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O psicopata mora ao lado

Atenção

Este artigo nos atinge profundamente – não pela maneira como foi escrito, mas pelo tema que aborda. Todos nós temos um psicopata adormecido em nosso inconsciente dinâmico – não o reprimido do nosso dia-a-dia, mas o inconsciente herdado filogeneticamente, chamado de vital ou procedural, e que jamais é conscientizado. Isto faz com que nos identifiquemos, involuntariamente, com muitas das atrocidades aqui relatadas. Fato este que nos assusta sobremaneira. Mas, é melhor conhecê-lo do que ignorá-lo. Esta é a essência que R.L. Stevenson tentou nos passar no seu livro “Dr. Jekill (O médico) e Mr. Hyde (e o monstro)”. Penso em mostrar um artigo que seja Serviço de Utilidade Pública, municiando o leitor com alguns elementos a mais para que melhor se proteja desta matéria diária dos noticiários.
Folha de S.Paulo 09/11/2002 – 17h43
Suzane pede para advogada avisar irmão que está triste A estudante Suzane Louise von Richthofen, 19, que confessou ontem ter participado da morte de seus pais, Manfred e Marísia von Richthofen, pediu hoje a uma advogada que a visitou na prisão que contasse a seu irmão, Andreas, 15, que ela está muito triste. O garoto está com um tio. 
Folha de S.Paulo 09/11/2002 – 04h19
Crime da rua Cuba continua sem solução Conhecido como "o caso da rua Cuba", o assassinato do casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecilia Delmanto Bouchabki, ocorrido na véspera do Natal de 1988, permanece insolúvel. Na ocasião, o filho mais velho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho, então com 18 anos, passou a ser um dos suspeitos. 
Folha de S.Paulo 21 Maio 22h01min 2004
Gil Rugai nega assassinato do pai. O estudante Gil Grego Rugai, de 21 anos, negou, hoje, à Justiça ter assassinado seu pai, o publicitário Luiz Carlos Rugai, de 41, e sua madrasta, Alessandra de Fátima Troitiño, de 33. Em seu interrogatório, na 5ª Vara do Júri, o réu afirmou ainda que não esteve na casa do pai no dia do crime. Laudo recente da perícia constatou que a pegada de Gil é compatível com uma marca encontrada em uma porta arrombada da casa do publicitário. 
Folha de S.Paulo, no Rio 19/12/2003 – 21h40
Guilherme de Pádua terá de indenizar Glória Perez em R$ 4,6 mi A novelista Glória Perez conseguiu na Justiça o direito de receber uma indenização de pelo menos R$ 4,6 milhões de Guilherme de Pádua e da editora O Escriba, que publicou o livro "A História que o Brasil desconhece". Nele, o ex-ator conta sua versão para a morte da atriz Daniella Perez, filha da novelista, ocorrida em 28 de dezembro de 1992. 
Folha Online 14/10/2003 – 14h17
Justiça suspende benefícios de condenados pela morte de pataxó A Justiça suspendeu hoje o benefício de regime semi-aberto para três dos quatro rapazes condenados pelo assassinato do índio pataxó Galdino de Jesus. O índio, de 44 anos, teve o corpo queimado, em 1997, enquanto dormia em um ponto de ônibus de Brasília. Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novély Cardoso de Vilanova tinham autorização para sair do presídio da Papuda exclusivamente para trabalhar e estudar. 
Folha Online 14/11/2003 – 11h39
Estudante foi violentada e torturada por acusados, diz polícia A estudante Liana Friedenbach, 16, morta com o namorado Felipe Silva Caffé, 19, em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo, foi violentada e torturada pelos acusados de envolvimento na morte do casal, segundo afirmaram policiais que investigam o crime. O resultado do laudo pericial sobre o estupro, no entanto, ainda não foi concluído. O adolescente R.A.C, 16, o Champinha, apontado como o líder do grupo, "idealizou o abuso contra Liana, oferecendo-a aos outros comparsas", disse o delegado Silvio Balangio Júnior, da Delegacia Seccional de Taboão da Serra. Felipe morreu com um tiro na nuca no último dia 2, e Liana, a facadas, na madrugada de quarta-feira, segundo a polícia. Ainda segundo a polícia, Champinha foi o responsável por matar Liana e ajudou Paulo César da Silva Marques, 32, o Pernambuco, a matar Felipe. 
Folha de S.Paulo 27/06/2005 – 15h24
Serial killer admite ter matado 10 pessoas no Kansas WICHITA (Reuters) – Um serial killer descreveu calma e objetivamente, em um tribunal do Kansas (EUA) na segunda-feira, como matou 10 pessoas, chamando suas vítimas de "projetos" para realizar suas fantasias sexuais. Dennis Rader, que confessou a culpa em 10 homicídios, contou de maneira indiferente como deu um copo de água a uma mulher depois que ela vomitou, só para estrangulá-la com uma corda, enquanto seus filhos, trancados em um banheiro, gritavam pela mãe. Em outra ocasião, ele enforcou uma menina de 11 anos no porão da casa dela, e se masturbou ao lado do corpo, depois de ter assassinado seus pais e um irmão de 9 anos no andar de cima. Os detalhes de uma série de assassinatos cometidos durante 18 anos por Rader foram narrados perante um tribunal do Condado de Sedgwick. Descrito como um homem religioso, Rader, que hoje tem 60 anos, será sentenciado em 17 de agosto. 
Folha de S.Paulo 04/07/2002 – 15h24
Serial killer Jeffrey Dahmer MILWAUKEE-WISCOSIN – Jeffrey Dahmer, conhecido como "o açougueiro de Milwaukee", cometeu 17 assassinatos entre 1978 e 1991, e reconheceu que comeu a carne de três vítimas. Morreu na prisão, assassinado por outro presidiário, em 1994.
Sexta-feira, 08 de novembro de 2002 – 21h52 Matam os pais, e a maioria não mostra remorso São Paulo 
Eles matam os pais, mas a maioria não demonstra remorso pelo que fez. Alguns tentam negar ou justificar-se. Roberto Peukert Valente disse que atirou nos pais e em três irmãos como se disparasse em "sacos de batatas". Ele tinha 18 anos. Gustavo Pissardo tinha 22 anos quando teve o acesso de fúria que custou a vida dos pais, avós e uma irmã. A estudante Andréia Gomes Pereira do Amaral e o comerciante Constantino Cheretis, ambos com 20 anos, mataram, segundo a Justiça, para ficar com a herança e para se livrar de um incômodo: os pais. Carlos Fabiano Faccion, de 25, fez isso porque se opunham ao seu casamento. As vítimas foram pegas de surpresa, e os motivos eram fúteis.

