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Família Tá faltando ele

A natureza deixou clara a impossibilidade de existir filho sem mãe. A psicologia tem ajudado a compreender a função imprescindível do pai
A natureza deixou clara a impossibilidade de existir filho sem mãe. A psicologia tem ajudado a compreender a função imprescindível do pai
Não é que eu tivesse a sensação de que meu pai não gostava de mim. Apenas ele parecia distraído, incapaz de olhar na minha direção. E, mais do que qualquer outra coisa, eu queria que ele prestasse atenção em mim.

Qualquer coisa, mesmo a mais ínfima, era o bastante. Por exemplo, quando a família, certa vez, foi a um restaurante cheio de gente, num domingo e tivemos de esperar uma mesa, meu pai me levou para fora, arranjou uma bola de tênis (onde?), pôs uma moedinha de um centavo na calçada e começou um jogo comigo: acertar a moeda com a bola de tênis. Eu não podia ter mais do que oito ou dez anos de idade.

Em retrospecto, nada poderia ser mais banal. E, no entanto, o fato de que eu fora incluído, de que meu pai me chamara com toda naturalidade para matar o tempo a seu lado, quase me esmagou de felicidade.”

Essas são as imagens que formam o holograma da memória de Paul Auster em A Invenção da Solidão, quando ele se vê entregue à dolorosa tarefa de arrumar os objetos de um morto tão absolutamente significante em sua vida: seu pai.

No entanto, mesmo diante da austeridade da morte, por mais esforço que fizesse, Auster não conseguia definir aquele que o gerou de outra forma que não fosse como “um homem invisível”.

Enquanto arruma os pertences de seu pai, vê-se entregue a outra dolorosa tarefa, a de reconhecer que o filho de “um homem invisível” não pode deixar de ser, por legado e convivência, também “um filho invisível”.

Sérgio Bittencourt, por meio da música, presta uma derradeira homenagem a Jacob do Bandolim, seu pai, papel que se confunde com o de ídolo: “Naquela mesa ele sentava sempre/ e contava contente o que fez de manhã/ e nos seus olhos era tanto brilho/que mais que seu filho eu virei seu fã.”

Salvador Minuchin, ao tentar compreender seu percurso como terapeuta de família, recorda: “esta visão de meu pai como amoroso, íntegro e freqüentemente distante, e de minha mãe como protetora, controladora e sempre envolvida conosco, foi construída, reforçada e confirmada em milhões de transações em minha infância e adolescência. Naturalmente também houve muitos outros intercâmbios que poderiam ter contestado essa visão. Mas as famílias são organismos conservadores.”

No reino infantil, na história de Pinóquio, o boneco de madeira cujo nariz comprido tem servido para muitos pais como lança de combate às mentiras dos filhos, Collodi relata o trecho em que o menino encontra o pai, na barriga do Tubarão Terrível: “Oh, pai, querido pai! Será que enfim o encontrei? Agora nunca mais, nunca mais deixarei você!…Você pode montar em meus ombros e eu, que sou bom nadador, levo você a salvo até a praia. Em todo caso, se estiver escrito que temos de morrer, pelo menos vamos morrer juntos.”

Contextos tão distintos, quer no tempo, no espaço ou no gênero de onde emergiram, reverberam, no entanto, o mesmo tema: a necessidade do pai, cuja ausência ou presença reafirma sempre sua importância, seja para proteção, para exercício do amor ou para estímulo de vida. O que se percebe é a premência do lugar do pai contra a invisibilidade do filho. A condição básica para sermos visíveis diante do mundo é que o sejamos antes aos olhos de nosso pai.

Essa polifonia reafirma a idéia de Lacan, segundo a qual, para ir além do pai, necessitamos antes nos apropriarmos dele. Para esse psicanalista, a maioria dos problemas de aprendizagem, por exemplo, têm a ver com a instalação do registro simbólico, com base em uma dificuldade da passagem do segundo ao terceiro tempo de Édipo, nesse momento em que o pai deve transformar-se de “pai terrível”, que é a lei, a norma e o saber, em representante da lei, da norma e do saber.

