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Estela Mara Rabelo






Estela Mara RabeloEstela Mara Rabelo
Psicóloga pela UNESP- Assis
Estágio em Trieste – Itália /1995
Estágio em LA Borde – França /1996
Psicóloga do Hospital do Juquery e Acompanhante Terapêutica


Consultório Rua Antônio Guganis, 59 Santana
Fone: 6971 0041 Bip: 253 4545 cód. 31289
e-mail [email protected]


REDEPSI:

Você esteve em Trieste na Itália, fazendo um estágio. Como foi esse percurso?
Estela: Bem, tudo começa com um professor meu, o William. Ele começou a levar a gente para um grupo composto de professores que estudavam a esquizo análise e o Deleuze. Era um pessoal interessado na questão manicomial. A Bebel, uma das integrantes do grupo, já tinha ido a Trieste, e tinha conhecimento do que era a questão do Basaglia e, a partir daí, estavam questionando o tratamento dado à loucura em nossas instituições. O fato de saber que os pacientes psiquiátricos ficavam presos, eram mal tratados, coisas que a gente via na mídia durante todo o tempo, já me impressionava. Então através desse grupo, comecei a estudar Guatarri, e achei interessante as possibilidades que ele abre para o entendimento das relações de poderes no mundo e particularmente nas instituições.


Castelo de La BordeQuando estava no quinto ano de faculdade, escrevi uma carta para Trieste. Na época, estava interessada nas experiências que os CAPS estavam desenvolvendo em São Paulo. E Em Santos havia assistido a uma palestra de uma jurista italiana que falou a respeito dos manicômios judiciários e das dificuldades que eles estavam enfrentando. Isso motivou ainda mais o meu desejo de conhecer de perto o trabalho desenvolvido na Itália. Então, nesse período, quando eu voltei das férias de julho, resolvi escrever para Itália. Eu queria passar um mês lá. Mas não recebi resposta alguma. Me formei e vim para São Paulo. Entrei em contato com o Paulo Amarante, que é um psiquiatra do Rio de Janeiro (da Fiocruz) e estava coordenando projetos na área de pós graduação em Saúde Pública. Ele tinha ido para Trieste, escreveu sua tese de doutorado e lançou dois livros sobre o Basaglia. Entrei em contato com ele para conseguir orientação sobre como chegar a Trieste. Ele me estimulou e mandou um fax para a Itália, dizendo que eu estava a caminho. Fui. Cheguei lá e eles não sabiam nada sobre minha ida. Mencionei o Paulo Amarante. Eles continuaram sem saber de nada, eram muito desorganizados. Então, para encurtar, eles disseram: “Já que está, então fica”. Foi assim que aconteceu, então fiquei. O Mário Realli que era o meu coordenador de estágio falou: “Bom o que você está fazendo aqui? Respondi que tinha ido para o estágio. “Alguém tá sabendo aqui?, ele perguntou” Mostrei o fax que era endereçado à Claudia. “Ele então respondeu” “Já que está aqui, então trabalhe”.


Tive reunião com o Realli naquele mesmo dia e ele determinou de imediato um lugar, que tratava-se do resquício manicomial que ainda existia na instituição. Comecei nesse mesmo dia. Me levaram para um alojamento onde ficavam os estagiários que era o pavilhão M. Naquele andar ficavam os voluntários e alguns pacientes.. Na residenza E, onde comecei, conheci Patrícia, uma psiquiatra argentina, e uma outra psicóloga Débora, também argentina. Elas estavam tentando fazer um trabalho com os funcionários e com os pacientes. Trieste / 1995 - Residência Era uma tentativa de dar maior liberdade, maior autonomia para aqueles pacientes, mas, estava bastante complicado. Elas tinham grandes dificuldades por que o estagiários que iam para lá, já estavam em época de ir embora. Como eu estava chegando, fiquei com elas. Fomos desenvolvendo um trabalho de AT (Acompanhante Terapêutico). Isso implicava em acompanhar os pacientes em um passeio pela manhã, e ajudar algumas pessoas que tinham dificuldade de comer e de se cuidar. Ajudávamos os auxiliares a fazerem esse trabalho. Tínhamos treze pacientes. Esses pacientes eram mais comprometidos e ainda residiam no local.


O trabalho consistia em leva-los para fora da instituição na praia, sorveterias e cafés da cidade. Fiquei um mês fazendo isso e depois, consegui um acompanhamento terapêutico de uma paciente (Aurélia) do Centro Donna, que era o Centro de Mulheres. Tratava-se de uma paciente esquizofrênica que havia estado durante muito tempo na enfermaria. Eles estavam tentando, naquele momento, fazer com que ela pudesse morar num apartamento sozinha. Mas, para isso, ela precisaria de acompanhante em período integral. Então eu buscava a Aurélia no Centro Donna, levava para casa , para o cinema, ou qualquer outro programa. No dia seguinte ela voltava para o centro Donna.