Esse é um crime ao qual a sociedade dedica uma repulsa antiga. O historiador Tito Lívio conta que matar os pais era considerado pelos romanos o mais grave delito comum que alguém podia cometer. Os culpados eram atirados da Rocha Tarpéia, a mais escarpada face da Colina do Capitólio. Peukert levou uma bronca da mãe em 1985. A música que ele ouvia de madrugada estava alta. Esperou um pouco, apanhou uma arma e atirou na mãe, no pai e nos irmãos de 18, 17 e 8 anos. Como os pais ainda agonizavam, resolveu esfaqueá-los, pois "estava determinado a matar". Pissardo cometeu seu crime em 1994 em São José dos Campos e Campinas. Confessou após o enterro dos parentes. Andréia matou em 1994 o pai, um comerciante, e a mãe no apartamento triplex onde moravam, em Santos. Para tanto, usou o namorado, o adolescente D., de 17 anos. Cheretis foi condenado por matar os pais, Emanuel e Letaxia, com 21 facadas em 1993, no Brás, centro de São Paulo. Carlos Fabiano matou neste ano os pais, Carlos Alberto, de 52 anos, e Maria Aparecida, de 46, e três parentes em Batatais, no interior paulista. No fim, todos acabaram presos.

Resta-nos criar um oportuno e impreterível distanciamento afetivo para suportar o transbordamento agressivo e destruidor destas manchetes. Assim, como um mecanismo natural de defesa de nossa psique, vamos, aos poucos, nos auto-anestesiando ante a brutalidade desta monstruosa e gratuita violência cometida entre humanos, e da qual não temos como ignorar. Esta realidade horripilante desafia nossa melhor ficção literária a superá-la.

Um exemplo interessante é a reação do público cinéfilo norte-americano desde a guerra do Vietnã. Para que ele seja emocionalmente atingido, nas suas confortáveis salas de projeção, é preciso que se mostre nos filmes de ação, algo que somente os efeitos especiais de extermínio da vida conseguem atingir, para que possa ser ultrapassado o limiar de excitabilidade neuronal destes seres, tal o nível de desconexão sináptica atingido por eles no seu cotidiano da não-ficção. Também os europeus do pós-guerra, claro. Nos dias de hoje há uma exposição de arte itinerante pelas suas grandes capitais. As longas filas são para apreciar esculturas feitas em cadáveres humanos por um anatomista de Heidelberg, o Prof.Dr. Gunther von Hagens, que consegue comprar de famílias pobres chinesas os corpos de seus familiares presidiários, tudo dentro da lei. Quem já entrou em contato com este trabalho (não pretendemos discutir seu valor estético, e, até elogiamos sua técnica original de plastinação da matéria-prima), e quiser vê-lo mais de perto, assista o filme alemão, “Anatomia” (Anatomie), de 2000, dirigido por Stefan Ruzowitzky, com a bela Franka Potente, no proscênio. Parece que conseguimos, por alguma via, exportar o nosso gigante adormecido aos quatro cantos do mundo.

Em geral, as perplexas testemunhas das tragédias jornalísticas dizem: “… era um rapaz um tanto tímido, mas simpático”, ou “… essa garota era uma graça, amável com todos nós”, ainda “… encontramo-nos no elevador do prédio inúmeras vezes, e este moço sempre nos cumprimentava, nunca tivemos uma queixa dele”. A desvalorização da vida do Outro, e sem causa aparente, ficou marcada na história da literatura universal do crime pelo livro “Laranja mecânica” (A clockwork orange), de Anthony Burgess, que virou filme por Stanley Kubrick. A única ficção que ali existe é a tentativa de recuperação do protagonista, o adolescente Alex, por meio de técnicas de condicionamento psicológico(1), no mais, tudo é absolutamente verossímil. Opto por fazer uma mixagem entre a realidade e a ficção cinematográfica a fim de atenuar um tanto a virulência deste texto. Insisto que minha intenção não é a de chocar o leitor, mas de alertá-lo e preveni-lo contra esta espécie mutante, o Homo desolator (devastador; que espalha a desolação – foi o melhor que consegui em latim). Pois é, e, basta o estudo da morfologia de um delito, para identificar-se se foi cometido por um psicopata, ou não. E, entre nós, eles aparentam a mais absoluta normalidade psíquica e social. Mesmo os policiais confessam, muitas vezes, ficarem chocados com tais acontecimentos, apesar dos anos de experiência com o crime.

