Covardia: Uma opção de morte ou impossibilidade de ser?
Covardia: uma opção de morte ou impossibilidade de ser?
por Mário L. Quilici
Uma mulher jovem, com 28 anos, cabelos negros e olhos também negros, rosto bem feito e esguio, me aguardava na sala de espera. Maria Célia era altiva, elegante tinha um andar extremamente sensual. Acendeu um cigarro, tragou duas vezes com elegância e apagou-o com graça.
Já na sala, onde faríamos a primeira entrevista, Maria Célia pareceu um pouco menos altiva. Os ombros baixos e o sorriso forçado estavam agora ocupando a cena. Deixei-a a vontade para falar sobre o que a trazia ali. Falou longamente sobre seu drama pessoal, um drama que atinge cada vez mais pessoas nos dias atuais.
Há pouco mais de seis meses, num exame de rotina, Maria Célia, havia descoberto que era portadora de câncer. Teve maus momentos, mas agora, parecia estar convivendo bem com seu drama pessoal. Mas não era exatamente isso que trazia Maria Célia para meu consultório. Estava ali por que muitos de seus amigos haviam achado que era louca. Mas por que? Bem, ela conhecera um homem há seis meses. De inicio nem se importara. “Ficaram”, como se diz hoje em dia. Mas o homem foi voltando e ficando. Maria Célia foi descobrindo que aquele era o homem com quem ela havia sonhado durante toda a sua vida.
Agora, exclamou ela, como se falasse com alguém que não eu. – Deus é absolutamente ridículo, exclamou antes de acender um cigarro. – Não poderia ser mais irônico esse tal de Deus. Veja você, eu encontro o homem dos meus sonhos, quando não mais posso ser o sonho dele.
Contou-lhe que era portadora de câncer. O homem não se importou. Queria casar com ela assim mesmo. Para que? , disse ela. – Para me chamar de cancerosa na primeira briga? Ela ficou em silêncio.
– E o que ele respondeu? Perguntei.
– Disse que eu era tola e que estava complexada por estar com câncer. Ele acha que estou dando espaço demais para a doença e esquecendo que sou um ser humano fantástico, cheio de qualidades e possibilidades. E que ele, está, justamente atrás de mim e não das minhas células cancerosas.
– E você?, perguntei novamente.
– Não sei. Fico confusa. Tenho medo. Faz uma pausa longa e acende outro cigarro que apaga após duas tragadas. Deixa-se desabar na poltrona. Algumas lágrimas caem e ela estende a mão para a caixa de lenços e pega um para seca-las.
– Por que é que essa doença é tão importante para você? Será que as pessoas que adoecem, perdem o direito ao amor? Será que perdem a condição de humanidade, a dignidade e o direito ao sonho?
– Você fala isso por que não é com você. Ah meu Deus! Eu nem sei o que estou fazendo aqui? É tudo inútil, acabou a vida para mim.
– Maria Célia, você sabe o que está fazendo aqui. Se está aqui, é porque acha que existe alguma coisa de sã em você. Existe um lado seu que percebe a enorme bobagem que está fazendo quando renuncia a um amor por causa de uma doença. Talvez a doença seja justamente isso, um pedido para que você mude, busque um amor e cure-se. Você veio aqui para eu descobrir com você o foco de esperança que existe em sua alma. Foco que você não consegue encontrar. Você está morrendo de medo de perder seu amor, não é?
– Estou. A voz sai num fio. Maria Célia continua em silêncio.
– Mas eu acho que você tem razão numa coisa, digo a ela. Se ficar pensando no câncer que está no seu corpo, você não vai poder faze-lo feliz. Vai estar sempre triste, magoada com a vida, com Deus e com você mesma. Então você perde a criatividade que são aquelas possibilidades de transformar as coisas tolas do dia a dia, em momentos únicos de encantamento. Se pensar só no câncer vai dar a ele o papel principal na sua vida e ele tem um papel secundário. Há muito mais em você. Não há?
– Mas é tão difícil deixar isso de lado… Parece que a gente está estragada, suja. Não dá para fazer o outro completamente feliz porque você não pode representar um futuro para ele. À todo momento eu penso nisso. Fico apreensiva, angustiada. Sabe, eu queria me dar inteira, deixar-me levar por completo. Planejar meu futuro com a certeza de que ele seria realizado. Nessas condições eu confesso, não sei….
Verifiquei o nível de informação que Maria Célia tinha sobre as possibilidades de tratamento da doença. Estava muito bem informada. Seu parceiro, um homem inteligente, também estava bem informado. A única indicação agora era: uma psicoterapia. Não tinham o que temer, só tinham que viver seus sonhos mas Maria Célia tinha medo, estava acovardada. A experiência do amor, de ser profundamente amada pelo homem dos seus sonhos estava ali. Ela queria viver a grande experiência, mas tinha medo. Isso fazia com que tremesse de medo e fraqueza. A doença era um ótimo artifício para que ela se mantivesse sem pode realizar essa experiência.
