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Violência Contemporânea: reflexões sobre a banalização dos dias atuais

Pensei em abordar um texto que falasse sobre a violência contemporânea ligada à tendência de justificá-la nas doenças mentais ou drogas. Tema vasto e complexo que não tenho a pretensão de esclarecer em tão breve artigo, mas para o qual posso pincelar algumas informações e levantar algumas questões. Trarei certos dados sobre a doença mental e drogas mas não ficarei centralizado nestas, pois acredito que a violência que vivemos atualmente é um movimento social e não só um fenômeno isolado de um determinado grupo "desviante".

Uma das características preocupantes de nossa sociedade atual não é a violência em si, visto que esta sempre existiu, mas seu aumento gradual aliado à um banalização absurda das ocorrências. Hoje em dia, encaramos muitas vezes uma chacina, um assalto em semáforo resultando em morte ou atentado terrorista por parte de traficantes à algum estabelecimento comercial como noticias corriqueiras – se tornou "normal", coisas do dia a dia. Tal comportamento frio que muitas vezes pode representar uma defesa contra a angústia que tais notícias geram em nós, pode também ocasionar um estado perigoso e desumano frente aos acontecimentos diários: a indiferença.

A indiferença, como um estado passivo e desinteressado impossibilita questionamentos, reflexões e a tentativa e possibilidade de mudança. Aceitam-se as coisas como elas são e se segue adiante. Nada mais nos choca – os índices de violência aumentando, as pessoas se matando, mas enquanto não me atingir diretamente tudo bem! Não nos importamos, pois não há tempo para isto, não nos envergonhamos, pois não nos afetamos mais por isto…"la belle indiferance".

O mais importante neste momento é exatamente o contrário, a postura ativa, problematizadora, que busca dar conseqüência aos movimentos culturais-sociais – que busca entender um chacina, ou crime serial não só como um evento isolado, mas como um fenômeno de nossa cultura. Se o mundo lá fora está violento não é por que não carrego uma arma ou me mantenho trancado em casa que eu não tenha também responsabilidade frente à tal movimento social. Como irei lidar com isso? Quais as conseqüências de meus atos isolados sobre o meio em que vivo? Estou e/ou estamos fazendo bom uso de nossa cidadania? Qual minha postura ética frente às manifestações atuais de violência?

A violência em si está banalizada, mas é a violência daquele que é igual a mim, "normal", que está chocando e movimentando o sensacionalismo televisivo e a busca por respostas em todos os meios de conhecimento. É o filho que assassina o pai ou o fato deste abusar e matar sua filha, filho e esposa que está nos apavorando. É a violência dentro de casa e nas instituições culturalmente mais sagradas e valorizadas da sociedade que mostram que algo não vai bem e para esse mal-estar temos dado respostas antigas. As três justificativas mais usadas para esclarecer a violência são: drogas, doença mental ou possessão demoníaca. Mas será que podemos aplicar tais respostas à cultura contemporânea?

É comumente conhecido que a questão do crime e da violência envolve uma série de reflexões e comentários que ultrapassam em muito o ato violento em si; são questões que resvalam na ética e na moral de nossa sociedade. Sempre há alguém tentando ajustar ao criminoso e à manifestação violenta, traços e características psicopatológicas, anormais: porque X cometeu esse crime? Estaria perturbado psiquicamente? Como foi sua infância, será que foi abusado pelos pais? Estaria sofrendo com a pressão social? Será que tem cura? Como mantê-lo afastado de nós, pessoas "normais"?

As questões são diversas e as respostas vagas e incompletas (tal como o próprio Ser Humano o é). Como nos coloca Ballone (2002) "a respeito dos recentes conhecimentos da neurociência, a maioria das pesquisas ou não encontrou uma associação entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência maior que na população geral, ou encontrou apenas uma discreta associação, estatisticamente não significativa".

Alguns quadros psiquiátricos costumam chamar a atenção da sociedade, quando envolvidos em crimes graves que invariavelmente chocam as pessoas por seus requintes de sadismo e crueldade. Apresentar-se-ão brevemente alguns dos quadros mais comuns, deixando claro que o fato de ser um doente mental não acarreta necessariamente comportamentos criminosos ou anti-sociais, mas muitas vezes na busca de resposta para crimes usa-se do diagnóstico clínico para justificar os mesmos.

