O Amor Por que é que dentre milhões de pessoas, apaixono-me por apenas uma?
por Mário L. Quilici
Algumas pessoas tem escrito e solicitado que façamos um artigo sobre o amor e o companheirismo. Na tentativa de atender essa solicitação, sentei-me diante do computador e me preparei para escrever. Pensei em começar escrevendo sobre o Mito de Eros e Psiquê. Desisto. Começam a surgir inúmeras questões. Então, mais uma vez me pergunto: o que é de fato esse tal de amor? Muita gente fala de amor como se fosse uma coisa banal, simples, sem qualquer complicação. Curiosamente mantêm-se essa crença mesmo sabendo que nada fracassa com tanta regularidade quanto o amor.
Na tentativa de responder a essa questão, me ocorre um texto de Roland Barths (Fragmentos de um Discurso Amoroso). Num dado momento Barths faz a seguinte pergunta: Porque é que dentre milhões de pessoas, apaixono-me por apenas uma? Logo mais à frente , o autor responde: É que encontro na pessoa por quem me apaixono a peça do quebra cabeça do meu desejo.
Acho que essa colocação de Roland Barths define bem claramente o amor. Cada amor é uma peça do quebra cabeça de nosso desejo. Um desejo desconhecido, implícito, escondido sob o véu opaco do inconsciente. Podemos estar num jantar, num passeio pela rua, num cinema e, ao nos depararmos com um olhar, num repente, magicamente somos pegos. Ficamos inundados por uma sensação que não sabemos definir, mas sabemos reconhecer. Muda tudo em nossa vida. Diferente dos dias anteriores, as coisas à nossa volta ganham colorido e brilho. Brotam esperanças diante das expectativas. Química fantástica essa.
Como explicar esse desejo? Para iniciar vamos lançar mão de uma passagem brilhante de Sigmund Freud. Trata-se de "Inibição, Sintoma e Ansiedade" (1926), onde há uma passagem que sempre exerceu uma grande influência sobre mim, pelas repercussões notáveis que ali são concedidas à condição humana. Não vou fazer a transcrição literal apenas um comentário. Freud falou sobre o extenso período em que os recém nascidos da espécie humana se acham em condições de desamparo e dependência. O bebê humano chega ao mundo em condições de inconclusão. Como resultado disso, se intensifica a influência do mundo exterior e real sobre o bebê. Mais ainda, os perigos externos que se aproximam do bebê são de tal magnitude que a mãe, o único objeto capaz de oferecer proteção contra os riscos e parecer um substituto da existência intra-uterina prévia, cobra um preço muito alto. Ao fator biológico se devem, pois, as situações precoces de perigo e é neste fator que se origina a necessidade de ser amado que acompanhara a criança durante toda sua vida.
Como se pode ver a nossa necessidade de amor começa muito cedo, justamente quando tomamos consciência de que somos uma entidade separada da mamãe (no útero éramos um com ela) e não temos como sobreviver sem ela. A consciência da separação é uma grande fonte de ansiedade. A única forma de soluciona-la é pelo amor. Devemos considerar entretanto que é na interação com a mamãe, que vão nascer os padrões de comportamento que no futuro, determinarão a forma como conduziremos nossa vida afetiva. Para complicar, mais tarde, tomamos consciência de nossa finitude. Teme-se a futilidade da vida. Isso gera grande angústia. O homem percebe, ainda que na maioria das vezes não se dê conta disso, que nasceu sem ser por sua vontade e que vai morrer contra sua própria vontade. Essa percepção de sua impotência mais a consciência da separação e consequentemente de sua solidão, criam no homem um desejo de libertar-se através da união com outro ser humano: é a isso que chamamos de amor.
A partir daí surgem várias formas de amor. Falar de todas poderia levar horas e por isso vou agrupá-las em duas formas específicas: Numa temos uma forma de amor a que vou chamar de complementar e noutra temos o que eu chamaria de amor maduro. Nos dois casos o outro é percebido como a peça do quebra cabeça do seu desejo; a possibilidade do reencontro, da unidade e da libertação. No entanto, é essa mesma noção de reencontrar no outro o nosso desejo que nos conduz à explicação do fracasso amoroso.