Vi muitos doentes de câncer e também de AIDS e outras doenças crônicas, que usam suas enfermidades para evitar a experiência do amor. Acredito que a doença aparece diante desse comportamento psíquico. Maria Célia estava evitando o encontro verdadeiro e honesto com seu namorado. Era pretensiosa, tinha que chegar com o melhor de si, estar por cima. Não podia aceitar o apoio do outro e então dividir com ele o peso que era tão difícil de ser carregado por ela sozinha. Encapsulada, ficava só consigo mesma e privava o homem de usufruir as coisas que ele amava nela.
Isso não é amor. É covardia. Encontrar o outro sempre gera ansiedade porque há implicações sérias quando temos que abandonar nossa individualidade. O amor implica na ruptura de barreiras do ego para que nos tornemos receptivos e, de certa forma, invadidos. Inundados. A sexualidade é uma auxiliar do amor, é sua melhor forma de expressão. É um instrumento para que possamos ultrapassar nossos limites e realizar a unidade.
Maria Célia delimitava seu espaço e isso, em si, era a loucura. Usou a doença para concretizar seu drama psíquico, mas seu namorado, desafiou os limites dela. Isso a deixou tonta, assustada, com medo. Havia amor ali e isso, ela não poderia suportar. Era pura covardia.
Quando falamos da história de Maria Célia, não falamos de uma pessoa e uma doença, mas de um mundo de pessoas com um mundo de doenças que ainda não apareceram, mas estão implícitas no comportamento de todos nós. A covardia é um mal do homem e para essa afirmação, creio eu, existem pouquíssimas exceções.
O motivo de o homem ser tão naturalmente covarde e não ter autoridade é por ter sido criado de forma onde todos os significados dele, foram introduzidos nele, vindos de fora. Através da relação do homem com os demais à sua volta. Nosso mundo de certo e errado, bom ou mau, nosso nome e tudo o mais, é enxertado em nós e assim, nunca nos sentimos à vontade para oferecer nossas coisas ou brigar por nossos valores, pois, não os criamos ou construímos. Apenas absorvemos.
É por isso que em muitas situações, as pessoas ouvem determinadas noticias e ficam temerosas, angustiadas, perseguidas. Não podem pensar e, como fizeram durante toda a vida, absorvem o que lhes é dito como verdade, sem questionamentos. Questionar é ter coragem.
Muitos homens, por não pensarem ou construírem idéias próprias, não podem perceber suas mais elevadas possibilidades (e também as mais baixas) e assim, furtam-se de conhecer sua grandeza ( e também a sua pequenez). O homem tem medo da experiência do divino que existe dentro dele. Medo de ser dilacerado, destruído por ela. Por isso, foge de seu próprio crescimento. É melhor pensar e ser como a maioria, evita conflitos, não se perde a admiração daqueles à nossa volta. Afinal precisamos da admiração alheia quando não sentimos nenhuma por nós mesmos.
Por exemplo, muitos de nós, ficamos paralisados quando temos que dizer não a alguém. Tememos magoar o outro, ofende-lo ou, pelo menos, é o que dizemos para justificar nossa impossibilidade. Entretanto, creio eu que dizer não, ser honesto, é vivenciar uma experiência afetiva e de troca com o outro. É abrir um espaço para a entrada do outro. É aparar arestas e envolver-se. Quando dizemos o que pensamos, damo-nos a conhecer. Mas nós, preferimos pensar que poupamos o outro quando na verdade, só nos poupamos da experiência de contato.
Algumas pessoas, para evadirem-se do próprio crescimento, estabelecem níveis muito baixos de aspiração (ou muito altos), evitam fazer aquilo de que são capazes, preferem parecer burras, usam da humildade simulada e da cegueira para não crescer, não se envolver com situações ou pessoas.
Tudo se reduz, no final, a uma simples falta de vigor para viver a experiência de contato, da integração. Então as pessoas ficam acovardadas e magoadas e doentes.
Lembro-me de um rapaz jovem que cuidava de sua mãe, seus irmãos e seus sobrinhos. Todo o seu ganho era drenado para garantir o bem estar daquelas pessoas. Ele não ousava questionar e aceitava aquelas condições como naturais. Teve um câncer. Ficou enlouquecido. Durante nossa conversa, ele me dizia que aquilo não poderia ter acontecido. Agora, ficaria tão mal que não viveria muito. Ficava em pânico só de pensar que poderia dar trabalho a alguém.
Perguntei a ele que diabo de amor era aquele que sentia pelas pessoas à sua volta. Cuidava de todos, mas não poderia ser cuidado num momento de impossibilidade pessoal? Será que ele não odiava as pessoas, pois ao não se permitir receber cuidados e ser ajudado, deixava-as todas castradas, impotentes, assim como ele estava naquele momento, quando todos os seus ganhos iam para eles
No final, o que se pode constatar é que temos medo da felicidade. Até mesmo o nosso conceito de felicidade é emprestado dos filmes de Hollywood. Nossa covardia não permite que vivamos a experiência de desvendar o outro e ser por ele desvendado. Criar vínculos sadios e transformar nossa vida numa constante vertente de experiências grandiosas que só o relacionamento honesto com as pessoas podem permitir.