo transitivo direto, enquanto ‘apaixonar-se’ é ‘lehit’ahév’, onde a partícula ‘hit’ indica o movimento reflexivo do sujeito em direção a si mesmo. Duas curiosidades: Não conheço, em hebraico, o substantivo ‘paixão’, que pela lógica da gramática hebraica seria indicado pela palavra ‘hit’ahavút’, palavra que a meu ver não existe. Por outro lado, existe a palavra ‘hitlahavút’, que significa ‘entusiasmo’(!!!) Deriva, aparentemente, de ‘láhav’, da qual vem também a palavra ‘lehaváh’, ‘chama’ (!!!). Talvez a semelhança não seja mera coincidência.

Por que isso acontece e por que o movimento da paixão é tão mais intenso que o movimento do amor é o que pretendo mostrar a seguir. Vou relacionar, sucessivamente, vários pensamentos de Freud sobre esses fenômenos aos pensamentos correspondentes de autoria de Winnicott, para mostrar como o entendimento psicanalítico ampliou-se, ganhando em alcance e profundidade, como tantas vezes acontece na ciência, onde uma teoria vai sendo modificada para melhor à medida em que novos instrumentos e novas percepções vão permitindo uma compreensão cada vez melhor dos fenômenos estudados pelos cientistas. A ninguém ocorreria dizer, por exemplo, que a teoria de Newton foi ‘revogada’ pela contribuição de Einstein, mas é óbvio que esta última ampliou enormemente o alcance da primeira. Mudando os personagens, e falando agora de Ptolomeu e Copérnico (mais Kepler), proponho que entre Freud e Winnicott ocorreu uma mudança semelhante. Por um lado, as percepções de Copérnico foram muito mais longe que aquelas de Ptolomeu. Por outro, é óbvio também que se não fosse Ptolomeu, não teria existido Copérnico. É preciso, porém, não confundir ‘admiração’ com ‘submissão’, pois a nenhum cientista ocorreria continuar utilizando, para descrever fenômenos astronômicos, as idéias de Ptolomeu, por mais admiráveis que sejam as suas proposições. É impressionante a precisão com que, baseando-se numa premissa totalmente falsa, a de que os corpos do sistema solar giram em torno da Terra, e sem o principal instrumento de observação astronômica, o telescópio, Ptolomeu conseguiu calcular e descrever a posição de cada planeta num momento dado – no passado ou no futuro. Isto, porém, não levaria ninguém, atualmente, a utilizar os seus métodos para, por exemplo, enviar uma nave espacial à Lua ou a Marte. Fico, portanto, muito admirado quando leio trabalhos em que os movimentos da psique humana são, ainda hoje, descritos por meio das formulações de Freud, quando as que Winnicott produziu são tão mais precisas e tão mais profundas. Aperfeiçoamento de uma teoria é uma coisa, e correção da teoria é outra.

Mas vamos ao que interessa. Gostaria de agradecer, antes de continuar, a Maria Vitória Mamede Maia e Júnia Vilhena, de cujo belo trabalho ‘Que Tu És como um Deus, Princípio e Fim’ colei, desavergonhadamente, os argumentos freudianos que utilizarei a seguir. Não vou poder dar as referências de cada uma das idéias, seja de Freud seja de Winnicott, mas ficarei profundamente grato a quem, pelo amor (ou será a paixão?…) pela precisão suprir a minha deficiência em diligência e empenho e puder encontrar essas referências. A quem o fizer prometo promover a ‘co-autor’ do presente trabalho.

É sabido que para a pessoa apaixonada só existe o outro, ao qual ela se funde. Seu ‘eu’ não existe, provisória ou permanentemente, e este, o aspecto temporal, é um dos grandes problemas na questão ‘Amor  X  Paixão’. O objeto da paixão é um ser totalmente idealizado, e aquele que se apaixona se sentirá totalmente identificado a ele, por algum tempo ou de modo permanente (até que um analista os separe, é claro…)

Para Freud a paixão consiste num investimento da libido narcísica, de forma maciça, no outro, que por isso se transforma num objeto ideal. Com a idealização, o objeto amado torna-se absolutamente fascinante, e por isso atraente para aquele que ama.

Vemos aqui como Freud, dentro de sua teoria, deixa como possível que o ego lá está desde um momento muito precoce. Winnicott, por sua vez, percebe de modo radicalmente outro essa situação, e mais adiante tal percepção distinta aparecerá.

Freud descreve a paixão em ‘Psicologia de grupo e a análise do ego’ (1921). Trata-se de um estado no qual o olhar apaixonado desvaloriza intensamente o próprio eu (não encontrei a explicação de Freud que descreveria os motivos dessa desvalorização). O objeto se torna ‘cada vez mais sublime, precioso’, usurpando, digamos, ‘todo o auto-amor do ego’. O sacrifício de si mesmo torna-se, inevitavelmente, um dos desfechos possíveis do processo quando, segundo o autor, ‘o objeto [acaba por] consumir o ego’. Desta forma, as funções do ideal do eu ficam paralisadas.

