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Uma Certa Escola

Em Abril de 2007 passamos, eu e minha mulher, Liana, educadora veterana, exatamente duas horas e meia na Escola da Ponte. Percorremos toda a escola – guiados por dois alunos. Os professores, lá, pelo jeito não se metem com visitantes (que vêm do mundo todo): têm mais o que fazer, apesar de não darem aulas. Rubem Alves disse que essa era a escola dos seus sonhos: Teria optado por estudar ali se pudesse voltar a ser criança. Eu e minha mulher chegamos à conclusão de que nós também.

As duas crianças que nos guiaram tinham pouco menos de oito anos, a menina, e de dez, o menino. Nos levaram, nos mostraram, nos explicaram, e falaram conosco como se nós também fôssemos gente grande. Eles, pelo que pudemos ver, sabem que são crianças, mas não se sentem assim. Se sentem gente como todo o mundo. Engraçado ver isso: crianças que se sentem gente, e não crianças. Falaram conosco com uma seriedade, uma tranqüilidade, um respeito e uma autoridade que nos deu uma idéia de como os professores, lá, falam com eles: como as duas crianças não eram parentes, concluímos que esse modo de falar é usado na escola, não em casa.

Outra coisa que vimos: um olhar. As crianças olhavam para nós com um olhar sereno. Sem arrogância, sem medo, sem ansiedade, sem falsa modéstia. Nos sentimos instantaneamente como se estivéssemos em casa. Nenhum adulto nos perguntou nada, nem disse nada (a não ser que não podíamos usar o flash para fotografar, nem tirar fotografias de alunos específicos. Eu, que fiquei como ‘fotógrafo da expedição', me senti totalmente livre para tirar as fotos que eu quisesse, pois não gosto de usar flash e não gosto de gente fazendo pose.)

Andamos, percorremos sala por sala, aliás salão por salão, porque lá as salas são grande, algumas grandes mesmo. Fomos olhando, minha mulher perguntando e guardando as respostas, e eu atrás, tirando fotos de tudo e de todos (mas de ninguém específico…).

Pensávamos que iríamos encontrar o coordenador. Que nada. Nem o vimos. Aliás, devemos tê-lo visto, pois havia dois professores sentados em cadeirinhas, um explicando algo a um aluno, outro examinando uma série de folhas – talvez trabalhos, talvez questionários, não o interrompemos para saber. Nem olharam para nós – estavam absorvidos no que faziam. E as ‘crianças', os alunos, idem: nunca me senti tão ignorado. Ninguém ficou curioso a nosso respeito – talvez porque já estão cansados de ver gente de fora perambulando por lá (foram mais de dez mil nesses últimos anos…) Mas talvez porque, como os dois ‘adultos' que nos guiaram, essas outras ‘crianças' sabem fazer uma coisa difícil de encontrar em outra escola, salvo em dias de prova: concentrar-se. Todos, todos, estavam absorvidos pelo que faziam. Todos. Nós, os visitantes, babávamos. Eles, os visitados, não estavam nem aí. Simplesmente faziam o que tinham que fazer: pesquisar, anotar, discutir coisas com colegas sentados ao lado, às vezes fofocar um pouco, que ninguém é de ferro (deu para flagrar duas meninas falando de algo que certamente não era a "matéria"…)

Andamos, andamos, olhamos, olhamos, e no decorrer da experiência fomos, eu e minha mulher, ficando cada vez mais calmos. Cada vez mais serenos, como as ‘crianças'.

E fomos embora, mas não antes de comprar camisetas da escola, dois livros sobre ela e um do Rubem Alves (que, depois que passou por lá, teve seu nome dado a um dos ‘salões de aula'. Ah, santa inveja.)

Bem, a escola funciona assim. Os alunos recebem em algum momento os seus programas de estudo. Lá pelas tantas terão que mostrar que conhecem aquilo suficientemente bem. Então passarão de nível. Há três níveis na escola: Iniciação, Consolidação e Polivalente. O primeiro corresponde aos nossos primeiros 3 ou 4 anos escolares. O segundo, aos 5 ou 6 anos seguintes. O terceiro, aos anos que chamamos de ‘ensino médio'. Dali eles saem para a universidade ou para a vida. Os índices de aprovação dos alunos dessa escola, onde quer que venham a prestar exames ao sair de lá, são altíssimos. Daí a sua fama pelo mundo: revolução no ensino qualquer um faz. Mas revolução que funcione, não é tão fácil.

