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A importância da Psicanálise na Educação – Entrevista a Liana Velazquez Bogomoletz

Davy, por que a psicanálise para quem lida com educação? Não é um tratamento voltado para as doenças, pouco tendo a ver com o que se passa entre professores e alunos?

Eu poderia dizer que não é bem assim. Posso fazer uma analogia com a medicina. Sabemos que ‘medicina' significa uma série de técnicas capazes de lutar contra um grande número de doenças. Mas em que se baseia a medicina? Principalmente em dois conjuntos de conhecimentos, um chamado anatomia, e o outro, fisiologia. Por um lado, a anatomia é fundamental não só para a cura de doenças, mas também para a educação física, a reabilitação, o esporte, a fisioterapia, etc. Não sei que usos tem a fisiologia fora da medicina, mas creio que a nutrição tem nela uma base fundamental para poder funcionar. Assim, nem só de doenças vive o conhecimento sobre o corpo humano. 

A psicanálise é constituída de duas partes: As teorias sobre o funcionamento humano em termos psicológicos, e as técnicas de tratamento. Da mesma forma que a anatomia e a fisiologia, os conhecimentos fundamentais, dão uma base sólida a todas aquelas especialidades acima mencionadas, o conhecimento psicanalítico também fornece fundamentos para uma série de atividades, tais como a educação, a psicologia (individual e social), agora a psicopedagogia, etc.

Por que, então, tanta dificuldade para a aceitação da psicanálise em situações não patológicas?

O problema é que numa sociedade fechada como era a nossa até poucas décadas atrás, o conhecimento do que se passa nos bastidores da consciência era tido como perigoso, porque quanto mais fechada a sociedade, maior o teor de preconceitos usados contra o outro e de disfarces para melhorar a própria imagem, e a psicanálise questiona tudo isso. Na Europa e na América do Norte os conhecimentos derivados da psicanálise vêm sendo usada na educação, por exemplo, já há um bom tempo, e ela não é tão rechaçada quanto aqui. (Entre a época em que isto foi escrito e o dia de hoje as coisas mudaram um pouco, mas não tanto quanto seria desejável.)

E por que Winnicott, e não outro teórico da psicanálise?

A resposta aqui é uma continuação da idéia anterior. É que Winnicott, sendo a terceira geração na história da teoria psicanalítica (as primeiras, óbvio, eram principalmente Freud e Melanie Klein), já encontrou muitos caminhos abertos, e teve como ir mais adiante. Até então a psicanálise lidava basicamente com doenças e técnicas de tratamento. Embora Freud dissesse, por exemplo, que o Complexo de Édipo era universal e funcionava como base para a personalidade, independente de doenças ou não, sua preocupação era principalmente com as patologias causadas por esse complexo. E Melanie Klein, embora usasse o brinquedo como técnica de tratamento, não parou para discutir o brincar em si mesmo, como manifestação normal da criança.

Winnicott, além do mais, foi pediatra por 40 anos, além de psicanalista, e teve um contato muito prolongado com um número enorme de crianças que só estavam doentes fisicamente, e podiam ser consideradas psicologicamente saudáveis. Esse contato com as crianças que não tinham comprometimentos psicológicos a ponto de estarem doentes o convenceu, creio eu, de que a psicanálise não podia restringir-se à compreensão da doença psíquica, precisava ir além e tentar entender o funcionamento da mente humana sem a interferência da doença.

Atualmente há tentativas de aplicar também as teorias de Lacan, por exemplo, à situação da criança e da aprendizagem, mas não sou especialista em teoria lacaniana, de modo que não posso falar muito sobre isso.

O que você vê como o ponto mais importante da abordagem de Winnicott para a questão da educação e da aprendizagem?

Esse é um tema interessante. Eu poderia dizer, para ficar num único aspecto, que Winnicott percebeu uma coisa que outros psicanalistas não viram, e que é a espontaneidade e tudo aquilo que gira em torno dela – ou de sua ausência. Que diferença há, por exemplo, entre um aluno que aprende bem porque é submisso e outro que aprende bem porque é espontâneo? Eu diria que a diferença está em que o aluno espontâneo talvez não tire notas tão boas quanto o submisso, mas terá muito mais curiosidade, terá muito mais idéias próprias, fará muito mais ligações entre as várias coisas aprendidas, e assim por diante. Conseqüência: ele usará bem melhor os conhecimentos adquiridos quando estiver fora da escola.

Na minha opinião, essa diferença não era muito apreciada, até pouco tempo atrás. E então as escolas começaram a se preocupar com a espontaneidade e a não-submissão, mas acho que houve muita confusão nessa área, e muita gente meteu os pés pelas mãos tentando entortar para o lado de lá o que antes estava torto para o lado de cá. Winnicott discute tudo isso, mas a partir das próprias bases iniciais do desenvolvimento emocional da criança, e esse conhecimento a meu ver é fundamental para quem quer ter realmente uma boa noção de como funcionam crianças normais. (E também, obviamente, as que precisam de ajuda para chegar à normalidade ou ao menos perto dela.) E falo aqui de crianças porque elas são o "público alvo" disso que chamamos educação, não porque o que ele disse só é importante em termos de crianças.