Como tudo isto seria diferente se Freud pudesse ter imaginado um ego surgindo aos poucos, e não desde muito cedo. Ele poderia ter dito, como dirá Winnicott, que até certo momento ainda não há um ego inteiramente constituído, e sim apenas núcleos do mesmo – não integrados, ou seja, dispersos no espaço psíquico, sem se apoiarem uns nos outros e sem, portanto, a capacidade de, a partir do conjunto, melhor relacionar-se com a realidade tanto interna quanto externa. Não houve ainda tempo de o recém nascido se constituir numa pessoa por direito próprio, ou numa pessoa ‘inteira’, segundo Winnicott.

Fica muito mais simples compreender o fenômeno da paixão se presumirmos que em vez de ‘o objeto consumir o ego’, o ego simplesmente ainda não existe por inteiro, e que nesse momento inicial o objeto primário (‘mãe’) ainda está fundido ao bebê, ou vice-versa: não há, ainda, duas pessoas nessa relação, e sim uma única: ‘mãebebê’.

Um acidente, ou uma grave desatenção da figura materna para com as necessidades egóicas do bebê interromperiam o processo de gradual desfusão dessa díade, resultado – precisamente -, da e ao mesmo tempo resultando na, constituição do ‘eu’ do bebê, e com isso impediriam o prosseguimento do seu desenvolvimento emocional. Um dos mais intrigantes paradoxos propostos por Winnicott é o de que, embora ainda não exista um ‘ego’ no início, já existem ‘necessidades’ desse ego. Mas o que se pode deduzir do que diz Winnicott é que tais necessidades não são simplesmente do ego, e sim do processo que permite ao ego integrar-se. Se não forem atendidas, não se completará a integração, e não haverá um ‘ego’ merecedor desse nome. A consequência será justamente essa – um ‘semi-ego’ o qual, sempre que surgir a possibilidade, tentará restabelecer a antiga completude, vinculando-se quase que por inteiro a um novo objeto. Em vez de ‘o objeto consumiu o ego’, segundo Freud, diríamos, seguindo Winnicott: ‘o ego incompleto é incapaz de permanecer tranquilo nessa forma amputada, fundindo-se a um objeto que se encontre ao seu alcance e desaparecendo dentro dele (fundindo-se com ele).’

Desse modo, as afirmações de Freud sobre a desvalorização do eu, tendo como consequência o objeto tornar-se supremamente fascinante, e sobre o ‘desligamento’ das funções do ideal ego deixam de ter sentido, e precisam ser compreendidas desta outra maneira:

Se, ao invés de teorizar sobre a fixação em ‘fases da libido’, buscando tornar a psicanálise uma ‘ciência da natureza’, Freud pudesse ter pensado em ‘fases do desenvolvimento emocional’, com o objetivo de entender melhor a ‘natureza humana’, ele teria dito, como diria Winnicott: O olhar da paixão acende no indivíduo a esperança de sair da situação insuportável, amputada, em que se encontra, vendo no objeto por ele encontrado agora a possibilidade de voltar a amar a si mesmo, a tornar-se novamente com alguma chance de sobreviver, como se sentia quando a díade mãebebê ainda existia. Assim, as funções do ideal do eu poderiam começar a funcionar.

Para Freud, ainda no seu artigo, ‘estar apaixonado’ é diferente de ‘estar amando’ que é uma escolha do tipo anaclítica. ‘Estar apaixonado’ implica, necessariamente, a servidão do apaixonado ao objeto da paixão. Já ‘estar amando’ leva o ego a enriquecer com as propriedades do objeto, introjetando-as em si próprio. No estado de apaixonamento o ego empobrece, entrega-se ao objeto, nas palavras de Freud: ‘Substitui seu constituinte mais importante pelo objeto.’

Muito interessantes estas palavras. De fato, há uma diferença profunda entre o ‘apaixonar-se’ e o ‘amar’. Em outro momento ocorreu-me a idéia de escrever o meu trabalho com o título: ‘Uma Lição de Gramática: ‘amar’, verbo transitivo; ‘apaixonar-se’, verbo reflexivo’. Além do que foi dito acima a esse respeito, acrescento aqui a idéia de que o ‘amor’ presume um investimento no outro, um abrir mão de parte de si para doá-la ao objeto, enquanto que o ‘apaixonar-se’ implica, ao contrário, a tentativa de sugar o objeto para dentro do eu (este eu aqui se caracteriza como ‘pessoa física’, como indivíduo da sociologia, não da psicologia), num movimento de roubá-lo dele mesmo e tomá-lo para si. Ao apaixonar-se, a pessoa faz um movimento para dentro, em direção a ela própria, e tenta arrastar o outro, o objeto, para lá. Isto porque o ‘eu’ ainda em botão procura um outro que lhe falta para poder tornar-se inteiro. Num célebre poema de Florbela Espanca, ‘Fanatismo’, citado pelas autoras do artigo acima mencionado (ver a íntegra do poema ao final), eu acrescentaria algo ao final do poema, ao mesmo tempo tornando-o mais ‘winnicottiano’ e deixando claro o que fazem os deuses no contexto desta reflexão tão pouco, digamos, teológica: Se o poema termina com

‘E, olhos postos em ti, digo de rastros:
Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como um Deus: Princípio e Fim!…’
Eu acrescentaria
‘E, pois que te adoro, cria-me, integra-me
– para que haja uma vida
Também para mim.’