Claro que nem todo homicida é psicopata. Para se chegar a um diagnóstico, se houver esta suspeita, a justiça nomeia um ou mais psiquiatras-peritos para consultarem o criminoso. Ao exame, o que mais chama a atenção nos psicopatas é a sua frieza e total descompromisso com o que narram, em detalhes milimétricos, de como mataram suas vítimas. No caso de Suzane (sendo caso público e notório não tenho a proibição do sigilo médico), por exemplo, contou-me quem a acompanhou no dia da reconstituição do assassinato de seus pais, que ela estava absolutamente calma e segura, e, notem, era a primeira vez que voltava à sua casa depois da tragédia. Dissimulada ao extremo, quando percebia que ia ser fotografada ou filmada, levava um lencinho às vistas, para simular um choro. * * * Psicopata, para a escola francesa de psiquiatria, é um termo genérico, como o seria para qualquer outra especialidade médica, por exemplo, pneumopata, nefropata, cardiopata etc. Para a escola hispano-germânica(2), psicopata define uma categoria específica de anomalia psíquica. Não é uma síndrome, menos ainda uma doença. É uma personalidade anormal, no sentido de ter todas as qualidades da normal, tais como, raciocínio temático, boas atenção e memória, inteligência às vezes elevada, afetividade, poder decisório e apto para a ação, porém, cada qual, em quantidades proporcionalmente diferentes (distúrbio quantitativo) da média estatística. Alguma dessas qualidades pode até faltar por completo, como no tipo que estamos expondo: a emoção. Representa um risco para a comunidade. Seu conceito, portanto, é mais social do que psiquiátrico, é uma sociopatia. O inglês a chama moral insanity. Identificar um indivíduo como personalidade psicopática, hoje chamada eufemisticamente de "transtorno de personalidade", não é fácil pelo simples fato de ser ele o espécime da Zoologia que mais se assemelha ao Homo sapiens sapiens comum (o "normótico" = fusão de normal com neurótico, condição esta da qual ninguém de nós escapa; este nome não é técnico, mas é de bom humor).

O psiquiatra alemão Kurt Schneider, que foi Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Heidelberg, e Reitor da mesma, dedicou grande parte de sua vida acadêmica e profissional ao estudo deste tipo de personalidade. Aliás, o professor Schneider chegou a uma lista com dez tipos diferentes delas. Para nós, em psiquiatria clínica e forense, interessa-nos mais de perto uma destas dez, a personalidade chamada "sem sentimento", sendo que as outras nove(3) não trazem maior risco à sociedade, podendo até ser usadas como um padrão classificatório para a tipologia psíquica humana normal. Portanto, quando aqui uso o termo psicopata, entenda-se que é o tipo “sem sentimento”. Schneider (1974) tentou uma conceituação geral para esses dez tipos de existência: "A personalidade psicopática é aquela que sofre ou faz sofrer à sociedade". Ainda que não seja uma definição médica ou psicológica, mas social, ela é muito imprecisa e discutível, da qual nenhum ser humano escaparia – quem discordar que atire a primeira pedra. Estaríamos, assim, arrogante e machadianamente(4), psiquiatrizando a Humanidade inteira. Mas, a verdade é que o fenômeno existe por si só, chamando como se quiser, ou dando qualquer outro tipo de definição. ¬ Convivi vários anos com psicopatas que cometeram delitos e foram internos do Manicômio Judiciário do Complexo Hospitalar de Juqueri, em Franco da Rocha-SP. Sinceramente, nunca surpreendi qualquer destes psicopatas expressando algum tipo de sofrimento, fato que, para mim, contradiz a definição tentada por Schneider. Para entendermos o funcionamento psíquico deste Ser, e, da maneira a mais simples possível, começo dizendo que nossa personalidade é composta de Razão, Emoção e Vontade. Isto é, de um conjunto de funções intelectuais (razão), de funções afetivas (emoção), e de funções volitivas, sendo que estas últimas nos levam, após uma escolha e decisão, à ação, completando a esfera volitivo-ativa. Estas três áreas da personalidade funcionam em perfeita integração, formando uma individualidade indissolúvel. Na formação da personalidade do psicopata sem sentimento, encontramos um grande vácuo no setor das emoções. A sinonímia deixa isto claro: frio de ânimo, desalmado, inafetivo, atímico. Aos antigos psiquiatras mais radicais da escola genético-organicista (que tratavam um paciente sem alma) não ficavam dúvidas dos determinantes hereditários desta anormalidade. Machado de Assis diz que a ocasião faz o furto, pois o ladrão já nasce feito.

Esta expressão do “bruxo do Cosme Velho” entendo-a que seja fruto de suas leituras dos clássicos da Psiquiatria fisicalista francesa da época, que ele as lia no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Na atualidade prefiro seguir o moderado caminho do meio, sem cair no pólo oposto dos psicodinamicistas (que tratam um paciente sem cérebro), mas dando a devida importância aos estímulos da Cultura na qual se desenvolveu o examinando. No máximo, posso concordar que o temperamento (a maneira de sentir) seja predominantemente genético, e que o caráter (a maneira de agir e reagir) seja predominantemente memético(5) (cultural). Aliás, a dicotomia genético/memético, ou inato/adquirido(6), nas origens da conduta humana se mostra refratária a uma qualificação neste sentido, na medida em que ela é um produto complexo destas duas fontes de determinação apontando, sempre, para uma integração destes fatores. O professor Freud costumava dizer: “O adquirido hoje, será o herdado amanhã”. Para mim, então, personalidade é o conjunto formado pelo temperamento, pelo caráter e pela inteligência em conseqüência da unidade inato/adquirido na qual se desenvolve. Ainda, corroborando com esta concepção, do ponto de vista biológico-evolutivo, nosso cérebro cresceu em tamanho muito mais pela demanda Social na relação inter-hominídeos do que pelos recursos armazenados e herdados para enfrentar os desafios da Natureza(7). Não se pode garantir que a todo sociopata faltem 100% dos seus sentimentos. Acredito que haja um continuum que vai de 0 a 100 unidades de sentimentos, se assim posso chamar. Digamos que o nível 100 seja a faixa da normalidade, abaixo dele teremos expressões de conduta que irão denunciando o grau de embotamento afetivo do psicopata. Claro que quanto mais próximo do nível 0, maior periculosidade representará para a sociedade. * * * Em Filosofia dos Valores aprendemos com vários autores que só se pode construir uma Escala de Valores pessoal se tivermos vida afetiva. Costuma-se agrupar os valores em quatro categorias: v. éticos, v. estéticos, v. lógicos, e v. religiosos.

