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A Perda Perdida – Segunda Versão

"True, most things can be corrected, but few, if any, cracks or ruptures can be put together so well that there will be no impression or scar. This scar on the flesh of man influences the whole structure of human life."

'É verdade, a maioria das coisas podem ser corrigidas, mas poucos, se é que há alguns, rompimentos ou fraturas é possível emendar tão bem que não reste deles nenhum vestígio ou cicatriz. Essa cicatriz, na carne de um ser humano, influencia toda a sua vida.'
Adin Steinsaltz, The Long Shorter Way – Discourses on Hasidic Thought (1988)* Citado por Mike Eigen (Comunicação Pessoal)
No capítulo VII de O Brincar e a Realidade, no artigo 'A LOCALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA CULTURAL' (1967), Winnicott diz o seguinte:
"O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê de utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo reparada, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos o bebê fica traumatizado. Em x + y + z minutos o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica em que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de modo que as defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da ‘ansiedade impensável', ou contra o retorno do estado confusional agudo próprio à desintegração da nascente estrutura do ego."
*- O livro nada tem a ver com psicanálise.

Em meus tantos anos de trabalho clínico, cheguei à conclusão de que muitos, muitíssimos ‘bebês', isto é, pacientes, experimentaram no mínimo uma pequena amostra do que seja esse momento que Winnicott chama de ‘Z'. O trauma. O trauma ‘implica em que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida'. Eu chamo a isto de ‘perda da identidade' que, naturalmente, nessa época da vida é apenas um protótipo muito primitivo do que será a identidade mais tarde. No entanto, é desde esse protótipo que será erguida, mais adiante, a identidade propriamente dita. No lugar da ‘continuidade', quando esta é rompida, o que surge é uma série de defesas organizadas contra a volta da ‘ansiedade impensável', que é como Winnicott descreve o que Lacan chamou de ‘um encontro com o Real'. A ‘ansiedade impensável' provoca, diz Winnicott em seguida, um ‘estado confusional agudo – próprio à desintegração da nascente estrutura do ego'. O que ele chamará, em outro lugar, de ‘deprivação' – a perda abrupta da ‘figura de apego', que até então era ‘suficientemente boa', portanto merecedora da ‘crença em…' por parte do bebê ou da criança, aparentemente está totalmente ligada ao que, neste artigo citado agora, ele chama de ‘estado confusional'.

A ‘desintegração da nascente estrutura do ego', de que fala Winnicott, é o nosso problema. Um estímulo violento demais desorganiza de modo catastrófico o mundo interno em crescimento da criança pequena, algo parecido com o que os astrônomos estão prevendo para dentro de uns dois ou três anos: Uma emissão tão intensa de raios solares, que, literalmente, ‘fritará' todas as conexões eletrônicas em uso na Terra, levando o caos às comunicações, e consequentemente à economia e à sociedade. Continua Winnicott:

"Temos de supor que a imensa maioria dos bebês nunca experimenta a quantidade x + y + z de deprivação. Isto significa que a maioria das crianças não traz consigo, vida afora, o conhecimento por experiência de ter sido louco. A loucura, aqui, significa simplesmente a ruptura do que poderia configurar, na época, a continuidade da existência pessoal. Após ‘recuperar-se' da deprivação x + y + z, o bebê deve começar de novo, permanentemente deprivado da raiz que poderia proporcionar uma continuidade com o início pessoal. Isso implica na existência de um sistema de memória e numa organização de lembranças."

Nesta parte de seu trabalho, Winnicott deixa claro que o momento de ‘explosão' do trauma é vivido como um ‘enlouquecimento'. Podemos entender ‘enlouquecimento' como uma total perda de referências, uma ruptura de todos os laços associativos e uma perda catastrófica do sentimento de segurança que a criança até então experimentava. Winnicott fala, nesta citação, de um ‘bebê', mas podemos estender a dimensão desse fenômeno até bem depois da fase de ‘primeira infância', o tempo anterior à aquisição da capacidade de andar e falar. Na verdade, sei de dois homens cuja mãe faleceu quando tinham 7 e 9 anos, que sofreram na época um trauma bem menos intenso que sua irmã menor, de 5, mas que não escaparam totalmente às consequências da catástrofe: embora não tenham perdido a capacidade de trabalhar, e tornaram-se inclusive muito bons profissionais, um deles tem um péssimo relacionamento com os filhos, e o outro, apesar de casado, simplesmente não teve filho algum, sendo um hipomaníaco muito característico.