Disso decorre que, no olhar de Winnicott, o ‘objeto’ da paixão seria, na verdade, um ‘sujeito’, o sujeito da criação de um outro sujeito, o eu, um forno ao qual o bolo, tirado de onde estava cedo demais, deseja ardentemente voltar a fim de, mais tarde, ‘ficar pronto’. (Sim, Winnicott presume uma ‘tendência inata à integração’, ao ‘amadurecimento’. A socialização não resulta do empurrão social, para Winnicott, e sim de um impulso inato, natural, o qual, porém, só se realiza se o ambiente o permite. Esse é o elemento que diferencia, essencialmente, a psicanálise clássica, aqui considerada como ‘1.0’, daquela proposta por Winnicott – ‘2.0’).

No modo de pensar freudiano, a paixão leva a um investimento exclusivo no objeto, e isto corresponderia a uma idealização maciça deste, não deixando margem para que qualquer outro objeto tome o seu lugar. A paixão tem a ver, para Freud, com o ideal do eu. Na verdade, porém, ela se refere muito mais ao ‘eu ideal’ que ao ‘ideal do eu’, porque é óbvio que uma identificação com o ideal do eu (uma ‘imago’ extraída do mundo externo, por definição) produziria uma idealização menos intensa: haveria lugar para o surgimento de outros ideais de eu, substitutos deste ou complementares a este. Se idealização significa, para Freud, que o objeto seja tratado da mesma maneira que o próprio ‘eu’, e se ela é um dos elementos que contribuem para a formação do superego, a idéia de que quando se está apaixonado algo dessa idealização transborda e ‘cega’ o ideal de eu, aquela censura interna que, impedindo-nos de perceber o que ela pretende nos mostrar, a realidade na qual estamos submersos, sou obrigado a dizer, a partir de Winnicott:

Pobre Freud. Ideal de eu, censura interna, realidade na qual estamos submersos, tudo isso ainda virá a existir se o desenvolvimento emocional prosseguir tranquilamente. Caso contrário, nada disso acontecerá: a censura funcionará só ‘para inglês ver’, ou seja, será uma imitação, e quando o tal inglês não estiver olhando os impulsos originais saltarão de seu esconderijo e a ‘realidade’ tomará o lugar que ficou vago – ou seja, se enfiará no esconderijo e sumirá da vista. Dito de outro modo: O movimento da paixão não resulta de uma intenção do sujeito, que só poderia ocorrer bem mais tarde, no desenvolvimento, mas de uma necessidade, que lá está, presente, desde o início. Por isso a paixão pode ser considerada um modo mais primitivo de amar, não só como um modo ‘equivocado’ de fazê-lo.

Na poesia de Florbela é mencionada a cegueira do eu em relação ao outro, de que fala também Freud, mas eis nos aqui de novo: a cegueira não é em relação ao outro, e sim em relação ao eu, que simplesmente não pode ser visto porque ainda não vê, nem existe ainda como algo visível!!!  O ‘outro’, por seu lado, também não é visto como ‘outro’, e sim como ‘a metade de mim, a metade arrancada de mim’, como diz Chico Buarque, portanto como ‘parte do eu’, e por isso o ‘outro’ enquanto tal tampouco é percebido. Mas isso implicaria em miopia, no máximo, e não em cegueira, porque o vulto, a silhueta do que está faltando, está sempre lá (esta é, precisamente, umas das necessidades de que fala Winnicott, uma necessidade do processo de amadurecimento do eu. É possível dizer, também, com base na idéia do falso-self, de Winnicott, que a cegueira é completa, pois o ‘eu’ desapareceu da vista já que existia só para que o tal ‘inglês’ o visse. Não pode mais ser percebido porque de fato ele nunca existiu como um eu ‘real’, inteiro, o que só acontecerá se o ‘outro’ decida juntar-se a esse ‘eu’, e juntos, perfaçam novamente a díade perdida. E quanto à perda do princípio da realidade? Não, o princípio de realidade não foi perdido. Ele simplesmente ainda não foi alcançado. Ainda está bem longe a hora de ele aparecer em cena. Por sua vez, o ideal de ego idem, pois nessa etapa o ideal de ego também não está ainda formulado. Se é ele que instaura a censura interna, o superego, é preciso dizer que, no momento que estamos examinando, no processo de desenvolvimento emocional, o que há é o feroz superego primitivo tão bem descrito por M. Klein, devido ao qual, diz ela, o ‘euzinho’ ainda em botão se sente tão ameaçado e vulnerável. Se acompanharmos Winnicott, porém, veremos que essa ameaça e a conseqüente vulnerabilidade não se devem a nenhum ‘superego kleiniano’, bela construção mas pura falácia, e sim, na verdade, ao estado original de desamparo e vulnerabilidade que podemos observar, sem maiores problemas ‘científicos’, em qualquer filhote de bicho, e na verdade em qualquer ser vivo menor que um cachorro ou gato adulto de bom tamanho: sendo o indivíduo humano um filho da natureza, portanto da biologia, é inevitável que existam nele os mesmos mecanismos de auto-preservação que sabemos existirem em qualquer outro ser vivo. A recusa mais ou menos violenta em morrer, que caracteriza qualquer matéria viva, explica isso de modo simples, direto e cabal.

