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Diálogos entre Oliver Sacks e B.F. Skinner – Acidente vascular cerebral

        Segundo Benseñor e Lotufo (2008) o acidente vascular cerebral (AVC) é uma das doenças que mais matam no Brasil e no mundo. Estima-se que no ano de 2008 aproximadamente 6 milhões de óbitos, 10% do total de mortes no mundo, tenham sido causados por acidentes vasculares cerebrais. A perspectiva é que esse número cresça nos próximos anos, sendo que em 2015 e 2030 a expectativa de óbitos causados por acidentes vasculares cerebrais é de 18 e 30 milhões, respectivamente.

            Aspesi e Gobbato (2001) definem o acidente vascular cerebral como:

Uma doença caracterizada pelo início agudo de um déficit neurológico (diminuição da função) que persiste por pelo menos 24 horas, refletindo envolvimento focal do sistema nervoso central como resultado de um distúrbio de circulação cerebral que leva a uma redução do aporte de oxigênio às células cerebrais adjacentes ao local do dano com conseqüente morte dessas células; começa abruptamente, sendo o déficit neurológico máximo no seu início, e podendo progredir ao longo do tempo.

            Existem dois tipos de acidentes vasculares cerebrais, a saber: isquêmico e hemorrágico. O acidente vascular isquêmico consiste na oclusão de um vaso sanguíneo que obstrui o fluxo de sangue a uma região específica do cérebro, interferindo nas funções neurológicas dependentes daquela região. Segundo Aspesi e Gobbato (2001) em torno de 80% dos acidentes vasculares cerebrais são isquêmicos

     Já no acidente vascular hemorrágico há uma hemorragia local, com outros fatores complicadores como aumento de pressão intracraniana, edema cerebral, entre outros, levando a sinais nem sempre focais. A literatura identifica vários fatores de risco que estão comprovados na origem do acidente vascular cerebral, tanto o isquêmico como o hemorrágico. Eles são:

Hipertensão arterial, doença cardíaca, fibrilação atrial, diabete, tabagismo, hiperlipidemia. Outros fatores que podemos citar são: o uso de pílulas anticoncepcionais, álcool, ou outras doenças que acarretem aumento no estado de coagulabilidade (coagulação do sangue) do indivíduo. (Aspesi e Gobatto, 2001)

            Devido às alterações nas funções neurológicas geradas pelo acidente vascular cerebral, este quadro acaba alterando consideravelmente a vida das pessoas que sofrem um AVC, sem mencionar a influência da condição nos familiares e nas pessoas próximas. Dependendo do grau do acidente vascular cerebral, as alterações podem ser pequenas ou grandes, de curta duração ou mesmo definitivas. Pode-se observar essa realidade em um caso relatado por Sacks (2007):

Quando o conheci, Harry estava quase chegando à casa dos quarenta. Era um brilhante engenheiro mecânico, formado pelo MIT. Sofrera uma súbita ruptura de um aneurisma cerebral quando subia uma encosta de bicicleta. Tivera grave hemorragia em ambos os lobos frontais; o direito estava gravemente danificado, e o esquerdo, menos. Ficou em coma por várias semanas e depois disso permaneceu, pensávamos, irreparavelmente inválido por meses – meses nos quais sua mulher, perdendo a esperança, divorciou-se dele. Quando por fim ele deixou a unidade de neurocirurgia e foi para o Beth Abraham, um hospital para doentes crônicos, havia perdido o emprego, a mulher, o uso das pernas e uma grande porção de sua mente e personalidade. E, embora começasse aos poucos a recobrar a maioria de suas antigas capacidades intelectuais, na esfera emocional ele permaneceu gravemente deficiente: inerte, desanimado e indiferente. Fazia muito pouco por si mesmo, ou para si mesmo, e dependia dos outros para incentivo e impulso. (p. 289)

            Para Sacks (2007), o acidente vascular cerebral hemorrágico sofrido por Harry devido ao aneurisma produziu uma grande mudança comportamental em várias esferas de sua vida. Apesar das perdas, o trabalho de reabilitação desenvolvido pela equipe multidisciplinar do hospital Beth Abraham produzia resultados, permitindo ao paciente recuperar habilidades perdidas.