A irmã menor, minha paciente por muitos anos, embora intelectualmente brilhante, jamais conseguiu exercer uma atividade profissional por um tempo suficiente para estabilizar-se economicamente – e foi visto, durante a sua terapia, o quanto era necessário para ela manter-se incapaz de se manter, pois assim ficaria justificada a sua necessidade de ser sempre amparada por alguém. De fato ela é amparada por alguém.

Se me for permitida a heresia de dizer que por ‘angústia ou ansiedade impensável' Winnicott estava se referindo ao biologicamente instituído medo da morte, teremos um elemento a mais para entender melhor o que significa ‘trauma', ‘colapso' e ‘instinto de vida', e também por que ocorre o ‘enlouquecimento'.

A perda do vínculo protetor (agora podemos chamá-lo deste modo), que Winnicott tão poeticamente denomina como ‘ser deprivado da raiz que poderia proporcionar uma continuidade com o início pessoal', significa simplesmente que o encontro com o Real, tão bem descrito por Lacan desfaz, para usar uma expressão cara a Winnicott, a ‘ilusão de imortalidade' que a preocupação materna primária tão devotadamente havia tratado de construir até então. Claro, dirão os cínicos, a mãe estava mentindo para o bebê, prometendo-lhe imunidade diante das cruezas do mundo. Sim, de fato é disto que se trata. O bebê, convencido de que não tem nada a temer, pois seus protetores, qual deuses onipotentes, jamais deixarão que algo lhe aconteça, relega a morte para o reino da fantasia, ou do pesadelo, e encara a vida como um grande playground onde a ele caberá escolher o brinquedo e o momento de andar nele. Para essa criança, e depois para esse adulto, o mundo é um lugar no mínimo benigno, se não aprazível, no qual é preciso tomar certos cuidados, claro, mas é perfeitamente possível viver sem grandes sobressaltos.

(O fato de que a idade adulta só chega para aqueles que aceitaram a desilusão iniciada ainda na primeira infância, quando termina a vigência da ‘preocupação materna primária', não significa o ‘fim das ilusões'. Esta ilusão aqui referida, da ‘imortalidade', realmente é posta de lado pelo adulto que se preza – mas no fundo, lá no fundo do coração, ela continua a funcionar apesar de, agora, já ser vista pelo seu dono como ‘apenas uma ilusão'. Se você quer conhecer uma pessoa cuja ilusão de imortalidade realmente morreu, ou nunca chegou a nascer, vá visitar alguém acamado por depressão grave, ou por aquilo que chamam de ‘melancolia'. Ali você verá como fica uma pessoa totalmente destituída da ‘ilusão de imortalidade'.)

Esse estado de bem estar, que chamamos de ‘em paz com a vida', que deriva diretamente da adaptação quase perfeita da mãe à necessidade egóica do bebê, no início de tudo, permite a sensação de ‘continuar sendo', de ‘continuar existindo', de ‘continuar vivo'. Por trás da dimensão psicológica (continuidade existencial, a matéria prima para a personalização), está a dimensão biológica: ‘Estou livre da ameaça da morte, estou contente, estou seguro.' Segurança é um fenômeno que, há algum tempo eu me dei conta, também é uma invenção humana, assim como o controle do fogo e a roda. Não há segurança na natureza. Tudo está permanentemente em vias de ser destruído. O homem inventou a segurança, e com isso mudou o destino de sua espécie. A partir daquele momento, abriu-se um horizonte imenso de possibilidades que não existem para nenhum animal. A sensação de segurança, que permite a uma criança dormir tranquila, tem como resultado uma disposição mental muito especial quando ela acorda desse sono que chamamos de ‘reparador'. Ela está pronta para brincar. Não precisa se preocupar com o que irá comer, se haverá comida, e muito menos com a possibilidade de ela própria virar comida para uma outra forma de vida. Brincar, então, se torna a sua grande tarefa, que ela realiza com grande prazer. Sim, os filhotes de animais também brincam. Mas brincam de lutar, brincam de caçar, brincam de se esconder, porque para eles a sobrevivência é uma ‘mega sena', não um ‘dado de realidade'. É possível dizer que os animais não exatamente ‘brincam'. Seria mais exato dizer que eles treinam. Não é a mesma coisa, a meu ver.