Em seu poema, Florbela Espanca se descreve como ‘enlouquecida’ por sua paixão. A palavra ‘enlouquecida’, nesse poema, dá o tom telúrico, primevo, fora da cultura, do estado em que se encontra a proto-personalidade nesse estágio tão inicial se a lâmina do destino (ou de alguma doença da mãe) a amputa de sua outra parte. A ruptura da díade mãebebê, se é trágica quando ocorre bem mais tarde (ver, a esse respeito, o meu artigo sobre a ‘síndrome da mãe morta’, de André Green, in Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte, aqui mesmo na minha coluna, quanto ‘a Tendência Anti-Social’, de D. W. Winnicott, em Da Pediatria à Psicanálise), é ainda mais contundente quando ocorre tão mais cedo. O ‘enlouquecimento’ da personagem, no poema, não é a meu ver figura de linguagem, nem metáfora. No pequeno livro Poesia de Florbela Espanca, publicado pela l&pm Editores, há um belo prefácio de Laury Maciel, intitulado ‘Tormento do Ideal’ (título de um poema de Antero de Quental, de quem, diz o autor, ‘Florbela Espanca foi discípula’). Num certo trecho podemos ler que ‘dentro dessa pequenina fórmula métrica’ – o soneto, Florbela move-se e realiza-se com todo o à vontade: crê-se que os seus versos registram com estridência dramática o cruciante viver de sua ‘alma trágica e doente’ (soneto ‘Ao Vento’)’. Diversas outras passagens desse prefácio utilizam os termos ‘atormentada’, ‘ansiedade’, ‘insaciável’, ‘dolorosa tragédia’, ‘sombria interioridade’, e assim por diante. De fato, a vida de Florbela Espanca, nas primeiras décadas do sec. XX, pode ser descrita como uma tormenta tropical de desamparo e ânsia, que raramente amainava – nos breves períodos em que esteve casada ou se relacionando com alguém, e ela própria assim se retrata, conforme citação sem referência do autor do prefácio:

‘O meu mundo não é como o dos outros: quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que nem eu mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista, sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades… Sei lá de que’.

Sim, a ela seria impossível saber do que sentia tantas saudades. Mas nós sabemos…

Vou citar agora alguns trechos do trabalho das duas autoras, com comentários meus : ‘O que importa para o ‘Eu Lírico’, aqui, é o outro e o olhar do outro, o corpo do outro e o desejo do outro, sentidos como se fossem ele mesmo [precisamente o que afirmei antes!]. Claramente a poetiza metaforiza esse processo de idealização da paixão, assim como a identificação com o eu ideal, ao utilizar o enlouquecimento como imagem [mas aqui, novamente, devo reafirmar: é pouco provável que seja uma ‘imagem’. Muito mais provável é que seja, para variar – em se tratando de uma poetisa – uma descrição ‘realista’, visto o que ela revela sobre si própria no fragmento autobiográfico acima]. O mundo passa a ser algo misterioso, onde o outro possui o deciframento, [ora, o outro ‘possui’ a completude, não o deciframento: a ilusão do ‘eu’ é esta, a realidade do que acontece é aquela outra…] E essa historia não é de agora, como bem demarca esse mesmo ‘Eu Lírico’, é algo ‘tantas vezes lida’, ou seja, é algo que advém de uma pré-história desse ‘Eu Lírico’, advém de sua tenra infância, na qual o eu ideal estava sendo constituído a partir da sua identificação primária com a mãe e seu olhar.’

Aqui as autoras se baseiam num pensamento teórico bem semelhante ao meu. É interessante observar a flutuação delas em termos de referencial teórico, mas a idéia de que a contribuição de Winnicott constitui uma revolução, e não uma complementação da teoria psicanalítica clássica é bem recente, posterior ao trabalho por elas escrito.

Dizem as autoras: ‘Na paixão se re-vive o estado narcísico primário e a sensação de completude.’ Mas nessa paixão, de Florbela Espanca, está sendo revivido algo muito mais intenso e mais arcaico, conforme foi dito um pouco acima. Dois indícios reforçam minhas considerações: o fato de a poetisa haver nutrido um ‘extremado amor de irmã’ por seu irmão Apeles, a ponto de terem surgido conjecturas a respeito de um relacionamento incestuoso, e as especulações (não confirmadas, a bem da verdade) sobre sua morte muitíssimo prematura, aos 36 anos, por suicídio. Há testemunhos desmentindo tais rumores, mas, ao que tudo indica, creio que para os que a conheceram pessoalmente a hipótese do suicídio deve ter parecido perfeitamente plausível. O penúltimo parágrafo do prefácio – no livro da poetisa citado acima, diz:

‘A tragédia da impossibilidade da comunicação de um amor incorrespondido foi, portanto, a grande tragédia de Florbela Espanca, compreensível (se é que há compreensão para essas coisas) na fusão das duas personalidades da poetisa numa só: a artista e a amante.’

