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A despersonalização do meditador

A meditação traz ganhos, mas antes disso traz perdas. Perdem-se padrões cristalizados, cria-se um "vácuo", e esse espaço é preenchido com novos – e melhores – conteúdos. Depois de certo tempo, sabe o que acontece? Tudo de novo! Perdem-se mais padrões, cria-se novo "vácuo", e preenche-se esse "buraco" com novas substâncias… e por aí vai, num crescimento cíclico e por pulsos. No curso desse processo "circular", geralmente depois de anos de meditação, podem surgir as vivências de despersonalização, e é sobre isso que conversaremos hoje.

De forma geral, e despersonalização é considerada como um problema mental, e está presente em alguns distúrbios psiquiátricos. Ela consiste em uma sensação de perda de identidade, de desidentificação com sua própria pessoa, de sentir que "você na verdade não é você mesmo", com se sua pessoa fosse apenas uma personagem de uma peça de teatro, como se olhar no espelho não fosse mais olhar para você, mas para uma outra pessoa.

Quando se vê a descrição do quadro acima, nota-se que é algo que naturalmente assusta. No entanto, na meditação, pode ser um degrau natural no processo de crescimento. Como já falamos antes, na meditação, existe um crescimento por pulsos, e muitas coisas mudam sem que tenhamos a percepção do processo ou do momento exato da mudança. Em palavras metafóricas, "você dorme de um jeito e acorda de outro". Quando você faz terapia, as mudanças ou acontecem lentamente a partir dos conteúdos psíquicos que são trabalhados nas sessões, ou vem de grandes insights, ou fortes catarses. Na meditação, minha experiência clínica mostra que ocorre um processo diferente, como se grande parte da mudança ocorresse no inconsciente, e depois a mudança viria "já pronta" para a consciência, sem que testemunhássemos a "acomodação de placas tectônicas" que precede a transformação. Imagine que você fizesse psicoterapia, e tivesse uma amnésia seletiva que lhe fizesse esquecer apenas as sessões terapêuticas logo depois de sair delas, mas continuasse se lembrando de todo o resto da sua vida. Agora imagine que, mesmo assim, a terapia funcionasse e você fosse se transformando. O que aconteceria? Suas mudanças iriam parecer "surgir do nada", e isso poderia lhe assustar. Pois é mais ou menos assim que acontece com os meditadores depois de algum tempo. Com certa frequência, na meditação, a mudança nos surpreende, e uma delas – em meditadores de longo prazo – é a despersonalização. Mudanças importantes, quando parecem "surgir do nada" são tão espantosas que ficamos, por um tempo, sem saber quem somos nós, e isso é o que chamaremos aqui de "despersonalização meditativa".

Um estudo sobre o tema foi publicado por Kennedy, em 1976, que relatou dois casos de despersonalização em meditadores, seguida de grande ansiedade, chegando a motivar a procura de um psiquiatra. Castillo, em 1990, também estudou a despersonalização em 6 praticantes de meditação transcendental.

A missão inicial, diante disso, é saber se o quadro de despersonalização é parte de uma doença, ou não. Se for parte de uma doença, o indivíduo terá que ser acompanhado e tratado por um psiquiatra. Se for apenas parte da transformação de um meditador, apenas um degrau do seu crescimento, a ida ao psiquiatra e a medicação podem "abortar" um processo de crescimento meditativo, pois irá alterar a química do cérebro e transformar um meditador num "doente". Felizmente, os autores que estudaram esse evento, apontaram maneiras de diferenciá-lo da doença e também mostraram formas de como abordar o meditador que, ao vivenciar esse processo, sofre e sente medo.

A primeira diferença entre os dois tipos de casos é muito simples. Na "despersonalização meditativa" a pessoa conta que está meditando geralmente há anos. É pouco comum esse tipo de achado em meditadores recentes. Em nossa experiência clínica, quanto mais precoce é o surgimento desse quadro (algumas semanas a poucos meses), maior a chance de ser um problema, e quanto mais tardio (dois anos, ou geralmente mais), maior a probabilidade de ser apenas uma etapa de crescimento.

A segunda forma de diferenciar as duas situações está no momento em que se instala a ansiedade. Segundo Kennedy, nos meditadores acontece primeiro a despersonalização e, só depois, a ansiedade. Nos distúrbios psiquiátricos, a ansiedade se anteciparia à despersonalização.

Naturalmente, uma terceira forma estaria na existência ou não de um "terreno fértil" para doenças psiquiátricas, ou seja, na história de vida do indivíduo podem ser detectadas características que já faziam suspeitar de um prenúncio de quadro psicótico. Na história familiar, também, o relato de quadros semelhantes podem orientar o psiquiatra bem treinado a ventilar essa possibilidade.

Essa é, inclusive, uma das razões que me traz certo receio em conduzir sessões de meditação com pessoas com antecedentes de psicose. Além de perceber que uma maior parte de pessoas assim parece "piorar" do quadro, ao invés de melhorar, também ficará confuso interpretar o quadro de despersonalização, quando ele surgir futuramente. No momento, tenho notícias que um grupo da Universidade de Stanford vem trabalhando sessões de meditação com psicóticos, e tendo resultados que parecem animadores. Ainda assim, recomendo um especial cuidado com essas situações.

Instalada a "despersonalização meditativa", e sabendo-se que não é doença, existem algumas formas de trabalhar com a ansiedade que surge a partir daí, e a principal delas é conhecida como "simbolic healing". Nesse tipo de abordagem, explica-se ao meditador o que esse tipo de evento representa em outros contextos culturais, nos quais a meditação induz a modificações que são entendidas como crescimento. Dessa maneira, a despersonalização passa a ser vista como um evento transitório, que faz parte de uma mudança que está levando ao desenvolvimento pessoal.

Nas palavras do próprio Castillo: a) trata-se de uma experiência que pode, na verdade, representar o novo perfil comportamental do indivíduo, e não um estado transitório; b) não é necessário manter-se restrições sociais e/ou ocupacionais; c) pode, até mesmo, ser o sinal subjetivo de um incremento na performance ocupacional; d) tem relação com a perda gradual da capacidade de sentir emoções extremas, sejam negativas ou positivas; e) é geralmente acompanhada por uma constante sensação subjetiva de certo prazer; f) a natureza afetiva da experiência parece ter forte conexão com o conteúdo simbólico que tiver a despersonalização para o indivíduo, e; g) não são incomuns, alguns episódios de desrealização em relação aos objetivos estabelecidos.

Vejam, então, que a "despersonalização meditativa" pode assustar, mas não é um "mal" em si mesma. Diferenciada de um quadro psiquiátrico, ela pode não ser motivo para preocupação, mas ao contrário, ser uma boa notícia… ser o prenúncio de uma nova fase.

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