Fui desenvolvendo esse trabalho, e ela criou um vinculo legal comigo. A diretora do Centro Donna, que era uma psiquiatra, pediu para que eu trabalhasse com Aurélia lá mesmo. Eu deveria fazer o trabalho de AT e, paralelamente, desenvolver um trabalho com ela no Centro.


Parque San Giovani - Hospital Psiquiátrico (Trieste, Itália)Além de Trieste tive uma experiência em La Borde, que possibilitou compreender a importância de se “garantir” o dia seguinte do psicótico, através, por exemplo das atividades diárias. Lá, existe uma atividade que se chama “la feuille de jour” .É um cartaz que se faz diariamente por monitores e pacientes, onde se escrevem todas as atividades que ocorrerão no dia seguinte e este espaço dá direito ainda a um lugar de expressão, isto é, quem quer que seja pode deixar um recado, uma mensagem ou qualquer outra modalidade de expressão que se queira.


Quando penso no Juqueri, onde trabalho hoje, remeto-me sempre a uma história que um monitor de La Borde contou comparando as possibilidades que a “feuille de jour” pode oferecer-nos: Uma passagem de um texto teatral francês que narra a trajetória de um geógrafo que queria entrar para Academia de Cartógrafos e para isso criou um país, que não existia e saiu mundo afora divulgando os encantos desse lugar. As pessoas que ouviam, interessavam–se por conhecer este “Eldorado” e foi tanto o desejo de ali viver que acabou-se por fundar este lugar que não existe. Penso que é esse o movimento do nosso trabalho.


REDEPSI: Hoje, você que teve uma experiência de primeiro mundo com essa questão da psiquiatria e está envolvida em um outro trabalho, que é no Juqueri. O que se comemora nesses cem anos? E qual seu trabalho hoje, na instituição?
Estela: Eu preferiria falar em comemorar a existência daqueles que lutaram e sobreviveram mesmo com todas as dificuldades da instituição. Quando cheguei lá, procurei a diretora para saber quais os lugares onde eu poderia estar atuando. Ela descreveu cada um dos espaços do Juqueri e falou da ala feminina. Lá uma psicóloga estava desenvolvendo um trabalho de reinserção de alguns pacientes que já estavam freqüentando o centro integrado. O centro consiste no ensino de artesanato. Havia uma única psicóloga até então. Ela estava fazendo um esforço no sentido de reabilitar as pacientes para que elas pudessem reiniciar seu convívio com o mundo de fora. Abria as portas para que elas saírem. Algumas mulheres acabavam fugindo. Mas a psicóloga persistiu mesmo assim e insistia em abrir a porta e fazer com que essas pessoas pudessem circular. Maria Aparecida Dias - Prédio do Museu Osório César, 1989


Eu achei que existia um espaço para desenvolver algo junto com ela. Mas não era claro ainda o quê. Há muita indiferença na instituição, ninguém quer saber, nem te olha, a não ser as próprias pacientes. Estas querem te ver, querem falar, frequentemente , todas ao mesmo tempo. Uma delas se aproximou de maneira que me chamou a atenção. Ela tinha uma série de coisas nos bolsos. Pegava tudo quanto era trapo que descobria e colocava na cabeça, no pescoço e dentro do vestido. Tinha também uma boneca dentro da roupa que ficava com a cabeça para fora, que ela chamava de Madonna. Ela me apresentou cada uma de suas conquistas (trapos, pedaços de jornais etc) e também me apresentou suas companheiras. Depois abriu uma caixinha de fósforo cheia de pedrinhas sujas. “Bom, o que é isso?”, pergunto. Ela responde: “Rubis e diamantes”. “Rubis e diamantes?, perguntei. “É, são rubis e diamantes” E onde você consegue esses rubis?, perguntei dando continuidade à conversa. “Aqui tá cheio”. Onde? E eu não conseguia ver. Ela movia os braços numa tentativa de mostrar-me. Onde estão? “Olha só, aqui, no chão. Sempre tem, tá cheio de pedras preciosas no chão do pátio”,


Observei que, se ela consegue ver pedras preciosas nesse pátio, mal cheiroso, onde as pessoas vivem em desalento, e eu não conseguia ver isso, como poderia cuidar dela? Como poderia ajudar? Foi acreditando que ao ouvi-las é que a gente aprende o que fazer, pois eu não sabia. Então eu tentei de todas as maneiras compreender como funcionava o espaço clinico. Observei que não havia esse espaço; uma clínica do Juqueri. Era importante descobrir as demandas deste “espaço clínico”. Não existia equipe multidisciplinar. Enfim, minhas primeiras semanas foram de conhecer os pacientes e os profissionais que trabalhavam e o que era desenvolvido na instituição e depois, pensar no que eu teria que criar.


