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O nome.

Contaram-me que quando Lube olhou o mundo pela primeira vez seus irmãos já saiam sozinhos. Que quando nasceu, vinha dentro de uma mesma bolsa junto com um gêmeo que não sobreviveu. Soube das suas alergias, e que por causa da fraqueza das suas pernas não podia dar nem dois passos e ficava olhando um mu …
Contaram-me que quando Lube olhou o mundo pela primeira vez seus irmãos já saiam sozinhos. Que quando nasceu, vinha dentro de uma mesma bolsa junto com um gêmeo que não sobreviveu. Soube das suas alergias, e que por causa da fraqueza das suas pernas não podia dar nem dois passos e ficava olhando um mu …
Contaram-me que quando Lube olhou o mundo pela primeira vez seus irmãos já saiam sozinhos. Que quando nasceu, vinha dentro de uma mesma bolsa junto com um gêmeo que não sobreviveu. Soube das suas alergias, e que por causa da fraqueza das suas pernas não podia dar nem dois passos e ficava olhando um mundo que parecia cheio de surpresas, fora desses dois passos. Falaram-me que não foi negro de nascimento: osso e coro descorado; que se prendeu ferozmente da teta da sua mãe, e, que sua mãe prendeu-se ferozmente à vida dele, e assim foram indo… pasito a paso (1). É filho do melhor caçador que a gente viu por aqui, ficou órfão num duelo de honra. Lube não parecia ser nem macho nem fêmea, era só Lube. Soube que não pulava, nem brincava, nem emitia sons, nem ouvia: parecia não pertencer a este mundo, alheio na sua própria aventura de brigar com a vida dia a dia, não fazia outra coisa que ser um lobisomem: o mais feio. Tampouco assistiu às aulas socializadoras com os irmãos, nem aprendeu das crises evolutivas normais, porque nunca às atravessou.
Será que como li em alguns textos (2) um só pode ver quando acredita… , que a isso que me contaram, o desejo, transformou fraquezas em fortalezas: hoje, depois de quase dois anos, eu olho Lube olhar o mundo com olhos abertos, e, ao mundo olha-lo boquiaberto.
Seus irmãos cresceram e fugiram da casa para outros lugares e gentes, ele inventou-se um amigo invisível ao que conta nossos contos quando nos dormimos. Não sabe de gêmeos, nem de irmãos, nem de humanos: Lube é uma relação em si mesmo, e é onde ele circula para dizer que alguém está ali, pretendendo ser nomeado para constituir-se. Já não espirra, mas alguma alergia está transformando-o num careca novo. Não tem feito muito mais que dois passos… e, acredita que pisou a lua: ele só reconhece como próprio o quintal onde marcou limites que permitem a ele, seguir sendo , sempre em referencia a outros; no seu quintal de um pouco mais de dois passos, Lube inventa espaços onde nos permite rir de nós mesmos inventando seus lugares de crescimento. Lube é negro agora, mas tem brilhos vermelhos; segue sendo pele e ossos, porem ele não tem complexos em seu desengonçado andar nem em sua cor indefinida. Abandonou a teta da sua mãe, porem ela não parou de amamenta-lo dessa cálida presença que têm as madrazas (3) de todas as culturas: seu olhar fica sempre atento à maneira em que Lube é testemunho da sua teimosa generosidade. Para contrariar as expectativas de seu pai, só caça borboletas que sempre voam longe. Cuida, mais que nada, dois saquinhos inchados que penduram de suas pernas e que ainda não descobriu os prazeres que podem dar-lhe, os exibe, mostrando aos quatro ventos que ele foi ele desde o começo, pena que nós não sabíamos disso. De lobisomem virou Lube com lua cheia e sem se olhar em outros espelhos.
Dizemos que ele é o cangaceiro mais bem-humorado de uma quadrilha de “outros” nomeados, que o nomeiam, e nessa relação dialógica tem se dado à vida: nunca soubemos como foi que, Lampião (4) , seu irmão, com um só olho, começou a seguir seus passos e a salva-lo de cobras que não pretendiam brincar de guerra com ele. A Pirrila, divina do clan, santa e vagabunda, caçadora e cassada, ágil e mansa, empenha se em trazer ao terceiro mundo, descendência que o encha; essa descendência teimosa emerge desde relações que jamais podemos terminar de entrelaçar ou controlar, porque se escorrem como seu andar. Luis Melodia (5), tem nome que o define: maldito , negro, ágil, abusado, inteligente, sonoro; Melodia iniciou a Lube num mundo de amigos reais, dando-lhe possibilidades de fazer visível isso que estava invisível como um amigo no mato; Lube, grandalhão sentado na ultima fila da sala de aulas faz só garrancho, enquanto Melodia constrói teoremas de científicos loucos. Birdy, é dois: um que foi ao vazio, e outro que se incluiu no clan: branco, olhos azuis, filho de pai estrangeiro. Qual é a hierarquia entre eles? Quem é quem ali onde se encontram?
Finalmente, Lube, tem mais de sete vidas… e as desfruta dia por dia, nem sabendo que poderia antecipar saudades e perdas, felicidades e amores… só vai vivendo todas ao mesmo tempo.
Lube, suspeitarão, é um GATO, eu não sei se ele sabe que é um gato, mais de alguma maneira reconhecemos a necessidade aprendida de “encaixa-lo” numa “categoria” que o identifique: nos serve ao nosso controle… não sei se serve a ele… então, Lube é nosso gato e ao mesmo tempo, não é… li uma frase da escritora Clarice Lispector que fiz minha, em algumas oficinas sobre INCLUSÃO ESCOLAR que coordenei numa escola do Rio de Janeiro, quando debatia com os professores sobre a constituição relacional do “outro” e, sobre o próprio e interno “outro” que inventamos quando nomeamos ao aparentemente alheio e estranho “outro”; Clarice dizia “Eu reduzida a uma palavra? Porém, qual palavra me representa? Uma coisa sim que eu sei é que eu não sou meu nome. Meu nome pertence a os que me chamam“.¨

1- Palavras utilizadas em Argentina que significam “pouco a pouco”.
2-Humberto Maturana, Heinz Von Foerster, “don Juan” de Carlos Castañeda…
3-Palavra que em Argentina usamos para nomear uma “boa e cuidadosa mãe”.
4-Bandoleiro que se tornou um mito no sertão nordestino brasileiro.
5-Luis Melodia é um cantor e compositor brasileiro que foi durante muito tempo identificado como “maldito” pela sua irreverência; em uma de suas gravações se identifica cantando “eu sou um negro gato de arrepiar”.

Autor da Opinião: Anelice Ribetto

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