Ora se faltar sentimento faltarão também os valores todos. Chamar um psicopata de amoral(8), como tantas vezes ouvimos, não esgota a somatória de anormalidades deste indivíduo, pois assim, como lhe falta a ética, para desenvolver uma regra moral, distinguindo a vivência(9) plena do significado de bem e de mal, faltam-lhe, também as demais três categorias. Imaginemos um psicopata que entre no Museu do Louvre, em Paris, e com uma faca destrua as pinturas que lá se encontram. Ficaríamos todos chocados. Ao transgressor isto será o mesmo que tomar um copo de água. Para ele não existe o valor estético. Ainda, imaginando que um físico genial dos nossos dias descubra a formulação da Teoria Geral do Campo Unificado, e que movido por grande emoção sofra um infarto do miocárdio fulminante.

Se um psicopata tiver nas mãos os originais destas equações, ele poderá destruí-las, não por gosto, porque psicopata não tem gosto, mas para zombar da humanidade e mostrar seu poder, sem nenhum remorso. Claro, ele não tem amor pelos valores lógicos (ou, epistemológicos se quiserem). Da mesma forma, poderá profanar templos de quaisquer religiões, pois isto nada lhe diz. Ele não tem medo de um castigo. Medo é uma emoção, e as emoções lhe faltam. Assim, este tipo de psicopata não tem sentimento de culpa. Em termos psicanalíticos, nele não se forma um Super-Ego. Bem diferente do assassino Raskolnikof do romance “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, publicado no século XIX. A tradução do título seria mais precisa como “Culpa e Expiação”. Nesta obra, o criminoso insuspeito corrói-se tanto de remorso pelo seu ato, e por dois longos anos, que resolve entregar-se às autoridades policiais confessando seu delito.

Do mesmo modo que o psicopata não tem sentimentos em relação ao Outro, também não os têm em relação a si mesmo. Lembro-me, neste sentido, de um matador em série, jovem que fazia ponto no Jardim do Trianon, na cidade de São Paulo, lugar tradicional de garotos de programa onde esperam seus clientes homossexuais. Este matador havia assassinado a facadas mais de uma dezena de clientes. Finalmente foi preso, e constatou-se ser um psicopata. Nesse caso o indivíduo não cumpre pena em Penitenciária, mas fica internado, por medida de segurança, em um Manicômio Judiciário. Era este seu caso e lá eu trabalhava. Certa vez o vi com um alicate nas mãos ensangüentadas arrancando seus próprios dentes. Quando lhe perguntei por que fazia aquilo ele respondeu que era só para ver até onde ele agüentava. Assim, do ponto de vista emocional, ao psicopata tanto faz ir ao homicídio quanto ao suicídio. Entretanto, mortos eles não poderiam exercer sua vontade de poder, por isso, é raro neles o suicídio.

Posso lhes garantir que estes jovens, moças e rapazes, que abalam a opinião pública com seus crimes bárbaros, são todos psicopatas (usuários ou não de drogas ilícitas). O verdadeiro psicótico (a loucura popular), raramente chega a este nível. A psicopatia não faz discriminação de idade, orientação sexual, raça, status sócio-econômico, grau de escolaridade, credo religioso, e por aí vai. Entre nós, os normais/neuróticos, e os francamente psicóticos, situa-se o psicopata. Ele não é um doente mental. O seu transtorno é quantitativo. Ele não apresenta um sintoma sequer. Claro, pois não tendo emoções, ele não sabe o que é sofrer uma ansiedade, uma crise de angústia, insônia, inapetência, depressão etc. Enfim, jamais procuram um psiquiatra ou um psicólogo. A sua recuperação é um constante desafio para nós clínicos, pois o psicopata não responde aos psicofármacos, e, se já entrou na adolescência, nem às psicoterapias. Podemos dizer, sem medo de errar muito, que o psicopata já adquiriu sua total anormalidade até, no máximo, os cinco primeiros anos de vida, e a leva para o túmulo. A incidência de psicopatia em famílias com psicopatas entre seus pares é maior do que na população geral. Também, o estudo de irmãos gêmeos univitelinos adotados quando recém-natos, e, sendo educados em meios totalmente diferentes, ambos desembocam na psicopatia. Mesmo assim, não abrimos mão da unidade nature/nurture na gênese da formação de sua personalidade. Há uns trinta anos, quando observava crianças pequenas matando o passarinho da casa, afogando o gato na piscina, trancando o cachorro no forno aceso do fogão etc., eram sinais promissores de uma psicopatia em formação e se expressando. Hoje, com o nível de violência em que vivemos no cotidiano, já estamos todos familiarizados a sinais como estes. E, se tais exemplos ocorrem, são por pura imitação. O que interessa identificar são os pioneiros, os pontas-de-lança, formadores de opinião, que impõem um novo modelo de conduta anormal. 

