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Sobre “O Discurso do Rei”

No filme "O Discurso do Rei" a psicanálise está batendo à porta. Ainda não foi convidada, mas já se insinua, como era tão comum naqueles "tempos heróicos", de expansão e tentativa de consolidação desta nova forma de ver o sujeito.

Tudo indica que neste próximo Oscar a tecnologia e os filmes 3D serão deixados um pouco de lado. E vejo esta possibilidade com muito entusiasmo, pois nos remete para aquilo que o cinema tem de melhor: a interpretação e o roteiro. O Discurso do Rei (The King's Speech, Inglaterra, 2010, com direção de Tom Hooper e atuações de Colin Firth, Geoffrey Rush e Helena B. Carter) é um exemplo, assim como "Cisne Negro" e "Bravura Indômita". Desnecessário falar das atuações de Firth e Rush. São sempre magnificos, principalmente Firth que introjeta tão bem a "maneira inglesa".

O filme retrata um episódio verídico na vida de uma família real, mas a história poderia ser de qualquer um e, atentarmos bem se repete a todos os dias, bem próxima de nós mesmos. Impossível não se deixar angustiar com a dor de Bertie. Firth, em sua interpretação, nos mostra muito bem toda a intensidade da dor revelada na gagueira de Bertie. Não estamos falando apenas de um problema "mecânico", como o próprio Bertie deseja solucionar. Muito interessante que a psicanálise não é convidada a entrar no filme, mas ela está, a todo instante, batendo à porta. Estamos em 1939, ano em que o filme atinge seu clímax com a declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha (1 de setembro) e ano da morte de Freud (9 de setembro). Me apeguei nesta quase coincidência de datas para justamente enfatizar que, se a psicanálise não é convidada a entrar ela está batendo à porta. Como?

Bertie chega ao "terapeuta da fala" e pede por uma solução mecânica para seu problema. Aqui mais uma interessante coincidência pois ele busca um terapeuta da fala sem imaginar que essa "fala" que será melhorada é de outra ordem que não a mecânica. Mas ele insiste: não quer falar de seus problemas "pessoais". O terapeuta não é um psicanalista e não faz referências diretas à psicanálise, mas leva, gradativamente, Bertie a perceber que ele precisa, de alguma forma, entender que sua gagueira é quase que uma "impossibilidade de falar", no sentido de se expressar, ter a liberdade para se expor. É nessa trilha, calma, que vai se desenhando uma história pessoal que revelava Bertie como fruto de um grande medo.

Ele parecia seguir a uma ordem: "fique calado". Seu pai, o rei, era duro, dizia ao pequeno Bertie que ele respeitara o seu pai e que ele também faria o mesmo. O tom alto da voz do pai o fazia tremer, e era suficiente para lhe ditar um lugar: um lugar muito pequeno, um pequeno espaço onde teria que se virar para sobreviver. O mesmo acontecia com seu irmão mais velho (e natural herdeiro do trono). Bertie relata o quanto a babá do irmão o tratava mal, limitando ainda mais seu espaço de liberdade e expressão. Bertie, então, foi fruto de uma formação precária, onde a autonomia lhe era retirada a todo instante, onde o calar-se era a melhor estratégia para sobreviver. Ainda na infância, não esqueçamos, sofreu uma série de "enquadramentos", como no caso da "correção" das pernas tortas e no caso de reaprender a escrever com a mão direita por ser canhoto. Além disso, tinhas crises estomacais crônicas.

Mas, o fato é que irmão, em pouco tempo, recusa a corôa e prefere seu casamento. Caberá a Bertie assumir o trono. Mas, como? Como aquela criança insegura e medrosa poderá liderar uma nação? Nós não precisamos ter que liderar uma nação para sentirmos as mesmas angustias de Bertie, basta que tenhamos que lidar com a realidade e nossas responsabilidades. É nesse momento que, muitos de nós, revelamos nosss fraquezas e nossa pequenez. Mas nada disto é o que nos define como sujeitos. Podemos inverter o jogo. Bertie estava imerso em um masoquismo moral, a ponto de sequer se atrever a falar daqueles que lhe tinham causado algum prejuízo. Mas, na realidade, não estava plenamente convencido de que sua natureza estava definitivamente conformada a este fato.

Ele não queria fugir às suas responsabilidades. Talves mesmo ele se contentasse em ser um homem comum, mas não o era. Não se trata do fato de ele não ser "grande", mas de, por muito tempo, não ousar querer realmente manifestar essa grandeza. Não podemos esquecer que ele obedecia a uma ordem: "fique calado". Então, diante da necessidade de assumir a posição deixada pelo pai e recusada pelo irmão, ele não desiste e enfrenta os obstáculos. Ler aquele discurso para toda uma nação, e ler tantos outros depois, significava para Bertie, antes de mais nada, recuperar sua grandeza, nem tanto enquanto rei, mas como sujeito, como indivíduo, recuperar sua autonomia, sua liberdade.

Quem sabe, para toda aquela nação inglesa ele tenha sido um efetivo ponto de apoio e esperança, mas acima de tudo, mais do que a nação ele tinha conquistado a si mesmo, recuperado aquela liberdade que havia sido afastada de si, ainda tão criança. Ele iria livrar-se dos "medos infantis", frase de seu terapeuta e que ecoa como um sopro da psicanálise, justamente naquele momento histórico em que ela tinha seu fundador morrendo e transformava-se em algo como um vento que se espalharia rapidamente pelo mundo.

Podemos até tentar escapar à psicanálise, ou mesmo buscar alternativas, mas não podemos nos furtar ao encontro consigo mesmo. Em algum momento esse encontro se impõe e dele resulta um sujeito ainda mais forte e livre, onde a vida flui… como a fala deve fluir, não só mecanicamente, mas como veículo para o encontro consigo mesmo, e com o outro. A dor de Bertie, nos mostrada em sua dificuldade em se expressar, era o sofrimento por não se sentir um sujeito na sua plenitude, livre para expresar sua grandeza. Que mais buscamos, cada um de nós, nesta vida? É difícil, então, não nos reconhecermos um pouquinho naquelas expressões de dor… por não poder falar.
P.S. "Bons Costumes" e "Direito de Amar" são dois outros filmes em que Colin Firth está magnífico.

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