Depois que fiquei sabendo da existência dessa escola eu me perguntei: por que ela funciona e Summerhill não funcionou? E acho que descobri a resposta: Porque A. S. Neill, o "dono" de Summerhill, teve uma idéia e a colocou em prática, e convidou crianças para fazer parte dela. A idéia partiu dele, não delas. Na Escola da Ponte, segundo soubemos, foi ao contrário: O diretor, o tal Pacheco, quase mais famoso agora que o Papa, não teve nenhuma idéia específica, a não ser a de mudar tudo. Pôs-se então a ouvir o que alunos e professores queriam. Isso há vinte e cinco, trinta anos atrás. E foi implementando o que ouvia no decorrer do tempo e na medida do possível. Resultado: quem criou a escola não foi ele, não foi ‘alguém', foi a comunidade de alunos, professores, pais, ele mesmo, quem estivesse por ali. Os palpites eram dados, discutidos, votados e, quando possível, passavam a funcionar. Então não há conflito, alunos, professores e direção não são adversários, como são em todas as outras escolas. Não são times diferentes jogando uns contra os outros. Fazem um único time, uma única equipe, um grupo coeso que tem um objetivo em comum: crescer e se dar bem depois da escola. Só pode ser esse o objetivo. Obviamente os alunos não estudam para se sair bem nos testes nacionais e nos vestibulares (que lá devem ter outro nome, mas isso não importa). Se fosse esse o objetivo, veríamos olhares aflitos, caras ansiosas, gente preocupada. E não vimos nada disso. O objetivo dessa escola é tornar o processo de aquisição de conhecimentos algo que parte da vontade dos alunos, não da pressão dos professores ou das exigências do sistema educacional. E que, com isso, adquire um poder imenso, uma força que nada mais conseguirá parar: a força da natureza, da Natureza Humana. Acho que Escola da Ponte provou por a + b + c que o ser humano é isso que se pode ver lá, e não outra coisa. Basta dar-lhe a chance de aparecer. Isso é difícil, exige um preparo intenso de quem quiser cuidar de gente assim. Exige uma consciência total da natureza do problema e da maneira de agir. Mas está provado, definitivamente, que nada disso é impossível!

Nada os pressiona, a esses alunos. Quando minha mulher perguntou para a menina (vai fazer oito anos): Como é que você muda de nível?, ela disse: Quando eu achar que estou pronta, marco com o professor, ele me faz umas perguntas e me diz se posso passar ou não. ‘E quando é que isso vai acontecer?' Ela respondeu: ‘Ué (não sei se eles usam ‘ué' por lá, mas não importa), não sei, quando eu achar que estou pronta.' E se você não conseguir, insistiu a minha mulher, ‘Aí eu estudo um pouco mais', ela disse, e riu, marota. Fim de papo.

Não há pressão, nem perseguição, nem aflição, nem submissão. Há interesse e gosto. O gosto por ficar sabendo. O gosto de entender melhor. E há a preocupação de quem está fazendo algo pelo fato de esse algo ser importante. Importante para quem está fazendo, não para quem disse que é preciso fazer. É como se, uma vez dada a partida, esse motor (o aluno) passasse a funcionar por vontade própria. Engraçado, não?

Bem, vimos na escola uma série de cartazes, devidamente fotografados. Um deles dizia: ‘Ensina-me, e esquecerei. Conta-me, e recordarei. Envolva-me, e aprenderei.' Isso é linguagem de adulto, obviamente. Mas o fato é que, pelos resultados, os alunos entendem isso muito bem, e os professores cumprem à risca.

Eu disse antes que os professores não dão aula. O que eles fazem, então? Ficam na sala onde os alunos trabalham esperando que alguém precise de uma explicação, um esclarecimento, ou uma orientação para seguir em frente. Os alunos levantam a mão e o/a professor/a vem, senta do lado e resolve o problema. Vimos isso acontecer mais de uma vez durante o nosso passeio. Gente grande sentada na cadeirinha e conversando com um aluno (ou um grupinho). Conversavam seriamente, como se estivessem discutindo algo importantíssimo para todos ali. Vi também uma cena muito interessante: uma professora sentada na frente de uma aluninha (não podia ter mais de sete anos), que lia algo para ela, e ela, a professora, totalmente embevecida ao ouvir o que a menina dizia. Embevecida é a palavra. Tenho a foto – e nenhuma das duas viu que eu estava fotografando. Pela gesticulação (a menina estava de costas para mim) deu para ver que ela também estava tendo um enorme prazer em contar sua história para a professora. E esta última exalava orgulho e satisfação. Confesso: fiquei comovido.

Passamos pela sala de artes. O menino nos disse: ‘Agora não façam barulho. Aqui eles estão criando.'

Minha mulher baba quando conta isso para o pessoal daqui. Você pode imaginar uma sala de artes numa de nossas escolas em que um visitante tem que tomar cuidado para não atrapalhar a concentração dos alunos? Pois é. Lá é assim.