Harry conseguia se recuperar, com exceção da esfera emocional. O paciente parecia incapaz de ter sentimentos, não demonstrava o interesse e a vivacidade que apresentava anteriormente quando lia um artigo da Scientific American, por exemplo. Harry não vivia suas emoções, ou pelo menos não conseguia acessá-las ou expressá-las.

            Do ponto de vista neurológico, pode-se afirmar que no caso do paciente áreas do cérebro responsáveis pela vivência e expressão das emoções foram danificadas. Já do ponto de vista da Psicologia, representada no presente artigo por Skinner, o dano causado no cérebro impedia a cadeia de comportamentos que culminava com a vivência e expressão dos sentimentos.

            Contudo, tanto para Sacks como para Skinner um acidente vascular cerebral não implica necessariamente em um déficit cognitivo e comportamental definitivos. Cabe ao médico e ao psicólogo auxiliar o paciente que sofreu um AVC a encontrar alternativas neurológicas e comportamentais para superar os déficits adquiridos. Mesmo com uma estrutura neurológica danificada, o cérebro apresenta grande plasticidade. Nicolino (2011) corrobora essa linha de raciocínio ao afirmar que:

Superar uma lesão e criar uma nova circuitaria cerebral para produzir o mesmo movimento, o mesmo conhecimento, ou outro comportamento é um exemplo da plasticidade cerebral. O cérebro não é limitado, pois do ponto de vista funcional e estrutural ele sempre está em mudança. O funcionamento do cérebro, assim como o comportamento, é dinâmico, mutável, plástico.

            Ilustrando essa afirmação, o relato de Sacks evidencia como Harry e a equipe de profissionais que o assistiam superaram a dificuldade do paciente de vivenciar e expressar suas emoções. Eles construíram uma nova forma de vivência e expressão das emoções a partir do cantar.

Porém tudo isso mudava subitamente quando Harry cantava. Ele tinha uma bela voz de tenor e adorava canções irlandesas. Ao cantar, mostrava a emoção apropriada a cada música – o jovial, o melancólico, o trágico, o sublime. Era assombroso, pois não víamos o menor indício disso em nenhum outro momento, e poderíamos julgar que sua capacidade emocional estava totalmente destruída. Era como se a música, sua intencionalidade e sentimento, fosse capaz de “destrancá-lo”, ou de servir como uma espécie de substituto ou prótese para seus lobos frontais e fornecer os mecanismos emocionais que ele aparentemente não possuía. Parecia transformar-se quando cantava, mas assim que a música terminava ele recaía, em segundos, no vazio, na indiferença, na inércia. (p. 290)

            A equipe de reabilitação que assistia o paciente no relato de Sacks conseguiu construir uma nova cadeia de comportamentos que permitia a vivência e a expressão dos sentimentos, mesmo esse repertório sendo restrito a situações que envolviam a musicalidade. Através do trabalho de reconstrução dos repertórios comportamentais afetados pelo acidente vascular cerebral, o paciente pode recuperar essa e outras habilidades.

           Pode-se afirmar que mesmo diante de um quadro intimidador, grave e inesperado, como costumam ser os acidentes vasculares cerebrais, não há motivos para as pessoas envolvidas desistirem de lutar por uma melhora. Mesmo quando a probabilidade é baixa, há esperanças de que o trabalho multidisciplinar do neurologista, do fonoaudiólogo, do fisioterapeuta e do psicólogo possa resgatar através da aquisição e fortalecimento de repertórios comportamentais as habilidades perdidas.

REFERÊNCIAS

ASPESI, Nelson Venturella; GOBBATO, Pedro Luis. (2001). Acidente vascular cerebral. Disponível em: <http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?6>. Acesso em 01 dez. 2013.

BENSEÑOR, Isabela; LOTUFO, Paulo. (2008). A incidência do acidente vascular cerebral no Brasil. Disponível em: <http://saude.hsw.uol.com.br/avc-epidemiologia.htm>. Acesso em 01 dez. 2013.

NICOLINO, Victor Faria. (2011). Diálogos entre Oliver Sacks e B.F. Skinner – A plasticidade humana. Disponível em: <https://www.redepsi.com.br/2011/07/18/di-logos-entre-oliver-sacks-e-b-f-skinner-a-plasticidade-humana/>. Acesso em 01 dez. 2013.

SACKS, Oliver. (2007). Irreprimível: a música e os lobos temporais. In: SACKS, O. Alucinações Musicais. São Paulo, Companhia das Letras.

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