E assim, se esse paraíso inicial for destruído, a criança (ou o adulto, se o trauma for suficientemente intenso) volta ao estado de natureza, onde, literalmente, para morrer basta estar vivo, como também dizem aqueles cínicos antes mencionados.

Esse é o trauma, na minha modesta opinião. A paranóia é uma doença que descreve muito bem esse estado ‘de natureza' (por oposição ao ‘estado da cultura', onde existe segurança e um mínimo de esperança em sobreviver). A paranóia apenas fixa, perpetua, um estado d'alma que caracteriza o bebê nos seus primeiros 2 ou 3 meses. O bebê leva tempo para entender que a proteção recebida em momentos de pânico é permanente, não só eventual. Winnicott fala de ‘adaptação da mãe às necessidades egóicas do bebê'. E fala também da tarefa mais importante da mãe, a de manter o bebê, ‘um ser permanentemente à beira da angústia impensável', a salvo desse terror. Ao resultado dessas duas atividades ele chama de ‘confiabilidade da mãe'. E ao resultado da confiabilidade ele chama de ‘capacidade de confiar em…'.

Juntando as duas coisas, explica-se o que eu disse acima. O bebê está – até segunda ordem – numa situação de desamparo essencial – no sentido de inevitável e incontornável. O desamparo do bebê é fabricado pela biologia, não pela psicologia. Ele nasce inerme, absolutamente impotente e destituído de qualquer possibilidade de defender-se do que quer que seja. A biologia o compensou, porém, dotando-o de uma máquina ultra-eficaz de produzir pânico, e de um aparelho de som hiper-poderoso que soa um alarme impossível de ser desprezado por quem estiver minimamente perto.

Temos então os dois lados da moeda: de um lado a mãe, a quem a natureza (isto é, a biologia) dotou de um mecanismo especial que entra em ação (graças a certos hormônios) em épocas em que isso é necessário (desde um tempo antes do parto até um certo tempo depois do mesmo, e posteriormente quando o bebê ou a criança adoece), que permite a ela esquecer-se por um tempo de si mesma, a fim de concentrar todo o seu aparelho psíquico no ser que acabou de nascer, ou que está doente, e de um aparelho de percepção extra-sensorial que lhe dá temporariamente poderes mediúnicos para captar sinais de alerta ou de necessidade que nem sequer foram emitidos pelo bebê. (Desse aspecto ‘mediúnico' Winnicott não fala, porque não era bobo. Eu sou.)

E do outro lado, temos uma máquina poderosíssima de pedir socorro em altos brados a qualquer estímulo inesperado, pois do ponto de vista biológico a vida do bebê é um grão de poeira dançando ao vento. (Isto vale para qualquer filhote – até do leão e do elefante.)

Assim, somando uma coisa com a outra, temos o par perfeito: o máximo de necessidade encontrando o máximo de doação. O máximo de penúria associado ao máximo de recursos. O mínimo de possibilidades compensado por uma verdadeira onipotência para todos os efeitos práticos. A meu ver, a humanidade não teria se tornado o que ela é hoje se essa parceria não tivesse surgido em algum momento. A história não registra, é óbvio, o ano em que as mães começaram a cuidar de seus bebês desse modo tão atento e tão prestativo. Mas uma pesquisa recente, que durou 35 anos para se completar, atesta que em algum momento essa revolução aconteceu, e mostra claramente que seus resultados foram extremamente importantes. Cerca de 470 mães com bebês de 8 meses foram entrevistadas e testadas há 35 anos por uma equipe da Universidade Duke, nos EUA. Agora, recentemente, os cidadãos em que se transformaram aqueles bebês foram chamados e, por sua vez, entrevistados e testados também. Resultados da pesquisa: Mães dedicadas e amorosas criaram filhos tranquilos e de bem com a vida. E mães ansiosas ou distantes… bem, vocês podem imaginar as consequências.

Traumas são produzidos por falhas graves nessa adaptação há pouco mencionada, porque a tremenda sofisticação do cérebro humano tem seu preço: quanto mais sofisticado, mais delicado é o aparelho, e mais sujeito a avarias. Nem sempre, porém, a falha é da mãe. Muitas vezes é algo que acontece a ela. Mas o resultado é o mesmo.