Última pergunta: E essa questão do brincar, que importância tem para o processo da aprendizagem?
 

Como eu disse antes, Winnicott deu grande importância ao fenômeno da espontaneidade. É como se até então a psicanálise considerasse que o indivíduo age a partir do esquema estímulo – resposta, (mesmo quando o ‘estímulo' vem de dentro, do mundo da fantasia), e ele foi o primeiro a dar importância ao comportamento que na verdade não está respondendo a estímulo nenhum vindo de fora. (Adendo em 2001 – A psicanálise clássica partia, é melhor dizer, da ideia de que os estímulos vinham sempre de dentro – as famosas ‘fantasias'. Mas estas tinham, geralmente, uma natureza destrutiva, causadora de problemas. Winnicott se insurgiu contra isso, propondo uma teoria bem mais precisa, a meu ver, na qual o que há de bom na pessoa humana também vem de dentro, e isto muda tudo – a ideia tão difundida de que o homem nasce mau e cabe à sociedade ‘consertá-lo' é jogada fora.) Por isso ele fala da diferença entre agir e reagir, e o que sabemos é que muita gente – criança ou não – quase nunca consegue agir, em geral fica esperando que ocorra um estímulo para então reagir a ele. (Muita gente não sabe o que fazer nos fins de semana, por exemplo, ou num feriado. Fica perdida.) Winnicott percebeu que o indivíduo humano é naturalmente criativo desde o início, e que o bebê inventa brincadeiras espontaneamente. Disso todo o mundo sempre soube, é claro, mas até então ninguém percebeu o quanto isso era importante. Ora, justamente por isso, por esse desconhecimento, essa espontaneidade poderia ser reprimida, impedida, por ser considerada ‘mau comportamento', e isso aconteceu – e continua acontecendo – muitas vezes, desde muito cedo na vida do bebê. Quando esse desastre não acontece, a espontaneidade e a criatividade da criança agem naturalmente no sentido de fazer coisas, e de aplicar a fantasia (o "produto" da criatividade) aos movimentos e à manipulação de objetos – aquilo que chamamos de ‘brincar'. Com isso, a criança age sobre o mundo à sua volta, descobrindo coisas e inventando outras pelo puro prazer de fazê-lo. (Nota acrescentada em 2011: Acabei chegando à ideia, cuja origem pertence a Winnicott, de que o ser humano primeiro inventa, depois começa a aprender. Quando essa relação é invertida o desastre é certo. Uma piada recente ilustra isso à perfeição: ‘Passamos os primeiros três anos da criança ensinando-a a andar e a falar. Depois passamos o resto da vida ensinando-a a ficar sentada e calada…') Mas quando a espontaneidade funciona, porque a deixam funcionar, a criança se sente agente, sujeito, ou outro nome que se dê a isso, e isto cria a capacidade de aprender como conquista, como exercício da própria vontade, o que é muito diferente de aprender como submissão à vontade do outro. E é justamente essa atividade – o brincar – que permite a esse processo de aprendizagem como conquista instalar-se e transformar-se na base de tudo aquilo que nós adultos chamamos de aquisição da cultura. O conhecimento, a cultura, portanto, do ponto de vista de Winnicott, podem ser algo de que a gente se apossa, ou algo que se apossa da gente. E qualquer pessoa (inclusive os professores) sente na própria pele a diferença entre essas duas possibilidades. É claro que não é possível a aprendizagem dentro da pura liberdade – não sei que fim levou, afinal, a famosa escola Summerhill, mas não parece ter feito tanto sucesso assim…* Uma coisa, porém, é a liberdade apenas relativa, não total, a única possível a um ser humano decente, e outra a ausência quase total de liberdade. É desse tipo de coisas que Winnicott fala, e a meu ver é até urgente que as pessoas voltadas para a educação e a aprendizagem prestem-lhe um pouco mais de atenção.

Obviamente, cada um dos pontos de que falei acima é apenas uma breve  simplificação, e não deve ser considerado "toda a verdade". Mas para falar das complicações precisaríamos de vários livros, de modo que é melhor ficarmos por aqui, e terei muito prazer em responder às perguntas que os leitores vierem a formular.

Muito obrigado.

*- Soube recentemente que Summerhill ainda existe, e tem perto de 100 alunos – mas as ideias do fundador, A.S.Neil, foram bastante modificadas com o tempo. A esse respeito, leia também meu artigo ‘Uma Certa Escola', sobre a Escola da Ponte, em Portugal.

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