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Construindo a Rede Rede de intervenção terapêutica: o encontro da humanidade do profissional com a humanidade do paciente.



Construindo a Rede

Construindo
a Rede

Rede de intervenção
terapêutica:
o encontro da humanidade do profissional
com a humanidade do paciente.

Como
psicólogo integrante do Programa de Especialização e Aprimoramento em
Saúde Mental do Conjunto Hospitalar do Mandaqui-CHM (Zona Norte da cidade
de São Paulo), faço parte da equipe profissional que presta atendimento
a pacientes psiquiátricos ou seja, pessoas que vem apresentando um sofrimento
mental de grandes intensidades.

Esse
relato refere-se a uma dessas situações de muita angústia, tanto para
o paciente quanto para a equipe, e a nossa tentativa de buscar uma “alternativa”
terapêutica.

Carlos,
de 17 anos, deu entrada no hospital com um quadro de agitação psicomotora,
auto e hetero agressividade, aceleração do pensamento, produção delirante
e alucinatória, tanto de cunho visual como auditivo. Precisou ser internado
para se obter a contenção necessária para a diminuição dos sintomas.
Era sua 2ª internação num intervalo de 6 meses.

foto: Klaus RudolphFoi
diagnosticado pela equipe como esquizofrênico; mais especificamente
com uma esquizofrenia hebefrênica. Após sair do quadro mais agudo deveria
ser encaminhado ao Ambulatório de Saúde mental do próprio Mandaqui.

Considerando-se
a realidade do quadro clínico que alí se apresentava, a história e as
condições de vida do paciente, os problemas familiares, o desenvolvimento
da patologia e a somatória das diversas limitações existentes, ocorreu
uma avaliação prognóstica muito ruim.

Seria
muito difícil tentar tratar esse rapaz para que ele pudesse retomar
a sua vida “normal”. Lembro-me da frase que ainda inquieta
minha cabeça: “O que podemos fazer?? Não somos Deuses” (Sic).

Recordo-me
que tive uma sensação de impotência perante aquelas falas da equipe.
E foi justo daí que se delineou uma pequena diferença. A diferença se
localizou entre a fala fria e simétrica da medicina e a afetividade
desconsertada da psicologia alí presentes.

Essa
situação fez com se despertasse em mim um certo desejo de iniciar um
trabalho psicoterápico.

Não
posso ser pretencioso, dizia pra mim mesmo. Tenho que considerar que
as condições são precárias. Não posso querer curá-lo, querer “tirá-lo”
da esquizofrenia. Seria arrogância. Mas também não posso ficar imobilizado.
Carlos é uma pessoa muito jovem para ser carimbado com um rótulo
de doente mental que funcione como um atestado de invalidez pessoal.

É
isso! Justamente por conta de todas as limitações já levantadas é que
Carlos necessita ser cuidado. É por conta disso tudo que preciso ter
para com ele um olhar mais próximo e afetuoso. Preciso me ocupar dele.
É preciso “ver” nessa pessoa a sua positividade.

Iniciei,
ali na enfermaria mesmo, juntamente com o médico residente, um trabalho
terapêutico que visava a saúde e não somente o controle da doença. O
quadro clínico, antes de mais nada, falava de um jeito dele de poder
ser. E isso era o positivo: um jeito de poder ser. Uma possibilidade!

Depois
de mais ou menos quinze dias e com a diminuição da produção psicótica,
melhorou um pouco o contato de Carlos com o mundo e as pessoas. Com
a melhora ele foi transferido para o Ambulatório para darmos continuidade
ao tratamento.

No
Ambulatório, além do trabalho individual comigo e com o psiquiatra,
Carlos passou a participar, três vezes por semana, do Núcleo Intensivo
para pacientes.

Foi
nessa etapa do tratamento, durante contato com a mãe, que tomei conhecimento
de maiores detalhes sobre a vida de Carlos. A mãe contou que anteriormente,
entre a 1ª e a 2ª internação, havia ido buscar auxílio numa clínica-escola
próximo à favela onde eles moravam pois já não sabia mais o que fazer.
Nesse momento senti que havia algum “vínculo” aí com essa
clínica. Mas a mãe continuava….e meus pensamentos se voltavam para
ela.

As
dificuldades financeiras eram tantas que às vezes não tinham dinheiro
para pegar o ônibus para vir ao Ambulatório. A mãe trabalha como diarista
e além de Carlos só conta com uma filha mais nova que toma conta da
casa como pode.

Percebi
então que o “vínculo” com a Clínica não era só da mãe de Carlos.
O “vínculo” era meu também! Ela falava da Clínica-escola onde
eu estudei, onde fiz meu estágio clínico na graduação.

Nesse
momento me ocorreu uma idéia. Tudo começou a se organizar! Poderia existir
um trabalho conjunto entre todos esses “agentes terapêuticos”
implicados com Carlos. Poderíamos juntos estar dando o suporte para
que uma “rede de intervenção terapeutica” pudesse funcionar.

Para
minha satisfação, na mesma época, a coordenadora juntamente com 2 estagiárias
da Clínica, entraram em contato comigo. Elas também estavam mobilizadas
nesse mesmo sentido. Sincronicidade ?!

Começamos,
após alguns contatos, a fazer esse trabalho conjunto. Carlos precisava
de um “passe livre” para poder tomar o ônibus de graça, mas
a mãe não conseguia agilizar isso. As estagiárias da Clínica conseguiram
trabalhar no sentido de que a mãe de Carlos obtivesse esse “passe”.
Carlos vem ao Ambulatório para suas consultas médicas, psicoterápicas
e seu trabalho no Núcleo Intensivo.

Conjuntamente
conseguimos a remissão do quadro agudo de Carlos e traçamos o projeto
de “sua futura volta à escola” e da “sua participação”
numa atividade dentro do Centro Comunitário lá próximo de onde ele mora.

Nosso
trabalho continua sendo o de resgatar a história de Carlos e fortalecer
as potencialidades que mesmo na esquizofrenia ele possui.

Essa
experiência nos mostra o valioso papel dos agentes de saúde e da equipe
transdisciplinar ao poder “dar um sentido” para que as instituições
locais proporcionem saúde ao invés de reforçarem a doença. Também nos
mostra a nossa possibilidade de solidariamente construirmos nossas “redes
de sustentação”.

É
lógico que não temos nenhuma garantia em relação ao desenvolvimento
da doença de Carlos mas estamos conseguindo, com esse campo de suporte,
construir um diferenciador: um sentido cidadão para a nossa existência.

*
PS.: por uma questão de proteção ao paciente o nome Carlos é fictício.

por
Denis Canal Mendes
Psicólogo e acompanhante terapêutico,
faz especialização e aprimoramento em saúde mental
no CHM-Conjunto hospitalar do Mandaqui,
faz pesquisa e intervenção na favela do Flamengo
(zona Norte de São Paulo) – atende em
consultório particular – fone (11) 6979 3855
[email protected]

Orientação: Rafael Tassinari


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