Se a psicopatia vem aumentando? _É claro que sim. Nossa atual Cultura Ocidental, como também a Oriental, é fábrica ISO 9000 de psicopatas. A deterioração dos costumes é fruto da perda dos Valores. Não só do indivíduo, mas muito mais dos grupos, que de grupo em grupo, vamos formando uma nova e mais desumana Cultura (compreendendo-a como o conjunto dos usos e costumes de uma população numa dada região e numa dada época). Se um pai de família, há muito desempregado, comete um assalto (roubo à mão armada) para levar comida a seus filhos menores, teremos que ter muito cuidado em identificar sua personalidade. Este indivíduo será necessariamente um sociopata? _Claro que não. Sua atitude pode ser a expressão de desespero dos desassistidos por este mundo afora. Certo é que nem todos os desempregados chegam a esse desfecho. Mas, aí entram os traços de personalidade de cada um, e que não precisam ser exatamente psicopáticos. Lembram-se do filme “Um dia de fúria” (Falling Down), dirigido por Joel Schumacher, com Michael Douglas, que num momento de grande sofrimento doméstico, ao longo de um único dia, surgem-lhe contingências tão adversas, que o personagem é por elas transformado num serial killer. É um bom exemplo acadêmico das chamadas crises psicopáticas, cometidas por alguém que não sendo um verdadeiro psicopata, mas um possível normótico “reagindo”, num evento episódico e isolado, como tal. Goethe dizia que nunca vira crime algum que ele mesmo não pudesse cometê-lo. Entretanto, ao que se saiba, não há notícia de que tenha cometido. O transtorno da psicopatia é considerado uma anormalidade, portanto, um fenômeno estatístico, vale dizer, o menos freqüente em relação à média de uma população geral. Porém, em meios específicos, como os do crime organizado, esta relação se inverte, e o padrão da Curva de Gauss mostrará que a conduta psicopática se torna a norma deste ambiente. Nestes casos, não é necessário que uma pessoa tenha passado por um início de vida psicopatizante. Estes seriam os “psicopatas primários”. Existem aqueles que são psicopatizados secundariamente, quando, ao longo da vida, e na microcultura em que se desenvolvem, imperam os fatores deformantes, em relação à macrocultura, do caráter de qualquer ser humano. É quando a chamada “crise psicopática”, há pouco assinalada, passa a fazer parte do cotidiano destes indivíduos. Este modus vivendi permanentemente crítico é incorporado como um padrão de conduta e traço de caráter definitivo na personalidade do delinqüente/vítima. Embora em tom de sátira e de exagero, o livro de Bret Easton Ellis, American Psycho, publicado em 1991, mostra a vida antropofágica, de tão competitiva, dos yuppies de Wall Street, que trabalham no ramo do mercado financeiro. Esta história virou filme, “Psicopata Americano”, lançado em 2000, que, diga-se de passagem, foi roteirizado com grande suavidade, pois no original as cenas de sangue e tortura gastam de duas a três páginas. Cito este exemplo, apenas porque mostra como uma Cultura específica se torna importante no desenvolvimento da psicopatia. Naquele terreno sem valores e só de frivolidades, basta uma pequena semente para serem moldadas demiurgicamente aquelas monstruosidades. Coloco no plural, pois não é somente o protagonista, Patrick Bateman quem dá nome à obra. Todos os seus colegas de trabalho foram contaminados pela deformação de caráter. Uns mais, outros menos, dependendo do limiar das tendências psicopáticas inatas de cada um. Nunca será demais lembrar daquelas crianças heroínas, que, por serem pequenas, conseguiam ultrapassar facilmente as estreitas aberturas dos porões onde se escondiam os partisans da Resistência Francesa à Ocupação Nazista de Paris. Elas, às escondidas, iam aos mercados públicos das ruas, e, num gesto de bravura conseguiam recolher alimentos, sem que ninguém as visse, especialmente os soldados alemães, para levar àqueles que tentavam proteger sua Pátria morando em fétidos subsolos. Pois bem, uma vez acabada a Guerra, de imediato, estas crianças foram condecoradas como Heróis de Guerra, por Charles De Gaulle. Ora, como elas só aprenderam a fazer esse tipo de atividade na vida, continuaram catando alimentos nos mercados. Mas agora, em tempos de Paz, virou roubo. Acabaram todas presas como marginais delinqüentes (sociopatas). 

Infelizmente, somente compreendemos razoavelmente bem como se desenvolve, primária e secundariamente, a psicopatia. O caminho inverso, teoricamente, pareceria simples, bastando inverter o sinal daquela via. Este seria o princípio diretor da Psiquiatria, do Sistema Penitenciário e da Febem em nosso país: a despsicopatização do indivíduo para a sua reinclusão na sociedade. Na prática este procedimento tem se mostrado inviável. Sua viagem é de mão única, pois a mesma sociedade que contribuiu para a sua anormalidade, agora queima-lhe os navios. (Situação esta semelhante ao que se faz com os alcoólatras crônicos). Muitos pontos poderiam ser levantados quanto ao resultado desta triste realidade, mas não cabem neste pequeno artigo. E não é só em terra tupiniquim que isto acontece, um bom exemplo encontramos nas máfias internacionais, sobretudo as italianas(10), que Hollywood tanto divulga.

O diagnóstico diferencial da psicopatia com outros transtornos mentais tem de ser muito criterioso, pois facilmente podemos ser ludibriados pelos psicopatas. Não por eles serem superdotados, como diz a lenda. O que se passa com a inteligência destes indivíduos é o fato dela ser sempre usada com 100% de rendimento. Eles não se afligem por nada, não existe neles o fenômeno da catatimia, que é a interferência da emoção sobre a razão. Quando, por exemplo, nos submetemos a um exame de seleção, é comum ficarmos a tal ponto ansiosos, que nos dá um “branco total”, e mal assinamos nosso próprio nome, isto é catatimia. O psicopata não conhece este tipo de reação, sua inteligência pode não estar acima da faixa da normalidade, mas ele sempre a usa in totum, parecendo uma pessoa brilhante. Um bom exemplo é dado por muitos de nossos políticos, que mentem e driblam seus perguntadores da maneira a mais cínica possível, sempre mantendo um sorriso nos lábios, e sem perder o fio da meada. Enquanto que outros, não-psicopatas, tropeçam na língua, ficam tão irritados ou angustiados que acabam se incriminando mesmo na inocência. Quanto ao uso, ou não, de drogas ilícitas, inclusive o livre e marketado álcool, é claro, temos que pesquisar em criminalística, e saber se a intenção de cometer o delito já existia antes do uso da droga. Se a intenção é anterior, a droga seria apenas um fator facilitador do procedimento da ação criminosa. Neste caso, a lei desconsidera alguma alteração de consciência pela química usada, pois o dolo já se caracterizava antecipadamente. Isto vale para psicopatas e não-psicopatas. No caso do psicopata, embora ele conheça as diferenças entre o bem e o mal, saiba o que é certo e o que é errado, pois tem inteligência para isso, este fator intelectual não o proíbe de cometer um crime, pois para ele nada significa afetivamente, seria o mesmo que distinguir sensorialmente o preto do branco. À psiquiatria forense cabe dizer que ele é semi-consciente pelo delito, à lei, que é semi-imputável, e do ponto de vista jurídico, que é semi-responsável pelo delito cometido, recebendo metade da pena e, como já dissemos, indo para um Hospital Psiquiátrico, sendo reavaliado de 6 em 6 meses, para contemplar a possibilidade do interno ser, ou não, readmitido na sociedade. 

