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Carta ao Sr. Presidente da República



Carta ao Sr. Presidente da República


Carta
ao Sr. Presidente da República*

Rubem
Alves

Senhor
presidente: primeiro peço perdão por não estar familiarizado com as
etiquetas da corte.  Ilustríssimos,
excelentíssimos e magníficos tem, para mim, um cheiro misto de incenso
e humor.  A um moço que
o chamara de “bom“, Jesus disse: “Por que me chamas bom? 
Bom há um só, que é Deus”. 
Pois, entre nós, os homens de poder não se contentam em ser chamados
“bons”. “Muito bom” é pouco.  “Excelente”
não chega.  São “excelentíssimos”. 
Mas a verdade não cavalga reverencias. 
Assim, vou chamá-lo apenas de “senhor”. 
Imagino o seu sofrimento de sociólogo critico em meio a essas
palavras.

Segundo,
quero demonstrar minha admiração por sua coragem em ser presidente duas
vezes.  Confesso minha total
incompetência nesse campo.  Várias
vezes amigos tentaram me seduzir a me candidatar a deputado.  Em momentos de insanidade cheguei a brincar com a idéia. 
Mas me curei depois que visitei o Congresso. 
Meu horror foi total.  Um
prédio sem janelas!  Acho
que Niemeyer., amigo do cimento, inimigo das arvores, deve Ter projetado
aquilo de propósito, para enlouquecer os políticos. 
A posição máxima a que eu me candidataria seria a de “bobo da
corte”.  A esse propósito
vale a pena ler o ensaio do filosofo Leszek Kolakowski, “O sacerdote
e o bufão”.

O
senhor, é certo, não se esqueceu 
das lições de Durkheim, sociólogo amaldiçoado pelos marxistas.  Disse ele: “Uma sociedade não é feita meramente com a massa
de indivíduos que a compõe, o espaço que 
ocupam, as coisas que usam, os movimentos que fazem: acima de
tudo está a idéia que ela forma de si mesma”. 
Agostinho já tinha dito o esmo: o que forma um povo é um objeto
comum de amor.  Os socialistas
utópicos e Mannheim deram o nome de utopia a esse objeto social de amor:
uma esperança bonita que une as pessoas e faz com que marchem juntas.

 
Temos um povo?  Eu
penso que a tarefa de um líder político é mais que administrar: é criar
um povo.  Um povo se faz com idéias que dão sentido à vida em comum. 
Um povo se alimenta de utopias. 
“Não só de pão viverá o homem, mas de palavras…” Não temos
um povo porque a nossa gente parou de sonhar. 
E, ao parar de sonhar, não tem razões para pensar. 
Em vez de pensamento, programas do Ratinho, do Silvio Santos,
do Gugu e da Hebe, que têm preferencia 
absoluta em relação às declarações dos políticos, inclusive as
suas.  As pessoas não se
interessam por duas razões: por não entender e por não acreditar no
pouco que entendem.

O
senhor já se imaginou como pedagogo-mor, o mestre que dá sonhos e pensamento
ao povo?  Bachelard dizia
– e a psicanálise confirma – que só se convence “despertando sonhos
fundamentais”.  Sonhos fundamentais
são aqueles que moram na alma das pessoas e que foram enterrados no
esquecimento por sua sucessivas frustração.

 
Um líder é uma pessoa que vê os sonhos das pessoas e os transforma
em palavras e gestos.  Nele
o povo vê os seus sonhos sob a forma de uma pessoa. 
Assim aconteceu com todos os grandes lideres políticos.  Gandhi, com sua marcha do sal e sua mansidão. 
Kenedy, com seus sonhos de um progresso solidário que transformaria
o mundo.  Martin Luther
King: lembra-se do seu discurso “I have a dream”? 
E Hitler (o Diabo também produz lideres), que mobilizou um povo
com três ideais maravilhosas: limpeza, saúde e beleza.

O
pensamento vivo está ligado à ação possível. 
Pensamos para poder agir. 
O que está alem da nossa possibilidade de ação não é pensado. 
E o campo das ações possíveis das pessoas comuns é o 
espaço do seu cotidiano, aquilo que está ao alcance de suas mãos,
na casa, na rua, no bairro, na cidade.

O
senhor, ao se dirigir ao povo, fala sobre coisas grandes, programas
de governo, acordos com o FMI, estabilidade monetária, combate à inflação,
novos empregos, coisas muito boas – mas abstratas. 
Sonhos não se fazem com abstrações. 
Abstrações pertencem ao discurso dos sociólogos, economistas
e administradores – não entram no imaginário das pessoas. 
Seria bom que o senhor convidasse, como assessores, alguns poetas. 
O Manuel de Barros e a Adélia Prado, por exemplo. 
Quando eles falam, todo mundo se comove, porque os poetas têm
o poder de dar vida às abstrações.

As pessoas ouvem o líder quando ele fala sobre coisas que compõem o
seu cotidiano: o medo da violência (é inútil falar sobre a construção
de novas penitenciarias ou a compra de novos carros para a policia)
e aquilo que as comunidades podem criativamente fazer, a insegurança
quanto ao futuro, as crianças abandonadas que enchem as ruas, a saúde,
as filas nos hospitais, a velhice desamparada, a ecologia, a natureza,
a sujeira, o lixo.

 
Há uma poluição estrutural-empresarial, como a que aconteceu
na baía de Guanabara.  Mas
há uma poluição que resulta do fato de as pessoas acharem normal a sujeira. 
Jogar garrafas de plástico nas praias e no mar, jogar latas de
cerveja nas matas são, para elas, gestos inocentes e normais. 
As empresas que usam garrafas plásticas e latinas de alumínio
bem que poderiam fazer algo para educar o povo. 
A mídia, especialmente a televisão, poderia fazer muito mais
para ensinar o povo a sonhar e pensar. 
Escrevi carta ao Sr. Roberto Marinho e ao ministro da Educação
sobre o assunto, que foram publicadas pela Folha. 
Mas eles não deram sinal de vida. 
Espero que o senhor dê.

 
Como administrador, o senhor poderá fazer muitas coisas importantes
– o Plano Real, por exemplo -, umas boas, outras más, 
Não é possível acertar sempre, 
Mas, como mestre e como interprete de sonhos, o senhor poderá
fazer o que é essencial: criar um povo. 
Bonito seria que seu próximo discurso começasse como o de Luther
King; “Eu tenho um sonho…”.

*Texto
publicado em 1ª edição na sessão Tendências e Debates do jornal Folha
de São Paulo , do dia 21/02/2000


Rubem Alves
Educador, escritor e psicanalista.
Professor emérito da Universidade Estadual de Campinas.



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