REDEPSI: E o que é que você teve que criar?
Estela: Olha, o trabalho é o seguinte. Você encontra os olhos da paciente nos seus e então pergunta: O que fazer? Um ser humano ali, trancado, com toda uma história de vida. Meu trabalho é ajudá-las a resgatar sua história, encontrar o sujeito a partir daí. Tentei colocar em prática o que aprendi na minha experiência em Trieste e La Borde. As condições eram desfavoráveis, mas tive que tentar. Saíamos para fazer passeios e tínhamos que nos esforçar para que todos permanecessem juntos. Elas não estavam acostumadas a isso. Esse trabalho nos ajudou a conquistar um espaço, criar mecanismos e ferramentas de convivência e reabilitação. Não há preparo nem condições de espaço físico para a realização das atividades, trabalha-se nos corredores, na sala da atendente, no pátio.Ubirajara Ferreira Braga - O Hospício, 1992


O objetivo era inseri-las num outro processo, uma revisão crítica das práticas institucionais. Ou seja, não. é porque a paciente quer uma coisa que não pode ter e começa a gritar, que a gente vai amarra-la na cama, colocá-la no pátio como forma de punição. Procura-se outras formas. Sempre encontra-se. Os médicos quase sempre não sabiam o que fazer e então, não faziam nada. Isso tudo me levava a pensar qual a melhor forma de aproveitar estas informações e experiências para tentar montar um espaço para se viver. Qual a rotina que se pode oferecer a estes pacientes? Sozinho, o profissional não faz nada. São mais de cem pacientes. Uma parte sai de manhã e volta à tarde, outra parte fica numa sala com as auxiliares e a T.O.. Restam cerca de quarenta pacientes. Estas não haviam ainda sido inseridas nesse projeto. Tratam-se de pacientes mais comprometidas.


Então estar sozinha com quarenta pacientes é complicado. Surgem perguntas como resolver isso? Ai foram aparecendo pessoas, que queriam fazer voluntariado. A instituição abre as portas e os voluntários vêm. Em geral são estudantes de psicologia.


REDEPSI: Como é que funciona o voluntariado?
Estela: Começou na experiência, depois foi oficializado. Essas pessoas começaram a me procurar, e nós estamos precisando de mais gente para dinamizar o trabalho. Eu acredito no estagiário. A gente pode oferecer algum estudo, coisas que eu aprendi e posso repassar, ou referências para discussão, além de tentar oferecer um trabalho. Hoje são cinco estagiários.


REDEPSI: São remunerados?
Estela: Não, com vinculo de estágio não remunerado. O que nos interessa é a disponibilidade que a pessoa tem. O estagiário tem o ganho teórico e pratico.


REDEPSI: Qual o trabalho que eles desenvolvem?Maria Aparecida Dias - Sem Título, 1997
Estela: Eles desenvolvem um trabalho de acompanhantes terapêuticos, com pacientes que tem dificuldades de estar em grupo. Alguns projetos para a criação de grupos de jardinagem, contadores de histórias, trabalho com sucatas, já foram propostos. Nossa realidade não é de primeiro mundo, temos que lidar com o que temos e usar a imaginação. Os atendentes estavam acostumados unicamente a levar a paciente para o médico e servir as refeições e nenhuma outra função no tratamento destas. Agora, estamos tentando criar algumas formas de atuação desses funcionários na área recreativa, mas nem todos estão disponíveis.


REDEPSI: É complicado trabalhar com esse pessoal, que já tá hospitalizado?
Estela: Sim, é claro que é. Trata-se de um trabalho difícil pois, sabe-se que muitos pacientes vão ficar lá, dentro da instituição sem poder sair. Nós temos que pensar uma maneira de criar uma estrutura para preparar uma nova forma de atendimento. Isso implica em conversar com cada funcionário, faze-los parte integrante desse processo. Os funcionários, quando são considerados com suas idéias e opiniões, surpreendem-se. Aliam-se à nós. Talvez mais tarde possamos ter condições de preparar os pacientes para viverem por sua própria vida com ou sem seus familiares.


Para os funcionários era difícil lidar com técnicos que iam e vinham. São poucas as pessoas que vão ao Juqueri e permanecem lá construindo um trabalho. Hoje já temos uma equipe que tem essa disponibilidade, vamos construindo.


No que diz respeito aos pacientes, temos um trabalho intenso. Por exemplo, uma vez saímos para uma exposição no SESC. Nessa ocasião os pacientes puderam ir ao restaurante, escolher a comida, o refrigerante, a sobremesa etc. Puderam experimentar o ato de fazer uma escolha. Nós participamos de tudo com eles, todo mundo integrado, vivendo as experiências juntos. Foi muito legal. A gente conseguiu resgatar a integração até entre os próprios pacientes. No ônibus vinham cantando, olhavam para o mundo de forma diferente. Da janela do ônibus apontavam e liam cartazes.


Estamos também fazendo algumas coisas junto às assistentes sociais no sentido de resgatar as famílias. Algumas pessoas ficam muito mal, ficam tristes ou entram em surto por questões de abandono. É difícil lidar com o fato de que as famílias as deixaram lá. A idéia é tentar criar uma ponte com estas famílias, porque muitas abandonam os doentes com medo de ter o problema de volta.


Nota: as ilustrações fazem parte da exposição/ livro “Juquery: encontros com a arte”, com trabalhos dos pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery.

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