Aqui entramos numa aporia, ou seja, num beco sem saída. Uma vez formada a personalidade do psicopata, primária ou secundariamente, ela se cristaliza, mostrando-se absolutamente refratária a qualquer tipo de intervenção terapêutica ou reeducacional de que dispomos no momento. Aqueles que acreditam na recuperação de um psicopata, mesmo diante destes fatos, se parecem mais a românticos sonhadores, que nunca se lambuzaram no convívio com esta anomalia, como nós o fizemos. Com todo o respeito aos psicanalistas competentes e sérios, mas chamar a psicopatia de neurose de caráter, não a torna uma categoria psicanalizável. Ora, como tratar uma neurose sem sintomas? Como tratar alguém que não tem angústia? Como se estabelecer a transferência para o tratamento analítico, já que ela é uma onda emocional que o analisando investe em seu analista, se ele não tem emoções? Eles não apresentam delírios, nem alucinações ou agitação psicomotora, portanto, os fármacos antipsicóticos de nada adiantam. Não conheço um psicopata sequer egresso da medida de segurança que não tenha reincidido no crime. Mesmo o menor infrator, que fica por conta da Febem, quase todos reincidem, embora, é claro, nem todos sejam psicopatas. Só pode ser incluído na categoria de psicopata se o indivíduo tiver inteligência nos limites da normalidade, se não houver qualquer tipo de lesão, ou antecedentes de doenças infecciosas, que tenham atingido o encéfalo (cérebro e demais órgãos nervosos no interior do crânio). Enfim, o diagnóstico é feito por exclusão. Quando nada orgânico for encontrado, e a conduta do indivíduo mostrar-se anormal por insuficiência de afeto, aí sim, pode-se incluí-lo nesta lista. Talvez, em um futuro próximo, este conceito ganhe novas luzes. 

Uma pergunta que costumava fazer aos psicopatas internos sob minha responsabilidade era: “Quando o senhor sair daqui irá matar novamente alguém?” A resposta: “Não seu doutor, de jeito nenhum”. Ao que eu retrucava: “E por que não?” Resposta: “Porque eu não quero voltar prá cá, não”. Fica claro que o assassinato de alguém não lhe faz a menor diferença, o que ele não quer é perder a sua liberdade. E, liberdade para exercer a sua vontade de poder, pois ele só não tem sentimentos, mas bobo que ele não é. Este poder fica claro nos matadores em série, o serialkilismo. Só matar suas vítimas não preenche o vazio existencial de um psicopata, que acaba caindo no tédio(11). Para fugir a este tédio, sua vontade de poder se volta ao desafio, em geral, à tentativa de humilhar a polícia que o persegue. Os serial killer sempre deixam pistas para acirrar os ânimos dos que o investigam. Um bom filme que mostra esta situação, sem dúvida, é “Seven – Os sete crimes capitais”, dirigido por David Fincher, e com a interpretação irrepreensível de Kevin Spacey como o psicopata John Doe. Por fim, o psicopata facilita de alguma maneira para ser descoberto e preso. E, numa epifania do macabro poder, conta suas proezas homicidas, num ato de vitória, subjugando as autoridades à imensa angústia da impotência derradeira. Entretanto, o tédio do psicopata será sempre o grande vencedor final. 

Como saber se o seu vizinho, ou o síndico do prédio, ou a namorada de seu filho são, ou não, psicopatas? _Com absoluta certeza não saberemos antes que um crime o denuncie. Em todo caso, ele poderá, às vezes, ser o popular “esquisito” ou “desequilibrado”; alguém cuja simples presença nos dá um mal-estar indefinido; alguém que pode falar da sua vida íntima, privativa do seio familiar, abertamente a qualquer um que encontre por aí; aquele que entrega a mãe, o pai, os avós, irmãos, amigos, para se safar de alguma banal penalidade, mas, acima de tudo, aquele que demonstra uma gélida incompaixão em relação ao próximo. Na dúvida, não queira identificar se a cobra é venenosa. Saia de mansinho, e não cruze seu caminho, pois, caso contrário, estará comprando um inimigo eterno que um dia o apunhalará pelas costas. Nesse sentido, uma analisanda certa vez chegou ao meu consultório transtornada, branca como cera, dizendo que só por um milagre seu filho não caíra no poço do elevador, de um andar alto que era o seu. Depois, mais calma, contou que um jovem de seu prédio novamente havia feito uma “brincadeira” de destravar as portas do elevador, mesmo ele não estando no andar. Seu filho, naquele dia, automaticamente abriu a porta e deu um passo no vazio. Por sorte, ainda estava com a mão no puxador da porta, e com o auxílio da mãe que o acompanhava, conseguiu segurar-se, dar um impulso com uma das pernas, e voltar a apoiar-se na soleira da porta. Ela disse-me que o síndico do prédio já havia repreendido este jovem condômino, que morava só com a mãe separada. Seu pai já havia ido ao prédio, com uma arma à mostra na cintura, e aos berros na frente do condomínio, queria saber quem estava querendo briga com seu filho. Vemos aí o forte componente familiar nas psicopatias. A orientação que dei foi a de não entrar em choque com esta família. Um mês depois minha cliente mudou-se. 

