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Pesquisa indica a existência de hereditariedade de lembranças

De acordo com um estudo com ratos e recentemente publicado na revista Nature, certos medos podem ser herdados através das gerações. Os autores sugerem que um fenômeno semelhante poderia influenciar a ansiedade e a dependência em humanos. Alguns pesquisadores permanecem céticos em relação à descoberta porque nenhum mecanismo biológico que explique o fenômeno foi identificado até agora.

Por convenção, as sequências genéticas contidas no DNA são a única maneira de transmitir informações biológicas através das gerações. Mutações aleatórias de RNA, quando benéficas, permitem que organismos se adaptem a condições mutáveis, mas esse processo normalmente ocorre de maneira lenta ao longo de muitas gerações.

Estudos sugerem que fatores ambientais podem influenciar a biologia mais rapidamente através de modificações “epigenéticas”, que alteram a expressão dos genes mas não sua sequência de nucleotídeos.

Mas alguns estudos sugerem que fatores ambientais podem influenciar a biologia mais rapidamente através de modificações “epigenéticas”, que alteram a expressão dos genes mas não sua sequência de nucleotídeos. Por exemplo, crianças que foram concebidas na Holanda durante uma grande miséria provocada pela guerra, nos anos 40, têm maior risco de desenvolver diabetes, doenças cardíacas e outros problemas – possivelmente devido a alterações epigenéticas em genes envolvidos nessas doenças.

Mas apesar de se saber que modificações epigenéticas são importantes para processos como o desenvolvimento e a desativação de uma cópia do cromossomo X em mulheres, seu papel na herança de comportamentos ainda é controversa.

Kerry Ressler, neurobiólogo e psiquiatra da Emory University em Atlanta, na Georgia, e coautor do último estudo, se interessou pelo tema da herança epigenética após trabalhar com pessoas pobres de cidades interioranas, onde ciclos de dependência de drogas, doenças neuropsiquiátricas e outros problemas parecem ser frequentemente recorrentes em pais e filhos. “Existem muitas histórias sugerindo a transferência intergeracional de riscos, e a dificuldade de quebrar esse ciclo”, declara ele.

Traços herdáveis

Estudar a base biológica desses efeitos em humanos seria difícil. Então Ressler e seu colega Brian Dias optaram por estudar a herança genética em ratos de laboratório treinados para temer o cheiro de acetofenona, um produto químico com um cheiro comparável ao de cerejas e amêndoas. Os dois colegas espalharam o aroma ao redor de uma pequena câmara, enquanto administravam leves choques elétricos a ratos machos. Os animais acabaram aprendendo a associar o cheiro com dor, tremendo na presença de acetofenona mesmo sem choques.

Essa reação foi transmitida para seus filhotes, relataram Dias e Ressles na Nature Neuroscience de 1º de dezembro. Apesar de nunca ter encontrado acetofenona em sua vida, a prole exibiu sensibilidade aumentada quando introduzida ao cheiro do químico, tremendo de maneira mais pronunciada em sua presença quando comparados aos descendentes de ratos que foram condicionados a se assustar com um cheiro diferente, ou de ratos que não passaram por condicionamento.

Uma terceira geração de ratos – os ‘netos’ – também herdou essa reação, assim como ratos concebidos por fertilização in vitro com o esperma de machos sensibilizados à acetofenona. Experimentos semelhantes mostraram que a resposta também pode ser transmitida pela mãe.

Essas respostas ficaram pareadas com mudanças em estruturas cerebrais que processam odores. Os ratos sensíveis à acetofenona, bem como seus descendentes, tinham mais neurônios que produziam um receptor proteico conhecido por detectar o odor se comparados a ratos de controle e sua prole. Estruturas que recebem sinais dos neurônios que detectam acetofenona e enviam sinais de cheiro para outras partes do cérebro (como aqueles envolvidos em processar o medo) também eram maiores.

Os pesquisadores propõem que a metilação do DNA – uma modificação química reversível que normalmente bloqueia a transcrição de um gene sem alterar sua sequência – explica o efeito herdado. Nos ratos amedrontados, o gene sensível à acetofenona tinha menos marcas de metilação nos espermatozoides, o que poderia ter levado à maior expressão do gene receptor de odores durante o desenvolvimento.

Mas como a associação entre cheiro e dor influencia o esperma ainda é um mistério. Ressler aponta que os próprios espermatozoides expressam proteínas receptoras de odores, e que alguns odorantes vão parar na corrente sanguínea, oferecendo um possível mecanismo, assim como pequenos fragmentos de RNA transportados pelo sangue, conhecidos como microRNAs, que controlam a expressão genética.

Descobertas contenciosas

Como era de se esperar, o estudo dividiu pesquisadores. “A principal resposta foi ‘Uau! Mas como diabos isso acontece?’”, conta Dias. David Sweatt, neurobiólogo da University of Alabama em Birmingham, não envolvido nesse trabalho, chama isso de “o conjunto mais rigoroso e convincente de estudos publicado até o momento demonstrando efeitos epigenéticos transgeracionais em um modelo de laboratório”.

Timothy Bestor, no entanto, biólogo molecular da Columbia University em Nova York que estuda modificações epigenéticas, está incrédulo. De acordo com ele, é improvável que a metilação do DNA influencie a produção da proteína que detecta a acetofenona. A maioria dos genes que se sabe serem controlados pela metilação têm essas modifcações em uma região chamada de promotor [promoter], que precede o gene na sequência de DNA. Mas, de acordo com Bestor, o gene detector de acetofenona não contém nucleotídeos nessa região que possam ser metilados. “As alegações que eles fazem são tão extremas que eles basicamente violam o princípio de que alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias”, adiciona ele. [NOTA: Citação do nosso saudoso Carl Sagan]

Tracy Bale, neurocientista da University of Pennsylvania na Filadélfia, declara que os pesquisadores precisam “determinar a região que conecta a experiência do pai com sinais específicos capazes de produzir mudanças em marcadores epigenéticos na célula germinativa, e como essas mudanças são mantidas”.

“É bem intrigante pensar que nossas células germinativas podem ser tão plásticas e dinâmicas em resposta a mudanças no ambiente”, observa ela.

Ressler suspeita que seres humanos também herdam alterações epigenéticas que influenciam o comportamento. A ansiedade de um dos pais, especula ele, poderia influenciar gerações futuras por meio de modificações em receptores de hormônios do estresse. Mas Ressler e Dias ainda não sabem como provar o argumento, e pretendem se concentrar em animais de laboratório no momento.

Os pesquisadores agora querem determinar por quantas gerações dura a sensibilidade à acetofenona, e se essa resposta pode ser eliminada. O ceticismo em relação à existência do mecanismo de herança provavelmente continuará, admite Ressler, “até que alguém realmente consiga explicá-lo em nível molecular”. “Infelizmente, isso provavelmente vai ser complicado, e provavelmente vai demorar algum tempo”.

Fonte: Scientific American Brasil

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