Aqui vemos, ao vivo e em cores, a manifestação de uma outra tragédia: a tragédia da ignorância crassa, da qual mesmo intelectuais respeitáveis, no caso, um literato, de quem a alma humana não deveria ocultar tantos segredos, mostram-se vítimas. Lembremo-nos do que disseram tanto Freud quanto Winnicott sobre os poetas e romancistas antecipando as descobertas da psicanálise… Ao contrário do que diz o autor do texto, ‘essas coisas’ podem ser compreendidas sim, e o são. E a minha esperança é de estar contribuindo para ‘curar’ essa cegueira que a tanta gente afeta – na verdade a esmagadora maioria das pessoas.

Dizem as autoras: ‘O outro é esse espelho que nos informa: ‘eu te vejo assim’. O ser apaixonado se vê no outro, mas o que ele vê é algo misto entre o conhecido e o estranho. O eu ideal é sucedâneo desse olhar do outro – o eu especular materno. É este olhar que nos constitui, porque nos espelha. Quando nos apaixonamos, ‘ele’ vira sinônimo de ‘mim’ mesmo.’

Ótima formulação. No entanto, tudo isso se passa num momento posterior: a função de espelho do rosto da mãe só passa a se exercer quando o bebê já está um pouquinho crescido, e já pode começar a vislumbrar um ‘eu’ que seja visto pela mãe. Esse ‘outro’ não surge desde o início, diz Winnicott: ‘No início não há eu nem outro, há um estado em que duas pessoas, aos olhos do espectador, são uma só (do ponto de vista de ambas, na verdade, não só do bebê)’. Mas a última frase desse parágrafo é ótima: ‘Quando nos apaixonamos, ‘ele’ vira sinônimo de ‘mim’ mesmo’.

Esse é, porém, o segundo estágio da paixão. O primeiro consiste em proporcionar ao futuro ‘eu’ um mínimo de sentimento de segurança, um mínimo de proteção contra a morte que o espreita, implacável, a cada momento de sua frágil vida. Uma pessoa como Florbela Espanca vivia, é possível afirmar, nesse estágio criticamente inicial do seu desenvolvimento. ‘O bebê é um ser eternamente à beira da ‘angústia impensável’ (que eu entendo como a manifestação do medo biológico da morte), diz Winnicott, ‘e a tarefa mais importante da mãe é mantê-lo afastado dali’. O terror absoluto de ver-se sozinho contra a ameaça esmagadora do nada é a herança daqueles que perderam a sua metade primordial – a mãe que completava a díade. Porém, essa compreensão só se fez possível graças a Winnicott, até agora tão pouco conhecido.

Ainda as autoras: ‘O ser apaixonado, ao colocar o ideal no outro [mas não no outro ‘real’, o ideal é colocado no ‘outro’ da díade, e é por isso que o ‘ser apaixonado’, como dizem as autoras,] recupera essa sensação de completude, de onipotência a partir do outro. Estranho deslocamento, posto que a onipotência não é mais dele e sim daquele que ele ama e a ele devota todo o seu amor [esta frase é perfeita, só que, com o adendo à frase anterior, não há mais tanto que estranhar: nada mais lógico que isso]. A questão assinalada por Pierra Aulagnier, [conforme citação das autoras,] de Thânatos ser mais presente na paixão do que Eros é cabalmente representada no verso final do poema – ‘pois que tu és como um deus: princípio e fim’. Assim, a paixão estaria ligada à morte, a morte de um eu diferenciado ou constituído como tendo vida própria.’

Eis aí, com todas as letras, a prova cabal da ‘miséria’ da psicanálise clássica: não tendo explicação adequada, os psicanalistas da velha guarda sabem em quem pendurar a culpa: na morte, esse fantasma onipresente e onipotente, mas totalmente desconhecido, do qual se pode dizer qualquer coisa já que ele não estará aí para a desmentir. A questão é muito mais simples, e vou, então, falar dos ‘epicíclos’: as voltinhas, diziam os astrônomos anteriores a Copérnico, que os planetas em suas órbitas davam em torno de um eixo imaginário, para fora da linha que descrevia a sua órbita ‘real’, para justificar como é que (partindo, como estavam, da idéia de que os corpos celestes giravam ao redor da terra, e em órbitas circulares, ainda por cima…) um planeta qualquer ‘sumia’ em dado lugar e ‘aparecia’ algum tempo depois em outro. Isto porque eles eram muito competentes na arte de observar os planetas, calcular seus movimentos e prever o lugar onde estariam em dado momento, no futuro. O único problema era que, coitados, suas teorias estavam erradas, e por isso, como diz o ditado popular, ‘nada pior que dar a resposta certa para o problema errado’. Assim, a verdadeira questão é que o ‘outro’ da díade arcaica é outro que não esse ‘outro real’ de agora, e não haverá como este último consiga desempenhar o papel do primeiro, pois se com um bebê ninguém, nem a própria mãe, tem paciência absoluta (ver Winnicott, ‘O Ódio na Contratransferência’, em Da Pediatria à Psicanálise), que dirá com uma pessoa quase da mesma idade, da qual esse ‘outro’ se aproxima não para servir-lhe voluntariamente de mãe e sim para, além de amar, ser também amado? Pois o bebê, nessa fase de que estamos falando, apenas depende, e até certo momento nem sequer admite que depende, e do outro só percebe as benesses que irá receber, jamais as suas vontades ou necessidades próprias. Devotar-se desse modo a uma pessoa adulta, que jamais se esperaria (fora da psicoterapia) ser na verdade um bebê, ainda mais quando o interesse por essa pessoa em sua forma atual era radicalmente outro, (ver Férenczi, ‘A Confusão de Línguas entre Crianças e Adultos’), convenhamos, não é algo que se possa exigir de um ser apenas humano. Balint dizia que ‘o amor objetal primitivo caracteriza-se pelo fato de só um dos parceiros poder fazer exigências’! A pobre Florbela Espanca, então, não podia receber outra coisa dos que com ela iniciavam um relacionamento senão decepção. No esboço auto-biográfico referido acima há uma frase reveladora, logo antes do trecho acima citado: ‘Até hoje não há ninguém que de mim se tenha aproximado que não me tenha feito mal…’ e arremata: ‘talvez culpa minha, talvez…’ e em seguida, a primeira frase do trecho anterior: ‘o meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais’.