O que fazer, então, com um psicopata que cometeu um crime? Manter o que está estabelecido? Isto é, depois de recluso, se for aprovado no exame rotineiro de periculosidade, voltar à liberdade? _Não, pois fatalmente ele reincide. Além do que não temos como negar sua periculosidade, a não ser se tivéssemos uma pré-monição. Via de regra, o psicopata chega ao grave delito, e somente a partir daí temos uma grande probabilidade de inferir sua identificação. Infelizmente, esta seqüência temporal impede-nos de confirmar a suspeita de psicopatia preventivamente. E, ainda que o fizéssemos, não teríamos nenhum instrumento legal para coibir o crime que se avizinha. A ficção científica do excelente autor Philip K. Dick, “Minority Report – A nova lei”(12), que Steven Spielberg tornou filme, baseia-se nesta possibilidade: prender o futuro criminoso antes que ele cometa o crime, por meio de um sofisticado Programa Governamental Pré-Crime, que envolve a fantástica viagem no tempo. Mas, voltando à realidade, mesmo utilizando entrevistas clínicas rigorosas, os mais fidedignos testes projetivos psicológicos, eletroencefalogramas digitais, neuroimagens funcionais, exames bioquímicos, e algo mais, nada irá nos assegurar da recuperação de um psicopata. Examinemos outras opções. Mantê-lo excluído da sociedade, por medida de segurança, para sempre? _Seria inútil esta lei, ou, melhor dizendo, inviável. Eles são suficientemente espertos para fugirem, principalmente através do suborno de funcionários mais simples, ou matança dos mesmos. Isolá-los todos numa ilha distante? _Aconteceria o mesmo que na hipótese anterior. Além do que, em bando, eles comporiam uma força-tarefa invencível. Executá-los? _Para o bem da sociedade, sim. No entanto, sempre haveria o risco de um erro judicial. E mil culpados não valeriam a vida de um único inocente executado.

Assim como não sabemos, de início, exatamente o que leva alguém a tornar-se um psicopata desde seu nascedouro, também não sabemos o que propor para o seu fim. Entretanto, existe algo bastante perceptível a todos. Como a Cultura é indispensável para a formação e consolidação do caráter do sociopata, não temos o direito de nos furtar à parcela de responsabilidade com que cada um de nós, cidadão brasileiro, estamos contribuindo para a inscrição dessa obscena tatuagem social, que se esfrega, se esfrega, mas não lava. Seja ativamente, humilhando esses seres desviantes, que na sua grande maioria são excluídos da cidadania decente e digna, compromisso de um Estado de Direito, sendo eles alijados, como quando se lança a carga ao mar, para salvar uma embarcação do naufrágio. Se pouco podemos fazer ante os psicopatas primários, com forte carga genética para a impulsividade, a agressividade, a destruição e ao desamor, pelo menos, em relação aos psicopatas secundários, que vão sendo sociopatizados ao longo da vida precoce, na mais absoluta desassistência em todos os níveis, haveria muito por se fazer. Retomo a expressão “humilhando”, pois a nós, que escapamos da exclusão e da desassistência, ostentamos, com o nosso modo de ser, a privação pela qual eles permeiam. E, isto, no mínimo. Seja passivamente, ignorando, no ato da omissão, o fato de estarmos todos naquela mesma embarcação que está prestes a submergir. A imagem social é clássica, afunda desde a 1ª. classe dos poderosos e endinheirados, do último andar, até os ratos dos porões, que são muitos. Portanto, diante da psicopatia, se ela já está cristalizada no indivíduo, o prognóstico é péssimo, porém, aos nossos governantes, que estão nesta posição porque se propuseram a sê-los, cabe encontrar uma saída político-administrativa para estes excluídos. Quanto àqueles que estão em processo de formação de uma personalidade sociopática, temos nossa obrigação individual, cada qual no seu ofício, de mitigar esta ferida, estancando seu sangramento. A nação brasileira é muito criativa. Os outros povos costumam dizê-lo. E, talvez, seja verdade mesmo.

Neste nosso pequeno espaço de papel, o máximo que conseguimos fazer é lançar este apelo. Pois, uma vez excluídos da sociedade como medida de segurança, sua reinclusão, seja na família, no trabalho, na universidade, no clube social e esportivo, será sempre um risco de dolo presumido. Se pareço pessimista peço desculpas. Eu até acredito em milagres. Haverá de surgir um Einstein da neurociência que descubra, de início, o que falta àquele cérebro, para que no reaculturamento se recupere a dimensão humana daquele ser, que desgraçadamente desassistimos. A boa ficção científica de Isaac Asimov com suas histórias pioneiras sobre robôs se viu na obrigação de criar leis para estes homens-máquinas. Em 1942 escreveu suas Três Leis da Robótica, que foram publicadas em seu livro I, Robot (Eu, Robô), de 1950, que recentemente chegou às telas (2004), com o mesmo título, e na direção de Alex Proyas: "1ª. Jamais um robô fará mal a um ser humano, nem por omissão; 2ª. O robô sempre obedecerá as ordens de um humano, preservando a 1ª. lei; 3ª. O robô fará de tudo para manter seu bom estado de funcionamento, preservando as duas primeiras leis". Mais tarde foi acrescentada uma quarta, a "Lei Zero: Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal, nem permitir que ela própria o faça". Este algoritmo está inscrito naquilo que se costumou chamar de Circuito Asimoviano. Se este circuito faltar, teremos um robô sem leis (valores), paralelo quase perfeito com o psicopata. Quem sabe nosso Einstein invente um modo de introduzi-los nestes robôs e homens.

Quero chamar a atenção do meu leitor que não estou me referindo aos casuísmos contemporâneos sócio-econômico-políticos de exclusão/inclusão, mas de algo atávico, de profundas raízes históricas no tempo, que levou o escritor humanista alemão Sebastian Brant, em 1494, a publicar seu livro alegórico "Nau dos Insensatos" (Das Narrenschiff). Nesse texto todos os loucos da Terra embarcam nesta nau rumando para a "Bobagônia", o Reino da Loucura, e Brant critica a loucura de querer se fazer previsões sobre os destinos do homem. Esta grande embarcação era um depósito não só de loucos, mas criminosos, vagabundos, prostitutas, tudo enfim, que fosse indesejável à sociedade. Ela ficaria à deriva nos mares, proibida de atracar em qualquer porto do planeta. Portanto, nada mudou? _Talvez sim, em termos de tecnologia. Hoje alguém escreveria sobre uma grande astronave levando milhares de indesejáveis, humanos e subumanos, a povoar algum astro do firmamento. 

