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A fidelidade começa na infância

O psicólogo Nelson Pedro da Silva, hoje um respeitável professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista, unidade Assis), admite que, nos seus primeiros anos de infância, cometeu lá as suas travessuras, das quais muitas vezes escapou sem castigo algum.
O psicólogo Nelson Pedro da Silva, hoje um respeitável professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista, unidade Assis), admite que, nos seus primeiros anos de infância, cometeu lá as suas travessuras, das quais muitas vezes escapou sem castigo algum.
A impunidade dependia de um acordo muito comum entre as crianças: é proibido ‘dedurar’ um amigo. A lembrança daquela época ressurgiu quando ele trabalhava com um grupo de crianças de uma escola da periferia de Assis, onde pôde observar que, com muita freqüência, os professores solicitavam aos alunos que apontassem o autor das indisciplinas, deixando as crianças divididas entre a fidelidade e a delação.

Interessado em descobrir se o pacto de silêncio tão comum na sua infância era uma tática muito particular, ou fazia parte do universo infantil, o psicólogo deu início à tese que deve defender este mês: ‘Um Estudo Psicogenético sobre a Fidelidade como Valor Moral entre Escolares’. Mais que uma curiosidade, o psicólogo tem a intenção de avaliar como se dá o desenvolvimento de valores morais e éticos na infância. ‘Nas últimas décadas tem-se observado um aumento de estudos sobre este assunto, uma questão que tomou ainda mais força com a atual crise de valores’, diz Nelson Pedro da Silva, referindo-se ainda às tantas vezes que pais e educadores ficam perdidos, sem saber como educar seus filhos.

Para descobrir até que ponto as crianças se mantinham fiéis aos acordos de não delação, o psicólogo entrevistou cerca de 200 crianças de 6, 9 e 12 anos, de ambos os sexos. A partir de histórias hipotéticas o estudo demonstra como elas se portaram em relação aos acordos de fidelidade em situações que envolviam furtos, mentiras e generosidade. A tese questiona ainda de que forma fatores como idade, sexo e tipo de relação podem influenciar as decisões das crianças diante dos dilemas propostos.

Na história contada às crianças, dois amigos haviam combinado de jamais revelar nenhum segredo do outro, por pior que fosse. Certo dia, um deles comete um furto. A primeira conclusão do estudo foi que 30% das crianças se mantiveram fiéis aos acordos, mesmo nesta situação de falta grave. ‘À primeira vista pode parecer um número pequeno, mas quando pensamos em termos de sociedade, é muito significativo.’ As crianças estão colocando valores públicos, imprescindíveis para a convivência em sociedade, abaixo dos individuais, avalia o psicólogo.

Na segunda história, o furto foi substituído por uma mentira. Neste caso, 25% não contariam a ninguém a verdade. Por fim, no terceiro dilema, a generosidade das crianças foi testada diante de uma história bem difícil. Dois amigos haviam feito um pacto de emprestar dinheiro sempre que um deles pedisse. Mas quando isto acontece, ao mesmo tempo um outro colega está faminto e sem dinheiro algum para comprar lanche. Na sua casa não há comida e a mãe do colega está desempregada. ‘Os alunos perguntaram se não poderiam dividir o dinheiro. Alguns chegaram a chorar diante do dilema proposto, até por se identificarem com este drama, próximo da realidade das crianças selecionadas para o estudo. Entretanto, como a idéia era forçá-las a uma decisão, havia apenas a opção de emprestar ou não ao amigo. Neste dilema, 15% delas manteriam a palavra dada.’

No entanto, quando os dados foram analisados em relação a sexo, idade e tipo de relação, outras surpresas foram reveladas. O pesquisador descobriu que quanto maior a idade, maior a tendência a ser fiel, o que causa certa estranheza, quando se costuma imaginar que os mais velhos têm uma compreensão maior do que é condenável em sociedade. Para obter mais respostas sobre este dado, Silva decidiu entrevistar alunos de 15 anos. A resposta para a fidelidade então pareceu simples: na adolescência as relações em grupo assumem uma importância fundamental. No entanto, o grupo de estudantes mais velho também se mostrou mais crítico. Se por um lado acha inconcebível não manter a palavra dada, critica muito as ações condenáveis. Calam-se, mas colocam declarações como ‘não vou mais manter a amizade com esta pessoa’.

O psicólogo também se surpreendeu ao descobrir que a fidelidade costuma ser maior entre amigos que entre irmãos, em todas as faixas etárias. Para os mais novos, o irmão raras vezes é um amigo. A rivalidade é a palavra de ordem desta fase da infância. Entre os mais velhos, os amigos são mais importantes, muitas vezes por falta de laços mais profundos entre eles. Outra razão apontada pelos entrevistados é o medo de perder um amigo. Já um irmão não pode abdicar do posto.

Se há diferenças de postura de acordo com a idade, também existem em relação ao sexo. As meninas denunciam menos, mas também são as mais críticas sobre este tipo de acordo. ‘Acredito que isto esteja relacionado ao fato de existir, ainda, uma educação diferenciada para meninos e meninas. Os garotos são educados para o mundo público, assim estão mais próximos dos valores da sociedade. Já a mulher é educada para ser fiel à família, ao marido. Para ela, os valores privados, como a fidelidade, acabam por se impor’, explica ele.

Como então lidar com crianças e adolescentes tão apegados a valores da vida privada, individual? Silva cita que Piaget, em 1928, já demonstrava em seu trabalho que uma das figuras mais odiadas pelas crianças era o dedo-duro, que eles chamavam de vilão. Como driblar esta situação? Em primeiro lugar, é preciso deixar de lado a idéia de que crianças são adultos em miniatura. A concepção de mundo deles é diferente da dos adultos. Logo a fidelidade a um amigo se reveste de maior importância do que valores como justiça, veracidade, honestidade. Em segundo lugar, basta lembrar que as crianças são democráticas quando se relacionam sem a interferência de um adulto. ‘É só observar um grupo de meninos de 9 anos antes de jogar futebol. Eles passam meia hora discutindo as regras do jogo, para no fim ter uma partida de dez minutos’, exemplifica o psicólogo. As crianças valorizam as regras na maioria das vezes apenas impostas; elas têm somente deveres e não o direito de tomar decisões.

A própria fidelidade da criança pode ser usada para fazê-la entender melhor os conceitos da vida em sociedade. Pais e professores podem fazer acordos com as crianças. Por exemplo, fica estabelecido que ninguém pode pegar nada de ninguém sem autorização. Se a regra for rompida, estará quebrando o ‘contrato’. Neste caso, delatar se torna até um dever, necessário para a manutenção da fidelidade à combinação inicial.

Fonte: Terra/diversão Sexta, 14 de dezembro de 2001, 16h58
Elaine Bittencourt/InvestNews-Gazeta Mercantil

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