Ou seja: o pai é fundamental. O que fazer, então, no caso de sua ausência? A psicanalista francesa Françoise Dolto, ao responder sobre problemas psicológicos de pais e filhos, lembrava sempre que, nesse caso, o importante para todos os filhos, não importa a idade, é manter a idéia da presença e a confiança no pai.

Crer em si, crer no mundo – Certamente, todos nós precisamos de cuidados contínuos e seguros, para um desenvolvimento apropriado. A criança e o jovem precisam desenvolver certa crença nas pessoas e no mundo, e essa crença tem de ser construída: ela não vem pronta. E precisa ser construída na família, na relação com as figuras parentais, que, por sua vez, condensam modelos de seus próprios pais. Quando o jovem se transforma em adulto, essa crença pode transformar-se numa crença em si mesmo e nas pessoas, e ela é suficiente para não precisar de controles externos. Estes, por seu lado, se convertem em autocontrole, prova de que o conflito foi trabalhado de antemão no íntimo da pessoa.

O principal ambiente que fornecemos aos nossos filhos não são os clubes ou o shopping, mas somos nós mesmos, nossa pessoa, nossa natureza, nossas características distintas As crianças saudáveis precisam de ambiente seguro, de proteção e de disciplina, propiciados por pessoas amadas, respeitadas e que possam dar continência às suas emoções, por mais difíceis que sejam. E nessa continência, nesse suporte, inclui-se a figura do pai. Ser pai é uma tarefa vitalícia. Não o pai bonzinho, amiguinho do filho, como se tivesse a mesma idade que ele. Mas o pai também apto a dizer um “não”, que se revele como uma faceta do amor paterno, em lugar de um “sim” que encobre uma perigosa permissividade. Não o pai que mantém o filho no princípio do prazer, mas aquele que lhe propicia o crescimento e o alicerça no princípio da realidade.

E como lidar com sua falta? Será que essa ausência nos ajuda a esclarecer, ao menos em parte, tantos problemas que ocorrem em nosso meio?

Nas classes mais pobres, sabemos que, em grande parte, vigora a mãe como figura monoparental, muitas vezes responsável por numerosos filhos. Na classe média e alta, costumeiramente vemos um pai sobrecarregado, com inúmeros compromissos, que limitam seu contato com os filhos. Como será que se constrói essa ausência dentro das crianças e dos jovens?

Que parte de responsabilidade terá ela diante de tantos atos desregrados, de tanto consumo de drogas e álcool, de tanta violência social?

Se nós considerarmos a drogadependência como um sintoma de obediência, e não de rebeldia, como o sugere o psicanalista Eduardo Kalina, a quem obedecem tantos jovens que se drogam? A que pai? A que lei? A irreverência com que os mais velhos são tratados pelos mais jovens terá algo a ver com a falta do pai? A figura do professor estará em derrocada, em parte, por causa dessa falta?

Se adotarmos uma visão sistêmica do mundo, poderemos pensar num microcosmo que reflete um macrocosmo. Poderemos pensar num indivíduo como uma célula, numa família, que se desdobra numa comunidade, num país e, assim, sucessivamente. Poderemos pensar em indivíduos adolescentes, em famílias adolescentes, em países adolescentes. Então, é só prosseguir no raciocínio espiralado: uma criança solta na rua, à mercê de todos os perigos, sem orientação e cuidado, pode transformar-se num terrível delinqüente; um adolescente conturbado, vivendo um mundo interno caótico, sem uma figura firme que o ajude a ter autocontrole, pode tornar-se violento e autodestrutivo. Uma família que não se dá conta de sua responsabilidade social, e não exercita sua autoridade na criação dos filhos, colabora sobremaneira com os problemas da sociedade.

Um país que não provê cuidados básicos a seus filhos e não cuida da educação de seus filhos, formando-os condignamente e inserindo-os na cultura, mas que age como “pai invisível”, ausente e indiferente, corre um grande risco de ver sua população converter-se num bando de “filhos invisíveis” que, como adolescentes conturbados, indisciplinados, descrentes e inconseqüentes, farão qualquer estripulia para chamar a atenção daqueles que deveriam ser, por decreto, os responsáveis pela lei, pela norma e pelo saber.

Isa Spanghero Stoeber é terapeuta de família e de casais.
E-mail:[email protected]

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