Muito já se ouviu nos meios de comunicação sobre a psicose – ela inclusive foi alvo de um dos mais conhecidos filmes de suspense de Alfred Hitchcock ( filme "Psicose"). Um dos sintomas mais exuberantes e característico da mesma é o delírio. Em muitos quadros psicóticos, encontramos acentuado traço de desconfiança, ressentimento, frigidez no relacionamento interpessoal e busca de isolamento social. Os delírios nas psicoses são normalmente de cunho persecutório, ou seja, giram em torno de uma temática de prejuízo, perseguição e referência à pessoa do paciente, sendo também sistematizados e bem organizados. A idéia de referência condiz com a impressão de que ele é observado, é perseguido por complôs misteriosos, é predestinado a executar um plano de salvação da humanidade, ele detém a capacidade de percepção extra-sensorial, é o mais prejudicado, etc. Assim, o psicótico edifica sua realidade particular e assume neste seu mundo uma posição central servindo de referência aos eventos que se sucedem. Pode-se ter boa idéia do que é isso com o filme "Mente Brilhante"(dirigido por Ron Howard).

As manifestações de agressividade do psicótico, ainda que incomuns, têm para ele um caráter defensivo, contra um sistema que deseja prejudicá-lo, influir sobre ele, roubar seu pensamento, matá-lo através de influências estranhas. Assim, comete crimes ou é agressivo reagindo a um sistema delirante criado por ele mesmo, o que mostra a dificuldade de adaptação do mesmo com a realidade externa. Ele interage por intermédio de sua realidade interna, ignorando ou percebendo de maneira precária a realidade externa.

As primeiras crises psicóticas costumam apresentar-se logo na adolescência, quando os principais sintomas tais como, alucinações, desconfiança excessiva, isolamento social, dificuldade de relacionamento, humor alterado se intensificam. Atualmente, tais quadros tem bom prognóstico com o uso de medicações psicofarmacológicas (ex: ansiolíticos e antipsicóticos) e acompanhamento psicoterapêutico (grupos psicológicos, psicanálise, orientação familiar).

Agora um quadro mais comumente aliado à crimes e violência é o da Psicopatia. Grande proporção, em torno de 25% dos prisioneiros, mostra muitas características do que a psiquiatria chama de Sociopatia. (Transtorno da Personalidade Anti-social).

As características dos sociopatas engloba, principalmente, o desprezo pelas obrigações sociais e a falta de consideração com os sentimentos dos outros. Eles possuem egoísmo exageradamente patológico, emoções superficiais, teatrais e falsas, pobre ou nenhum controle da impulsividade, baixa tolerância para frustração, irresponsabilidade e o que torna o quadro mais difícil de ser tratado é a ausência de sentimentos de remorso e de culpa em relação ao seu comportamento.

Tais pessoas geralmente são cínicas, incapazes de manter uma relação leal e duradoura, são muito manipuladoras. Mentem exageradamente, roubam, abusam, trapaceiam, manipulam dolosamente seus familiares e parentes, colocam em risco a vida de outras pessoas – esse conjunto de caracteres faz com que os sociopatas sejam incapazes de aprender com a punição ou incapazes de modificar suas atitudes.

Devido ao fato de não demonstrarem sintomas de outras doenças mentais quaisquer é difícil esse tipo de população buscar ajuda psiquiatrica-psicológica ou ser encaminhado para tais serviços. Muitas vezes tal indivíduo só é desmascarado ou descoberto após ter realizado atos criminosos.

Segundo o DSM. IV, a característica essencial do Transtorno da Personalidade Anti-Social é um padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que inicia na infância ou começo da adolescência e continua na idade adulta.

Existe uma vertente da psicanálise que acredita no tratamento analítico desta população e alguns trabalhos deste tipo já mostraram resultados positivos, mas mesmo assim é um quadro de difícil acesso e tratamento – na maioria das vezes são presos e mantidos isolados para não causarem prejuízo inclusive dentro do próprio sistema penitenciário. Um livro que retrata com precisão o quadro da psicopatia ou sociopatia é "Silêncio dos Inocentes" de Thomas Harris que deu origem a dois filmes de Hollywood sobre o personagem Hannibal Lecter.

