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Nise da Silveira: retrato com glamour e doçura

Há alguns anos, escrevendo sobre a psiquiatra Nise da Silveira no jornal “Rio Artes”, Wilson Coutinho afirmou: “Não há dúvidas que as gerações futuras saberão honrá-la mais do que nós.” Antes talvez do que supunha o crítico, surge, na coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira, vol. 4, a primeira biografia daquela que ficou conhecida como revolucionária da psiquiatria brasileira.
Há alguns anos, escrevendo sobre a psiquiatra Nise da Silveira no jornal “Rio Artes”, Wilson Coutinho afirmou: “Não há dúvidas que as gerações futuras saberão honrá-la mais do que nós.” Antes talvez do que supunha o crítico, surge, na coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira, vol. 4, a primeira biografia daquela que ficou conhecida como revolucionária da psiquiatria brasileira.
Escrita pelo psicólogo Walter Melo, um de seus discípulos e a quem ela chamava de escafandrista, em alusão à fineza de sua sensibilidade, que lhe possibilitava mergulhos penetrantes nos estudos da psique, esta biografia conjuga ciência com conhecimento da personalidade e da teoria de Nise.

Hábitos pitorescos, que passaram despercebidos ou não foram devidamente valorizados pela maioria dos que conviveram com a doutora, foram delicadamente gravados pelo biógrafo. Soma-se à agudeza de percepção do cotidiano mais simples, o tento com que traçou a evolução do pensamento de sua biografada. O resultado se apresenta neste retrato inteiro, misto de originalidade, doçura, inteligência e rebeldia, a que não falta boa dose de glamour.

Walter Melo toma por base registros simples como o do “Benedito”, parte da biblioteca onde Nise da Silveira mantinha as obras científicas, especialmente as de Jung, que a faziam exclamar: “Quem será o Benedito que vai se interessar por estes livros?” Ou o da existência de um brasão cujas armas se constituíam de dois abanadores, feitos de palha entrelaçada, que se cruzavam sobre uma peneira também de palha, pendurada na parede da biblioteca. Simbolizava minúcia e paixão, os componentes da forma de trabalho da psiquiatra alagoana: era no Nordeste, com fogo aceso e longas horas de vento brando gerado pelos abanadores que se fazia o melhor pudim de laranja, peneirado sete vezes.

O despojamento na vida doméstica, no entanto, contrastava com o requinte de seu método de trabalho que, como se sabe, teve no estudo das imagens produzidas pelos clientes (ela não usava o termo doente ou mesmo paciente), o lastro para suas teses. Na sua opinião, a imagem encerra valor duplo: em primeiro lugar, dá ao pesquisador elementos para uma tentativa de compreensão dos processos internos que se desenvolvem na psique cindida; em segundo, representa, para seu autor, meio de despotencializar a força destruidora do inconsciente: “É através dessas manifestações expressivas que nos é dado penetrar no mundo interior dos psicóticos, mundo tão pouco acessível às abordagens lógico-discursivas.”

Ao recusar, de forma definitiva, o uso do eletrochoque, foi categórica: tinha de haver outro caminho. Fez do estudo das imagens a busca de uma forma não-agressiva de tratamento. Ignorou os que não viam sentido nos rabiscos desconjuntados de doentes mentais ou os que atribuíam a ela interesse em descobrir talentos novos. Como foi difícil fazer entender — e duvidava ter conseguido — que, embora jamais fossem induzidos a fazer qualquer tipo de desenho, alguns deles transformassem suas vivências internas, muitas vezes aterradoras, em imagens plasticamente belas.

De modo geral avessa a biografias, Nise da Silveira acreditava que elas tendem a nutrir o mito e encobrir a “sombra”, conceito junguiano que define o lado obscuro da personalidade. Sem dúvida, a fecundidade de seu trabalho e a riqueza de sua personalidade merecerão estudos futuros. Com Nise, Walter Melo livrou-nos do vaticínio de Manuel Bandeira, quando afirmou na “Oração de paraninfo”: “Somos assim: conhecemos e celebramos autores europeus de terceira e quarta ordem; relegamos ao esquecimento os gênios do nosso continente.”

Lamenta-se apenas que esta edição de Pioneiros da Psicologia Brasileira tenha negligenciado erros básicos de revisão e não ofereça ao leitor um índice onomástico, indispensável em obra desse gênero.
ELVIA BEZERRA é autora de “A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Nise da Silveira”

Elvia Bezerra
Fonte: Globo On Line / Rio, 19 de Janeiro de 2002

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