Aqui está, então, a explicação para o ‘diagnóstico’ tão contundente de Aulangier, que as autoras citam no parágrafo ora comentado: ‘de Thânatos ser mais presente na paixão do que Eros’. As autoras atribuem esse sentido ao verso do poema – ‘pois que tu és como um deus: princípio e fim’ – concluindo que o relacionamento está fadado ao fracasso pelo fato de Thânatos, tão pesadamente presente, impedir que o ‘eu’ apaixonado se torne ‘diferenciado ou constituído como tendo vida própria’.

Pobres autoras, pobres astrônomos de antanho, confiando em teorias mal formuladas. Por mais acuradas que sejam as suas observações, não escaparão de errar o alvo se estiverem interpretando o que vêem de modo equivocado. Einstein teria afirmado que ‘não há no mundo nada mais prático que uma boa teoria’, mas haveria que sublinhar a palavra ‘boa’ para que a frase chegue ao seu destino. Pois que, quando não é esse o caso, a prática sofre (como devem ter sofrido, sem dúvida, os pacientes de antigamente…) E tudo isto se confirma na próxima frase do texto, em que as autoras perguntam, já que estão apenas sendo guiadas por teorias ‘insuficientemente boas’, como diria Winnicott, pois ingênuas ou incompetentes é que não são:

‘Mas quando o outro não mais quer se responsabilizar por esse ‘enlouquecimento’, o que advém?’

A ruptura do relacionamento apaixonado também é um problema, obviamente, mas não exatamente como descrito acima. Em seu artigo, as autoras ilustram a questão do rompimento do laço afetivo com o belo poema ‘Atrás da Porta’, de Chico Buarque de Holanda. Confesso que não consegui compreender por que as autoras falam do que ‘abandona’, pois ali é descrito o desespero do abandonado, não do abandonante. O sofrimento deste último tem outras origens: primeiro, por mais que não seja suportável, o fato de ser colocado no lugar de um ‘deus’ dificilmente deixaria de afetar quem quer que seja. O puxão gravitacional daquele que perdeu sua metade arcaica é enorme, e enormemente fascinante – e, diga-se de passagem, se deve precisamente à presença da pulsão de vida, não da pulsão de morte (Thânatos). Poucos seriam aqueles tão bem sucedidos em sua primeira infância a ponto de não sentirem algum grão de saudade da magia e da completude que o estado de fusão e a ilusão de onipotência presentes na fase da díade possuem. A memória do paraíso primevo dificilmente desaparece sem deixar rastros. Aquele que foge desse mítico e ilusório paraíso ao qual o outro o atrai, onde ele seria o ‘deus’ daquele que tenta voltar para lá, acaba muitas vezes odiando esse que o atraiu para a armadilha, onde ele sim correria o risco de morrer – de exaustão, de inanição, do esvaziamento total de sua identidade e de suas forças físicas pelas infindáveis exigências do outro (Aulagnier, portanto, atirou no que viu e acertou no que não viu… ao menos é assim que o entendo), já que o outro, o apaixonado, nunca pode sentir-se inteiramente preenchido pelo que quer que o outro faça. No entanto, ele não pode, ainda assim, deixar de sentir, nem que por breves momentos, a perda de tão maravilhoso projeto, cujo único senão era o fato de ser absolutamente inexequível… Talvez ‘A arte, na maioria das vezes, retrata somente um desses lados’, como dizem as autoras. Não tanto ‘porque o outro [lado] seja o negativo deste, e assim, estaria incluso no mesmo’, como dizem elas. Mas pelo fato de que, na vida real, quem foi embora do ‘paraíso’ preserva-se, tanto quanto pode, de ‘olhar para trás’, para utilizar aqui algo que fala do oposto: ao serem salvos do inferno de Sodoma, Lot (sobrinho de Abrahão) e sua família recebem a ordem de ‘não olhar para trás’, e sabemos o que aconteceu com sua mulher, que olhou… Que dirá, então, quando é do paraíso que a pessoa se afasta…

