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O consumo dos sonhos

Capão de mato verde
Onde as flores
        Confusas
Se entrelaçam:
Um tempo de pardais
Aguarda teus canários.

    Quando o casarão em ruínas, onde antes funcionara um manicômio, enfim foi demolido, restou um imenso terreno sombrio, tomado por árvores e plantas entrelaçadas. “Até que foi bom terem demorado tanto para demolir o manicômio”, comentou o Escritor Ingênuo, “De outra forma a cidade já teria ocupado esse espaço, e não teríamos todas essas árvores”. “Não diga besteira”, atalhou o Construtor Pragmático, “Você quer que acabem nos obrigando a preservar esse mato?”. Decidiu-se por fim manter duas enormes seringueiras; as demais árvores deram lugar a três espigões de classe média, vendidos ainda na planta.

    Para que se possa aproveitar todo potencial utilitário das pessoas e das coisas, é preciso afastar delas qualquer resquício de sagrado. Banir da montanha os espíritos dos antepassados, exorcizar da casa velha os fantasmas da memória. O fabricante de agrotóxicos mede a Terra em hectares potenciais de consumo; o empreendedor imobiliário, em VGVs – Valor Geral de Venda. É óbvio que precisamos de alimento e moradia, e que só a Terra pode prover. Mas é óbvio também que nos move, em grande medida, o gosto do jogo pelo jogo, do ganho pelo ganho, a fome de expansão e conquista. O tigre não caça para ser o maior predador do planeta; o homem, sim.

    Banir de tudo o sagrado, porém, tem um preço: a despersonalização dos seres; ou, como queria Heidegger, sua entificação. Diante do olho frio da economia (e, paradoxalmente, da política) o homem vira coisa em-si, quantificável como qualquer mercadoria, complemento indispensável da produção: consumidor eleitor. Casado, 36 anos, classe B+, curso superior completo: nome, passado ou futuro não pesam nessa equação. Mas eis que vem em nosso socorro o próprio consumo: se diante do poder incorpóreo do mercado somos todos fundo, a mercadoria pode nos restituir a face, nos transformar de novo em figura. Exclusivo! Especial! Diferenciado! – bradam os comerciais, e as lojas ainda nos prometem atendimento personalizado. Num giro lento, porém inelutável, os seres se entificam e as coisas adquirem atributos de ser. As marcas têm personalidade, linguagem, atitude, temperamento, que nos são atribuídas por empréstimo. Sou a ousadia do carro que dirijo, a sutileza das roupas que uso, a modernidade do meu celular. Signos sem os quais retorno à indiferenciação do fundo, volto a ser, como disse Sartre, todo mundo e qualquer um – e que só se fazem indispensáveis porque, de fato, sou todo mundo e qualquer um.

O consumo dos sonhos, que nos entifica, encontra seu antídoto no sonho de consumo, que nos empresta a ilusão de ser.

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