Quanto ao uso de drogas relacionado à violência e agressividade temos um excelente exemplo no recente filme "Carandiru" (adaptação do livro de Drauzio Varell ), no qual um dos personagens, chefe de cela e também traficante começa a fazer uso constante de "crack". Na seqüência, o filme mostra como tal uso vai afetando o personagem, que começa a sentir-se perseguido por alguém (a conhecida "noia" – sintomas de paranóia; a pessoa começa a ficar extremamente desconfiada e desenvolve pensamentos de que querem prejudicá-la, passa então a atuar em seu meio de acordo com suas fantasias, se estas forem agressivas ele reagirá agressivamente frente ao seu meio externo). As conseqüências de tal sintoma são desastrosas para o personagem. Tal história pode facilmente se aplicar aos usuários constantes de drogas como álcool, cocaína, crack entre outras.

A droga em seu abuso afeta não só fisicamente o usuário que se torna dependente químico, como também o desequilibra psicologicamente. Poderíamos superficialmente citar certos sintomas freqüentes do uso abusivo de drogas: alteração de humor, sintomas físicos como febre e mal-estar quando se está em abstinência, dificuldade no relacionamento com as pessoas, tendência à hostilidade, diminuição na atenção e muitas vezes alteração na percepção da realidade. A droga na maioria das vezes atua deixando seu usuário mais a vontade e muitas vezes sem limites, acentuado características primitivas e hostis de sua personalidade.

Sabemos em nosso dia a dia como a droga tomou conta e se tornou parte de nossa cultura, contribuindo inclusive para os altos índices de violência, desrespeito e desadaptação social. Muito tem se feito para trabalhar essa questão de maneira responsável e solidária – várias entidades trabalham no sentido de informar a população e dar condições e alternativas saudáveis para a população mais atingida pelo tráfico – o problema é que perto da problemática causada pelo tráfico (social e econômica) e da dependência química gerada pelas drogas este trabalho tem pouco alcance e força.

Vivemos um novo momento sócio-cultural – entramos na era da globalização. Com esta, as relações sociais (tendo estas como princípio a família) que eram verticalizadas, passaram a ser horizontais. Na industrialização, a família era piramidal, baseada no poder do pai, assim também era a organização nas empresas (do presidente às diferentes categorias de hierarquia: vice presidente, diretor, gerente, funcionário…etc). Como expõe Forbes (2003, pag. 5) em recente entrevista ao Jornal Estado de Minas, o mundo mudou, houve uma quebra da verticalidade e quando tem-se uma quebra de padrão, vem a sensação de confusão, de estarmos perdidos. Continuando sua exposição, Forbes coloca que as pessoas se sentem desorientadas, " desbussoladas", e com isso surge o mal estar e a necessidade imediatista de nomear, catalogar, padronizar e medicar esse mal-estar – o problema é que estamos dando respostas antigas a novos problemas. Não basta simplesmente prender criminosos ou utilizar da pena de morte como castigo e exemplo tal qual se fazia antes para diminuir os índices de criminalidade – temos que pensar o que está exatamente acontecendo? Por que tais índices altos de violência (não só no Brasil, mas em todo mundo)? Como está organizada nossa sociedade? Como ela reage à mudanças? Qual o papel individual de cada um? O que esta acontecendo com a humanidade como um todo?

Com a globalização nos vemos com maior poder, temos maiores opções de escolha e de ação e, automaticamente, com esse maior poder temos também maior responsabilidade – talvez lidar com esta está sendo uma tarefa árdua de pouca flexibilidade e elaboração (tanto no sentido individual como coletivo).

Almeida Leite (1998, pag.16) em um artigo sobre o movimento contemporâneo da civilização por respostas totais às questões humanas de comportamento comentou que a história e a ficção científica mostravam a tentativa de, por meio do saber científico categorizar em padrões pré-estabelecidos o comportamento humano. Atualmente, as realizações e manifestações humanas passam a ser tipificadas e descritas em manuais (como o DSM-IV, CID-10), apresentadas com sensacionalismo e parcialidade pela televisão, e digeridas sem maiores conseqüências pela sociedade – tal movimento não visa apenas a descrição, como também, a definição, em "padrões científicos", daquilo que é normal e aceito do que é censurável e patológico. Tal fato é por demais simplista e reducionista. "Coisifica" o homem, esquecendo e pondo de lado sua subjetividade.