Sim, a fuga do ‘paraíso’ dói, porque o ‘puxão’ continua a ser sentido, pois raros são os que estão isentos de todo sentimento de desamparo. Mas para vencer esse puxão é preciso, a todo custo, apagar da consciência o episódio recém encerrado. Na vida real, rara é a pessoa que nunca abandonou alguém desse modo e por esses motivos. No entanto, a saudade da pessoa rejeitada não vai embora junto com ela, e por isso precisa ser reprimida, para impedir ao máximo qualquer desejo de voltar atrás. Sabemos o quão comum é o relacionamento tipo ‘acordeão’, que vai e volta, vai e volta, frequentemente levando os parceiros (ambos, ou um deles) a um estado de desespero próximo do paroxismo. Ao final de episódios semelhantes só o parceiro abandonado registra, e por vezes acalenta, as memórias da ‘felicidade perdida’. (Lembremo-nos aqui das lágrimas da ‘noiva’ (Umma Thurman, no filme ‘Kill Bill’) depois de matar Bill, que a havia quase assassinado no dia em que ela ia se casar com um outro depois que ele a abandonou.) São muitíssimas as pessoas que, por décadas a fio, continuam a esperar a volta do parceiro abandonante. De fato, só um longo processo terapêutico pode, quando tudo dá certo, libertar a pessoa daquilo que, na verdade, constituiria uma situação de ‘melancolia’, como diria Freud, em que o luto não pode ser feito justamente porque no momento da perda ainda não havia um ‘eu’ capaz de continuar existindo depois que o ‘outro’ se foi. Nas situações de apaixonamento que eu aqui passo a chamar de patológico, do tipo descrito pelas autoras no artigo que deu origem a este, o que temos à nossa frente é justamente isto – a pessoa que sobreviveu à amputação sai pela vida buscando o ‘membro fantasma’, a parte amputada (e não nos esqueçamos de que essa ‘parte’ perdida é muitíssimo maior que a ‘parte’ que está à sua procura.)

Se, de algum modo, essa ainda-não-pessoa alcança uma situação em que um ‘outro’ real, atual, aceite chegar suficientemente próximo para dar a impressão de encaixar-se no lugar da amputação, sua perda será sofrida do mesmo modo que a primeira, como uma sentença de morte, não como uma vicissitude normal dos relacionamentos humanos descritos pelo termo ‘amor’ (maduro, obviamente). A célebre frase religiosa na hora do casamento – ‘até que a morte vos separe’ não é apenas retórica, apesar de não servir como testemunho a favor de Aulagnier. Na verdade, nas situações acima descritas ocorre que uma separação seja sentida como morte – mas não como morte do outro, e sim como morte do ‘eu’. ‘Partir é morrer um pouco’, diz o povo, e com razão. Mas ‘ser deixado para trás’ é muito pior, como diriam (se pudessem) os velhos esquimós na Groenlândia.

Temos, então, na verdade, três tipos de relacionamento, como foi dito no início: 1 – O apaixonamento patológico, em que uma pessoa busca numa outra a reconstrução de uma díade onde fundir-se, a fim de novamente buscar a integração. 2 – O apaixonamento que eu chamaria ‘momentâneo’, que ocorre entre pessoas mais amadurecidas, com um eu integrado e estabelecido onde o estado de maravilhamento inicial, em vez de levar à paixão patológica, leva ao amor. 3 – E o estado chamado propriamente ‘amor’, onde duas pessoas se apóiam mutuamente não porque se necessitam para ‘tornarem-se pessoas’, como dizia Carl Rogers, mas por algo que Rubem Alves me permitiu entender alguns dias atrás.

A partir de um belo comentário dele sobre as ‘Mil e Uma Noites’, ocorreu-me a idéia de que no amor dito ‘maduro’ acontece o seguinte: Todos nós começamos a nossa vida com a sensação, dada tanto pela nossa própria onipotência inicial, totalmente natural, quanto pelo modo como somos tratados por quem nos cuida, quando tudo corre bem, de que somos únicos, exclusivos, totalmente especiais. A nossa onipotência infantil nos diz isso tanto por ela mesma quanto pelo fato de que nossa pequena psique simplesmente não tem como registrar os ‘outros’ como seres semelhantes a nós. Aos poucos, ao longo de bastante tempo, começamos a aceitar o fato de que, para poder brincar direito no parque de diversões da vida, seremos obrigados a abrir mão de certa parte dessa exclusividade e aceitar a existência dos tais ‘outros’ (que Sartre chamou de ‘inferno’, e agora sabemos do que estava ele falando) e aceitá-los até certo ponto como iguais. Diluímo-nos, assim, no seio da ‘humanidade’, esse conjunto de eus em meio aos quais vivemos. No entanto, se não estivermos muito doentes, como diria Winnicott, conservamos a memória e o valor de nossa exclusividade, temporariamente posta em quarentena. O relacionamento amoroso verdadeiro, assim concluí, visa justamente nos colocar em contato, mais adiante na vida, com alguém que, por ser ele próprio muito especial segundo o nosso ponto de vista, nos trata do mesmo modo, ou seja, nos vê como alguém muito especial. A assim chamada ‘fidelidade’, portanto, nada mais seria que a aceitação, por cada membro do casal, dessa exclusividade e especificidade do outro, conferindo cada pessoa à outra a agradabilíssima sensação de recuperar, ao menos em parte, o sentimento inicial de ‘eu sou o máximo’ (sim, é a isso que chamam de ‘narcisismo’, aqui em sua vertente positiva, saudável). Ao infringir esse compromisso com a fidelidade, a pessoa ‘adúltera’ provoca, na outra, a mesma sensação que teria quem compra um bom vinho rotulado de ‘muito especial’ por uma vasta soma e, quando o bebe em casa descobre que o vinho está ‘adulterado’: o sabor do bom vinho não está lá, e sim o de um vinho vulgar, de baixíssima qualidade, ruim. O ‘gato’ entrou no lugar onde deveria estar uma ‘lebre’.