Então foi isso. Vimos uma escola onde o ‘processo de aprendizagem' parte do aluno, não do professor. Vimos uma escola onde o sujeito é o aluno, não o professor. Todo o mundo pergunta: Como é que eles fazem isso? É como se perguntassem: ‘Como é que eles criam esses sujeitos da aprendizagem?'

Bem, não há resposta. O sujeito da aprendizagem não pode ser criado, porque se for criado não é mais sujeito. O sujeito da aprendizagem só pode nascer sozinho. É possível atrapalhá-lo. É possível reprimi-lo. É possível impedir que ele se desenvolva. É possível obrigá-lo a ser outra pessoa que não aquela que seria naturalmente. Mas não é possível criá-lo. Só é possível permitir que ele cresça, partindo da premissa de que esse ‘crescer' é um dom natural: está lá porque está lá, não porque alguém o colocou lá.

Mais ou menos como fazemos com as plantas: plantamos uma semente, e ela cresce e vira árvore, e a árvore cria galhos e folhas e dá flores e frutos. Nós podemos regar a terra e adubar de vez em quando. Mas não podemos fazer a planta crescer. Não podemos fazer esse processo acontecer. Nem precisamos – ele acontece sozinho. Claro, podemos descobrir as melhores condições externas para que um dado tipo de árvore dê o máximo de frutos possível. Mas não podemos forçar a árvore a produzir mais. Felizmente para as árvores, elas são imunes ao desejo humano. Se lhes damos as melhores condições, saem os melhores frutos e na quantidade máxima. Mas quem faz isso acontecer é a árvore, não nós. O mesmo se dá, diz a Escola da Ponte, com crianças.

Há um psicanalista que explica isso – e não é Freud. É um tal de Winnicott, que adorava crianças.

Adendo em Dezembro de 2008: Uma das idéias chave de Winnicott é que o ser humano vem ao mundo e começa a inventar. Ele nasce assim. Ele recria esse mundo que nós todos conhecemos. Só muito tempo depois (‘muito' na perspectiva do bebê, claro) ele começa a aprender. Quando isso acontece desse modo, teremos um adulto saudável, generoso, forte, mas capaz de compaixão e respeito pelo outro. Quando os que cuidam dele acham que deveria ser ao contrário, primeiro ele tem que aprender, e depois poderá inventar o quiser, ele perde a capacidade de inventar, porque se torna um escravo. E quem é o amo? Quem dele cuidou, e que também foi criado dessa mesma maneira.

Eu e Liana, ambos ex-professores (Liana muito mais que eu), e agora psicólogos clínicos, saímos babando da Escola da Ponte porque vimos lá confirmado tudo aquilo que tentamos, desesperadamente, fazer no consultório: libertar escravos. Transformar escravos em seres humanos livres – autônomos, como dizem os educadores mais esclarecidos. E como é difícil: os nossos escravos dão a impressão de que não gostam de ser libertados. Mas não é verdade: eles têm é medo, medo de tentar e não dar certo, medo de serem castigados por seus ‘amos' (que não precisam mais ‘mandar' – eles, os escravos, já sabem muito bem obedecer sozinhos…), em vez de amados como escravos bonzinhos que tentaram ser. E tirar deles esse medo é impossível: o que podemos fazer é – nada. Literalmente. Podemos apenas sentar e conversar com eles, explicando às vezes por que se tornaram escravos, e por que têm medo de deixar de sê-lo. Com o tempo (muito), e paciência (mais ainda), eles vão aos poucos ousando aqui e ali a agir como se não fossem escravos – e se tudo der certo (o que nem sempre acontece) acabam gostando muito disso.

É isso que fazemos como psicólogos clínicos. Deixamos que eles cresçam. Porque esses escravos, na verdade, são crianças pequenas a quem não foi permitido crescer: por ação, omissão ou acidente eles foram obrigados a crescer, mas crescer em conhecimentos, não em confiança e auto-estima. Cresceram no sentido cognitivo, mas não emocional. Porque estas duas coisas – confiança e auto-estima – não se pode dar a ninguém: é preciso criar as condições para que elas surjam, pelo fato de a pessoa que está sendo cuidada confia em quem cuida dela, e com isso gosta de si própria porque se sente bem. É isso que fazemos em nosso consultório. E é isso que o pessoal da Escola da Ponte aprendeu, por intuição, por descobrirem teóricos que diziam coisas parecidas (Piaget, Wigotsky, Montessori, Puig, Steiner, Freinet, Dewey, Carl Rogers, Maturana e Paulo Freire, com certeza), e por tratarem uns aos outros desse modo e perceberem como é gostoso. Eles tratam os alunos desse modo, e eu e Liana vimos o resultado. E nunca mais nos esqueceremos disso.


[1] Em latim, auctoritas significa ‘aquele que faz crescer'!!!

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