Esta é outra característica perigosa das relações humana: a busca de respostas por intermédio de um culpado pelo infortuito sofrido. Cantizani complementa isto dizendo que "quando há um desviante, por exemplo o doente mental, o drogado, o menor de rua, ou qualquer pessoa que possa ser considerada à margem do que a sociedade acredita ou caracteriza ser o "melhor" para si, as pessoas artificilmente se unem culpando aquela que sentem como perigo para a sua integridade e segurança". A necessidade de se unir leva as pessoas a negarem os conflitos pessoais e projetar angústias, rancores, medos, sobre a pessoa escolhida para esse lugar de culpado, desviante – o famoso bode expiatório – afinal de contas, alguém precisa levar a culpa. "Tal mecanismo nem sempre é inconsciente, muitas vezes é o mais cômodo." (1998, pag. 77).

Neste momento podemos apontar para o berço de nossas relações; a família. Ela é um dado essencial de nossa civilização e nos dá a base para os relacionamentos futuros e visão de mundo. Hoje nossa forma de pensar e agir na sociedade na maioria das vezes carrega a marca de nossos primeiros anos de vida no núcleo familiar. É por este motivo essencial que o núcleo familiar precisa partir de inter-relacionamentos baseados no respeito, diálogo, ética e responsabilidade. Concordante com esta exposição Winnicott (1999) relatou que a criança sofre privação, quando passam a lhe faltar certas características essenciais da vida familiar. Sem o referencial dado pelo apoio e cultura familiar a própria adaptação à sociedade se torna ainda mais difícil – por exemplo, uma criança que vê seus pais brigando constantemente, sem terem respeito um pelo outro e agindo de maneiras inconseqüentes, assume como sendo fato que as coisas só se conseguem com atitudes agressivas e impulsivas, e possivelmente agirá desta maneira em seu ambiente social.

Claro que não podemos dizer que o adulto que age de maneira inconseqüente e violenta em nossa sociedade o faz por culpa de sua infeliz infância e por isso não é responsável por seus atos – somos todos responsáveis por nossas formas de agir e escolhas que fazemos em nossa vida – as dificuldades surgem naturalmente no caminho de qualquer pessoa, a questão é como ela aprendeu e como vai lidar com estes obstáculos.

Não podemos nos esquecer que o conflito do homem com o mundo não é um defeito, uma falha, algo passível de ser concertado e padronizado, curado e sequenciado, mas sim a base de sua constituição. Isto nos foi apontado por Freud em 1930 – ele nos falava da impossibilidade de harmonizar as exigências pulsionais, individuais de cada ser às normas e regras sociais – a insatisfação e frustração são uma marca permanente disto. Se neste conflito surge uma onda de violência que permeia todos os âmbitos sociais-culturais cabe ao homem refletir o que esta acontecendo à sua volta e, antes de buscar culpados, tentar ver qual a sua implicação neste movimento e quais as suas possibilidades de ação para o dado momento. Ética – está aí uma palavra que passou a ser só palavra, pois em sua Ato-ação ela está um tanto em desuso, basta olharmos à volta de nosso Brasil! E cada qual tem sua parcela de responsabilidade e consequência frente ao mundo que o cerca. "Não importa tanto o que fizeram a você, mas sim o que você faz…daquilo que lhe fizeram" Jean Paul Sartre
Referências Bibliográficas

ALMEIDA LEITE, C.E. Onde esta a razão? in Dora: Revista de psicanálise e cultura. Ano 1, N º 1 , São Paulo, 1998.
BALLONE GJ. Violência e Psiquiatria – in. PsiqWeb, Internet, disponível em <http://www.psiqweb.med.br/forense/border2.html> revisto em 2002.
CANTIZANI, A.M. Psicologia social. Ed. Fiuza e Jundurian, São Paulo, 1998.
DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Artes Médicas, 1995.
FORBES, J. Em entrevista com Leila Ferreira para o jornal Estado de Minas. 6 de abril de 2003, pag. 5, Minas Gerais, 2003.
FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago Ed., (s.d.).
O mal estar na cultura (1930) – Vol. XVIII
SCHUBERT, R. Artigos Científicos – internet, disponível em <; http://www.reneschubert.hpg.com.br/ > revisto em 2006.
WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. Ed. Martins Fontes, 2ª ed., São Paulo, 2001
_________________ ; Privação e delinqüência. Ed. Martins Fontes, 3 ed., São Paulo, 1999

Sobre o presente artigo:
O presente artigo foi publicado com o nome de "A violência banalizada: os movimentos da inconseqüência humana" na Revista Educação e Família, Editora Escala, N º 4, Ano 1 , Julho 2003. ( http://www.escala.com.br/).

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