Tenho testado essa hipótese em meus pacientes. O que passei a chamar de ‘a perda perdida' é algo que aconteceu, mas perdeu-se na memória dita ‘explícita', que pode ser evocada por ser registrada em palavras, porque ficou registrado pela memória ‘implícita', sem legendas e sem representação. Os efeitos da ‘perda perdida' são:

1 – uma des-confiança radical, que age como 'buraco negro', aspirando e destruindo o que passar por perto, tanto emocional quanto cognitivamente; (Isto não provoca ignorância. Muitos desses pacientes são intelectualmente notáveis, alguns até brilhantes. Mas significa uma ausência quase total de confiança no valor do conhecimento acumulado, e/ou nos relacionamentos estabelecidos);

2 – um descontrole das reações emocionais (medo e raiva), recoberto depois por uma organização controladora superposta (ou ‘superimposta', tanto faz);

3 – um desamparo básico (terror) devido à perda da confiança no amparo anterior;

4 – uma percepção de si como órfão de pais vivos, gerando perplexidade e uma sensação de contradição interna (e quando a figura de apego morre, algo muda – para pior). (Minha contribuição a Winnicott: a criança não perde apenas o objeto, perde a si mesma também);
 
5 – um grande sentimento de des-valor, pela quebra da ilusão de onipotência infantil;

6 – uma culpa e uma raiva 'cósmicas', que preenchem todo o espaço e não têm uma fonte identificável, dando à pessoa (e aos circundantes) a impressão de serem um irreparável 'defeito de nascença';

7 – e, conforme Winnicott, uma eterna espera pela grande catástrofe que ocorrerá no futuro, catástrofe, como diz ele, que já aconteceu, mas que é sempre esperada no futuro por não ter sido possível integrá-la quando de fato ocorreu. É o ‘passado que não passou', tão caro aos psicanalistas. (O fenômeno 2012 pode ser explicado dessa maneira.)

8 – há ainda um sintoma que não encontrei em todos os pacientes, mas que, quando presente, tem efeitos às vezes catastróficos – o ciúme patológico.

Tudo isto produz um quadro clínico muito coerente – e muitíssimo comum. A ‘perda perdida' – quadro clínico que deriva, obviamente, da ‘síndrome da mãe morta', de Green, existe em proporções epidêmicas, a meu ver. Não era percebida como fenômeno em si porque privilegiou-se na psicanálise o luto (quando o objeto morre) ou outras causas para os vários sintomas (por exemplo, o chamado comportamento pré-edípico, quando ultrapassa a idade em que pode ser tolerado como ‘natural', e talvez o comportamento borderline – mas disto eu não tenho certeza). O que desejo enfatizar é que depois que passei, há uns dez anos atrás, a procurá-la na infância dos pacientes, os tratamentos que eu vinha fazendo tiveram um grande aumento de sua eficácia. De uns três anos para cá eu simplesmente passei a perguntar aos pacientes se algo importante ocorreu em sua infância, e eu lhes peço para perguntarem a parentes se houve algo assim, quando eles próprios não se lembram.

Não estou em condições de demonstrar que essa seja, como diria Saddam Hussein, a ‘mãe de todas as patologias'. Mas para o meu uso pessoal eu a considero assim. É óbvio que muitas outras coisas acontecem na infância de um indivíduo humano. Mas a ‘perda perdida' me parece de grande importância como fator de perturbação da vida humana – principalmente daqueles pacientes que mostram terem tido um desenvolvimento emocional primitivo razoavelmente bem sucedido: em termos objetivos eles até ‘funcionam', mas seu mundo interno é uma selva. Usam um tipo de falso self muito especial: uma armadura que não deve ser desmontada de modo algum, pois funciona como um ‘exo-esqueleto', como o dos insetos – pois o esqueleto emocional interno, devido ao trauma, esfacelou-se. A  estratégia clínica de Winnicott, que abole as ‘marretadas' da psicanálise clássica, tem sua razão de ser: essa não é uma defesa para ‘levar vantagem', e sim para permitir a sobrevivência. Quanto mais batemos nela, mais forte ela fica. Há, então, um diagnóstico diferencial: se a pessoa fala de modo compreensível, comporta-se de modo razoável em situações normais, parece inteligente, não é de todo ignorante, mas sua vida emocional é um inferno, é a ‘perda perdida' que ali está. Muitas outras causas poderiam explicar tais dificuldades, mas eu sugiro esta – a ‘perda perdida'. As pessoas atingidas por privação (ou trauma cumulativo) teriam outras características, entre elas um prejuízo maior para as funções cognitivas. Os muitos aspectos que ficam sem menção aqui receberão a devida atenção quando eu conseguir escrever uma versão mais sofisticada desta proposição inicial.

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