Para entendermos melhor, vamos ver as duas formas de amor. O amor complementar, que é o mais comum nos dias de hoje, é aquele que nasce a partir da expectativa de que o outro, possa preencher nossas faltas, diminuir nossa dor. O bebê humano sabe o que lhe falta quando a mãe falha. Tais falhas da mãe vão criando uma espécie de sonho, um ideal de mãe que, mais tarde, transforma-se num ideal de amor . É esse sonho que vai determinar o amor que desejamos. Idealizamos o amor antes mesmo de encontrá-lo. E o encontro nada mais é que um reencontro com nossas expectativas: a de que o outro possa resolver nossas faltas. É por essa razão que o amor só é possível se o outro, o nosso objeto de amor, for idealizado. O outro é recebido como o realizador. Danou-se. Cria-se nesse tipo de relação o amor espiritual, algo que transcende ao desejo carnal justamente por que o objetivo é a resolução de problemas emocionais infantis e não um relacionamento com o outro. O tesão, na maioria das vezes ocorre pela angústia e não pela erotização, propriamente dita.
É a partir desse raciocínio que surgem aquelas relações que tanto nos surpreendem. O homem que agride sistematicamente sua esposa durante anos a fio e ela em vez de retirar-se, justifica-o e com ele permanece. O obsessivo que fica apreensivo para obter a certeza de que é amado na mesma proporção em que ama. O histérico que comunica-se através das doenças onde chantageia o outro que permanece atado pela culpa. Todos estão buscando complementação, ou seja, aquela "forma de amor" é necessária, desejável.
Lembro-me de uma paciente que estava casada com um homem que procurava destruí-la sistematicamente. Se ela comprava um vestido novo e sensual, ele dizia que parecia com uma puta. Se comprava uma roupa mais sóbria, dizia que se parecia com uma velha. Tudo funcionava assim naquele casamento de dez anos. Ela então me perguntava: onde é que estava errando já que não conseguia conquistar o homem? Mostrei-lhe que ela havia feito um casamento homossexual, casara-se com a mãe. Logo mostrei-lhe que a mãe não deixava-se conquistar. Mostrei-lhe também que a louca era a mãe (e por tabela o marido) e não ela. Livre do peso de ter que se encarregar da loucura do outro, ela pode olhar para si mesma. Eu diria que a maior parte das relações estão fincadas em bases semelhantes a esta.
A meu ver convencionou-se chamar de amor a todas as relações em que duas pessoas permanecem juntas. Nada mais enganoso. No parágrafo anterior comentamos sobre um tipo de relação onde creio eu, há um amor paternal envolvido. O indivíduo relaciona-se com as figuras paternas e não consegue enxergar o outro que está a seu lado. Na realidade a busca é sempre uma tentativa de solucionar problemas afetivos com os pais através de uma nova relação (compulsão à repetição). Mas isso nem sempre é possível por que busca-se sempre alguém muito semelhante aos pais do conflito. É por isso que essas pessoas ficam patinando aí, nesse lugar, por toda a vida. Na velhice muitos aterrorizam-se com a futilidade da vida, tão temida em tempos de juventude.
Temos o outro tipo, o amor maduro. O primeiro contato é marcado pela identificação do outro como objeto de desejo. Toda e qualquer semelhança com o caso anterior cessa ai. Nesse caso, os dois são um sem perderem a individualidade. Há uma percepção clara do outro como objeto de prazer, não só prazer sexual. É onde pode-se ter a cumplicidade o companheirismo e a confiança. As concessões são necessárias e espontâneas, não há muita competição. A interação é sempre uma fonte de coisas a acrescentar. A sexualidade é real e não é movida pela angustia e, dessa forma, o prazer é mais intenso e traz o relaxamento a satisfação e a momentânea consciência da união. Um amigo meu dizia uma coisa de que nunca me esqueço: Encontrar um amor é como voltar para casa. Isso é muito certo. Voltar para o nosso amor é sempre um prazer que se deseja conquistar a todo momento.
