Corrupção: catalogar efeitos ou identificar origens? Quando tentamos investigar as possíveis causas da hemorragia da corrupção que, com tristeza e estupefação, obervamos na cena contemporânea de nosso país e, quando tentamos investigar as causa da existência deste perverso fenômeno, devemos ir um pouco mais além do que a mera catalogação de efeitos. A narrativa meramente censitária, a mera catalogação somativa dos eventos não poderão nos levar a uma compreensão mais radical deste fenômeno, tão presente na vida social de países subdesenvolvidos(principalmente) que, por razões que examinaremos a seguir, constitui-se, na maioria das vezes, de uma população impotente para erradicar este insidioso flagelo.
A democracia representativa como sistema, in abstrato, se constitui numa forma justa, eficaz e imprescindível para a vida social de um país. O representado(povo) tem acesso, através de uma procuração( a que chamamos simplificadamente de voto), a poder dizer o que quer, espera e deseja para si, sua família, sua cidade, seu estado, seu país. O representante(o eleito), de posse da procuração recebida, legisla tendo como télos (objetivo) a realização das aspirações do representado.
Esta descrição do eficaz funcionamento in abstrato do modelo da democracia representativa poderá parecer a alguns tedioso, a outros irritante e outros ainda como um ingênuo conto de fadas. O que estupefatamente observamos e vivenciamos em nossa “realidade cotidiana” é algo extremamente distante da eficácia descrita acima. Vemos desfilar uma coletânea infindável de atos imorais, negociatas, falcatruas, mentiras e toda sorte de ações abjetas, que trafegam na contramão da eticidade constitutiva do molde originalmente concebido.
Ao invés de efetuarmos a simples catalogação de efeitos e a mensuração censitária de eventos devemos tentar investigar um pouco mais a fundo a origem da possibilidade da corrupção. Não estaria ela na cisão, ocorrida entre o representado e o representante? Este, autocraticamente reescreeve o conteúdo da procuração recebida, passando então a legislar em causa de terceiros(não do representado), para benefício próprio. Creio que devemos identificar exatamente nesta cisão a origem da possibilidade da existência de atos e ações que chamamos de corruptas.
Mas, perguntamos então, como é possível a convivência com esta desastrosa e pacífica cisão entre representante e representado? Quando nos calamos frente a outrem é porque lhe supomos e atribuímos a posse de um Saber privilegiado. Nosso mutismo, a nível de palavras e ações é diretamente proporcional à extensão deste Saber, sempre atribuído (pois Sabemos desde a Psicanálise, com Freud e Lacan, que não há Lugar de Saber privilegiado, a não ser o Inconsciente). É devido a esta pseudo-posse de um Saber privilegiado, outorgado pelo súdito, que podereremos localizar as raízes profundas da hemorragia da corrupção.
A abstinência em perseguir, obter e exercer algum Saber, por parte do Súdito é a condição que permite ao Senhor ( o eleito) o exercício a partir de uma procuração, agora auto-instituída. Esta “ejaculação precoce ” (vivida a nível social) faz com que o Súdito acorra cotidianamente à mídia (escrita, mas preferencialmente vivida no espelho invertido que é a televisão).Esta, como superego fracassado do súdito, tenta em vão estancar tão perversa hemorragia, construíndo um dique composto por uma coletânea infinda de fatos e eventos. Aquí um Senador, alí um Ministro, acolá um Presidente, etc.
O Súdito tendo se auto-privado do acesso ao Saber, por ter feito a opção pela cômoda ” hibernação social “, espera agora do Messias eletrônico que ele lhe resgate a cidadania. Esta paupérrima álgebra serve apenas para sustentar um anacrônico subdesenvolvimento mental que se retro-alimenta. Esta impotência para a ação somente cessaria não a partir da narrativa e da denúncia de “fatos e eventos gerados pela corrupção”, mas a partir do abandono da cômoda posição adquirida em função da outorga deste “Saber privilegiado”. Somente a nossa condição de súditos e não de efetivos cidadãos é que permite sermos reféns de tão perverso processo.