Assim, conforme o pensamento de Winnicott, talvez a monogamia terá sido uma das maiores invenções da espécie humana, tão importante para a nossa evolução individual quanto a invenção da roda e dos meios de controlar o fogo foram para a nossa capacidade de lidar com o mundo externo. Sociedades onde a monogamia é predominante e razoavelmente respeitada (de modo espontâneo, não como produto de um falso self coletivo, como nas histórias de Machado de Assis) tenderiam a ter sociedades mais estáveis, mais produtivas, mais criativas – exatamente porque o bem estar que a estabilidade emocional primitiva propicia permitiria uma liberdade maior à criatividade primária, a qual nos proporciona, diz Winnicott, o valor mais alto na vida dita humana. Se o exercício da criatividade primária depende, para manter-se possível, de um bom início de vida, um casal estável do tipo acima descrito cria filhos que terão muito mais chances de se sentirem cidadãos de primeira classe, independente da classe social a que pertençam. Os filhos nascidos e criados em meio à confusão das figuras adultas somente na idade, que foram criadas desse mesmo modo, sentir-se-ão, provavelmente, frustrados em sua existência adulta, impedidos, por forças internas, de brincar de vez em quando de ‘ser criança’.

Chego, aqui, a outra conclusão: ‘adulto’ é um termo equivocado, tendo mais a ver com ‘adulterado’ que com o outro termo, por enquanto provisório, ‘maduro’, para designar as pessoas que realmente alcançaram o grau de amadurecimento necessário para produzir crianças com boas chances de chegar a um futuro agradável e produtivo. É claro que muitas gerações serão necessárias para produzir uma mudança significativa no grau de maturidade médio dos habitantes deste planeta, mas a meu ver é preciso começar a vender essa idéia desde já. O bicho homem não é como se pensava antigamente, é muito melhor – em sua essência. Mas como disse Sartre (outra vez ele, e essa eu não sei como ele acertou…), ‘a existência precede a essência’, o que Winnicott formula assim: As tendências naturais só se atualizam caso o ambiente o permita. Portanto, mãos à obra: vamos divulgar ao máximo as teorias de Winnicott, porque delas depende a aceleração cada vez mais premente do desenvolvimento HUMANO da humanidade.

Concluindo: Procurei discutir aqui a grande diferença entre o relacionamento simétrico do amor, onde cada um investe no outro de modo semelhante, e o relacionamento assimétrico da paixão (patológica), onde um dos dois investe no outro uma libido que deriva dos primórdios de sua vida, uma libido de bebê, para o qual o prazer supremo é o de continuar vivo, todo o mais sendo os ‘benefícios secundários’ desse alimento primordial fornecido pelo outro. No amor, onde as duas pessoas estão em condições de desenvolvimento emocional razoavelmente semelhantes, onde ambas puderam ir além da díade primeva e tornar-se pessoas razoavelmente inteiras que existem por direito próprio, com o eixo da identidade colocado no interior de si mesmas, e não no outro (ou melhor, no lugar onde um e outro se tocam), tanto o relacionamento ocorre de modo diferente da paixão, como é diferente o processo de desligamento e consequente separação. Num estudo que fiz do artigo ‘Luto e Melancolia’ de Freud a partir da ótica winnicottiana, esse foi o ponto culminante: como no início ainda não há um ‘eu’ plenamente constituído, o ‘outro’, que funciona até certo momento como um útero onde o ‘eu’ está sendo gestado, não deve abandonar o posto, sob pena de deixar esse ‘eu’ pela metade, a qual, se não sucumbir física ou psicologicamente ao desastre, vagará pela vida afora buscando, como foi várias vezes apontado acima, a ‘outra metade’, dentro da qual, e não ‘com a qual’, completará o processo de integração e amadurecimento.

Winnicott, autor da grande revolução psicanalítica que colocou no centro das atenções clínicas o fenômeno da regressão a um estado anterior de vinculação (terrível heresia nos tempos em que ele vivia, e quiçá até hoje, em certos círculos), foi o mesmo que disse que ‘O supremo dever do psicanalista é… continuar vivo’. Interessante, não?

Anexos

Fanatismo
Florbela Espanca
Minh’alma de sonhar-te anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
‘Tudo no mundo é frágil, tudo passa…’
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim,
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
‘Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…’

Atrás da Porta
Chico Buarque e Francis Hime

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus,
juro que não acreditei.
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei.
E me arrastei, e te arranhei,
E me agarrei nos teus cabelos,
No teu peito, teu pijama,
Nos teus pés ao pé da cama.
Sem carinho, sem coberta,
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho.
Dei pra maldizer o nosso lar,
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço,
Te adorando pelo avesso,
Prá mostrar que inda sou tua,
Até provar que inda sou tua.

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