Essa última frase, um tanto romântica me chama a atenção para outra coisa: o conceito de amor. É muito curioso como o amor é sempre visto como algo bom, belo, verdadeiro e virtuoso, algo intrínseco à alma humana. Idealiza-se o amor. Isso cria uma concepção errônea das formas a considerar as relações de amor. Dessa maneira o amor não inclui as dificuldades, as limitações e a impossibilidade, justamente por que estas, estão ligadas à frustração. Tudo tem que ser belo no amor. O amor pode tudo. Mas há ai um engano terrível. Talvez o amor seja intrínseco à alma humana, mas não podemos esquecer, que brotando da mesma fonte está o ódio. Este nada mais é que o amor frustrado. Os dois sentimentos em suas mais diferentes nuanças, estarão sempre caminhando juntos. O ódio é proporcional ao amor. Se considerarmos essa questão, nosso conceito de amor deve mudar. Deve morrer o príncipe (ou a princesa) encantado que é o produto mais claro dessa forma de amor idealizado, que vai dar lugar ao homem comum com suas qualidades e defeitos, com suas possibilidades e limitações. Mesmo que isso deixe o amor romântico de lado e nos apresente uma faceta menos brilhante do amor, creio que as possibilidades de sucesso, são maiores.
Como se falou anteriormente, o amor é o desejo nostálgico ontológico pelo objeto ideal perdido, uma busca pela união que nos ajude a superar a ansiedade e frustração pelo vínculo perdido, pela solidão e pelo desamparo. A partir daí poderíamos fazer uma constatação interessante que pode nos ajudar a compreender por que o amor é tão idealizado. O amor é antes nascido no berço do ódio. Talvez seja por isso que desejemos excluir com tanta veemência o ódio das relações de amor. A consciência do ódio tira a nossa possibilidade de transformar o amor numa promessa de reconquista do paraíso que em si, nada mais é, que uma consideração sobre o útero materno. No útero tudo é tranqüilo: a temperatura é constante, somos protegidos dos ruídos maios irritantes, somos alimentados sempre que houver necessidade, não precisamos sequer respirar. Não é isso o paraíso? Ao perdermos esse paraíso, ao respirarmos pela primeira vez, numa atitude que revela nossa autonomia e por conseqüência, nossa solidão, sofremos. Esse paraíso está irremediavelmente perdido. Mas o amor romântico nos leva a negar essa separação.
Lembro-me de um casal que me procurou para terapia. Estavam casados há 33 anos e tinham cinco filhos. A mulher acusava o marido de toda a sua desgraça e este, ouvia quieto. Percebeu-se aos poucos que ela havia construído um ideal de homem. Cada vez que seu companheiro falhava em cumprir esse papel, era vitimado por ofensas. Com exceção de um dos filhos, todos os outros apresentavam muitos problemas com casamentos desfeitos, desvios de comportamento, falta de habilidade em gerenciar suas vidas financeiras por causa de sua inabilidade em lidar com a compulsão ao consumo. A mulher nunca havia se apercebido que seu marido também tinha sonhos, medos e necessidades que, por ser homem, não se atrevia a confessá-las. Quando vieram me procurar ele havia desenvolvido um câncer violento e muito difícil de tratar. Na vida dele tudo era ódio e impotência. Nunca conseguira satisfazer a esposa por que, por mais que fizesse, ele sempre se defrontaria com a referência do príncipe encantado que ela havia construído e este, por ser tão fantástico e maravilhoso, sem defeitos e limites, nunca poderia ser superado por um ser humano normal.
Esses são os tipos que não podem amar. São tomados pelo ódio que é negado pela possibilidade do surgimento de um príncipe encantado (a mãe idealizada) que nunca vai surgir. Vivem fugindo da vida, nunca sentem prazer e dessa forma destroem tudo que encontram à sua volta. Nesse mesmo lugar, estão os invejosos, conforme descrito na seção Psicologia cotidiana de Julho/99. Se compreendermos que o propósito do amor é o companheirismo, a troca que possibilita o crescimento e que, para isso, é necessário saber dar e receber, lidar com limites, ser frustrados, ganhar e perder, talvez possamos ser felizes. Mas se continuarmos a procurar alguém que resolva nossas angústias, transforme nossa vida e realize nossos sonhos, é certo, estaremos para sempre, aumentando as listas de casos de divórcio.