Pensando em termos de Humanidade e seu futuro, talvez, a Seleção Natural da Evolução Biológica seja a grande esperança de poder exterminá-los na fonte. Pode parecer curioso este pensamento, pois, à primeira vista, o psicopata teria a chance de sempre se sair melhor na competição com aqueles que têm sentimento, devido à catatimia. Entretanto, no acompanhamento de indivíduos com baixa inteligência emocional, apesar de um intelecto intacto, constata-se que acabam por tomar as piores decisões em suas vidas. Falta-lhes o feeling necessário para as prospecções de maior êxito, levando-os ao seu extermínio genético(13). Ainda mais, continuemos tomando como ponto de referência a Evolução Biológica para visualizarmos a relação entre a conduta do indivíduo e seu reflexo na espécie e no meio ambiente. Uma espécie como a nossa que está no pico da evolução zoológica, só poderá sobreviver à ação da Seleção Natural se houver co-laboração (trabalho em conjunto) entre seus indivíduos(14). O psicopata sem sentimento só desagrega, só destrói, impossibilitando o bom êxito colaborativo de sua espécie. Como já dissemos, ele será eliminado pela Seleção Natural, levando muitos consigo. Sua conduta será sempre o resultado final de sua contingência biopsicossocial(15). Assim, somos levados a pensar, que num grau mais elevado de Evolução, os psicopatas estarão em extinção, e esperar que o ser humano, bom por natureza e pelo ambiente que cria, esteja em franca proliferação. Efetivamente, estamos muito longe de atingir este nível evolutivo. Portanto, ser psicopata vai contra o Projeto Humanidade, que ele mesmo criou. 

Todo indivíduo cruel é necessariamente portador de alguma anomalia de personalidade ou transtorno mental? _Não. Partimos do pressuposto que o Mal tem substância própria, tem identidade definida, e não seja apenas a ausência do Bem. Na bipolaridade Mal-Bem, admitimos um continuum, como uma linha reta, que passando pelo ponto mediano, o 0 da escala, marcaria um tipo humano indiferente ou apático, nem bom nem mau. Existem indivíduos apenas “normóticos”, como todos nós, sem nenhum diagnóstico psiquiátrico, que têm sentimentos, e, portanto, escala de Valores – distinguem o Bem e o Mal, e que, mesmo assim, são molestos à sociedade. O injustiçado pensador Erich Fromm (1973) escreve: “Todavia, mesmo que uma compreensão melhor dos vários exemplos do comportamento (humano) destrutivo e cruel reduzisse a incidência da destrutividade e da crueldade como motivações psíquicas (de várias ordens de fanatismo), permanece o fato de que um número bastante alto de exemplos ainda fica para sugerir que o homem, em virtual contraste com todos os mamíferos, é o único primata que pode sentir intenso prazer no ato de torturar e matar” (p. 248). Matricídio, parricídio, filicídio, fratricídio, uxoricídio, são palavras que aparecem com extraordinária freqüência nos autos dos processos criminais dos psicopatas de qualquer lugar. A História Universal e as Escrituras do Monoteísmo são pródigas nestes exemplos. William Shakespeare – seja lá quem ele tenha sido de fato – foi absolutamente genial. Em uma de suas tragédias, diz em determinado trecho: “Eles eram mais do que inimigos, eles eram irmãos”. Esta questão levanta uma misteriosa complexidade:

O ser humano é bom por natureza? Ou, é mau por natureza? _Em se falando de Natureza, podemos aplicar o método explicativo científico-natural. Se o homem dependesse somente de sua biologia, como os animais não-humanos que estão geneticamente programados a obedecerem os algoritmos de seus instintos, não caberia fazer-se um juízo de Valor quanto ao seu comportamento. Não dizemos que a Natureza é boa ou má, porque produz tornados e terremotos, ou chuva e sol para as plantações.

Um Homo sapiens sapiens, que atingiu o grau máximo de sua humanidade (nem todos o conseguem) possui autoconsciência e consciência crítico-reflexiva interagindo com sua afetividade. Sua razão permite-lhe escapar dos comandos instintivos, mantendo-os sob controle. Seu cérebro cognitivo coexiste em harmonia com seu cérebro emocional (sistema límbico)(16). Assim, nossa conduta ganha em liberdade, e por ela teremos de responder eticamente. O desafiante filósofo australiano Peter Singer (1998), cita o eticista Joseph Fletcher, que propõe um curioso sistema de “indicadores de humanidade”, dentre os quais, escolhemos: 1. consciência de si mesmo; 2. autocontrole; 3. senso histórico, de passado e futuro; 4. capacidade de relacionar-se com os outros; 5. cuidado com os outros; 6. capacidade de comunicação através da linguagem; 7. curiosidade espontânea (p. 96). Singer apresentou esta lista de Fletcher numa tentativa de distinguir o animal humano do não-humano. Na Grécia Antiga, bastava dar a definição aristotélica: “O Homem é um animal racional”! Com Kant a frase teve uma mudança: “O Homem é um animal que nasce com a possibilidade de ser, um dia, racional”! Do ponto de vista psicossocial, encontramos sobejamente a maldade radical nos seres humanos, mesmo não sendo portador de nenhum transtorno psicofísico. A lei reconhece este fato, e diante de um criminoso consciente e responsável irá imputar-lhe uma pena integral, que o manterá preso em Penitenciária comum. A psicanálise costuma identificar estes seres como sádicos. 

Vejo-me obrigado a terceirizar o desfecho que procurava para essas minhas idéias. Valho-me do filósofo Denis Rosenfield (1988) que, com brilhantismo, assevera: “O homem é um esboço inacabado, talvez para sempre incompleto” (p. 150).

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